Miguel Morgado: “O país não pode viver muito mais tempo assim”

O ex-deputado do PSD Miguel Morgado desafia Rui Rio a mudar de estratégia e alerta que se o PSD não conseguir gerar uma alternativa ‘é uma falha irreparável’.

Miguel Morgado: “O país não pode viver muito mais tempo assim”

 

Marcelo Rebelo de Sousa saiu reforçado destas eleições presidenciais. André Ventura conseguiu meio milhão de votos, mas Ana Gomes ficou em segundo lugar. Os candidatos apoiados pelos partidos de esquerda ficaram abaixo dos 5%. Algum destes resultados o surpreendeu?

Não há grandes surpresas, tendo em conta que as sondagens apontavam para estes resultados. Apesar disso, há dois dados a destacar: Marcelo Rebelo de Sousa consegue uma boa votação, isso é inequívoco, confirmou nas urnas a popularidade de que goza e isso é importante para ele; e a votação muito expressiva no André Ventura, sobretudo atendendo à disseminação pelo território nacional. Não foi um fenómeno regional. Ele, hoje, pode dizer que tem eleitorado um pouco por todo o território.

A direção do PSD desvalorizou o crescimento do Chega. Como viu a reação do partido a este resultado de André Ventura?

Há aqui tantas contradições da liderança do PSD a esse respeito que às tantas começa a ser difícil estar atualizado sobre a última decisão. Na noite eleitoral houve uma grande ambiguidade e, agora, temos um acordo com o CDS para excluir o Chega das coligações autárquicas. Diria que o André Ventura e o Chega decidiram assumir posições políticas, uma estratégia e uma linguagem que os tornam incompatíveis com o estabelecimento de entendimentos com os outros partidos de direita.

Concorda com a ideia de que não é possível fazer alianças com um partido com as características do Chega?

Não tinha de ser assim, mas a estratégia de André Ventura coloca as coisas nestes termos. Que implicações vai isso ter para o futuro? São imensas, na medida em que o PSD está numa posição de fragilidade na sua base de apoio e o CDS está com os problemas que se conhecem. A saída para este impasse, na medida em que o país precisa urgentemente de uma alternativa a este Governo incompetente, é o PSD resolver definitivamente o seu próprio problema. Sempre defendi que a fragmentação partidária à direita, a que assistimos em 2018 e que levou à criação de três partidos novos  [a Aliança, a Iniciativa Liberal e o Chega  ] fundados por antigos militantes do PSD, deveu-se a uma crise autoinfligida pelo PSD.

Qual é a solução?

A mim parece-me que a superação para este impasse reside na superação da crise interna do PSD. Existe esta assimetria, que distorce profundamente o nosso processo democrático, de o PS se poder aliar conforme as suas conveniências com partidos radicais e totalitários sem que isso provoque comoção dentro das suas próprias hostes, mas está demonstrado que, à direita, as coisas não se passam assim, e não vale a pena fechar os olhos. Isto cria um problema muito grave na nossa democracia.

Encontra alguma solução para esse impasse com a atual direção?

Passei estes anos todos a criticar a liderança do Rui Rio, mas não quero insistir nessa crítica. Mantenho essa crítica, mas diria que é preciso alterar a estratégia e a orientação seguida pelo partido. O_PSD hesitou e foi muito ambivalente, durante estes três anos, sobre onde estaria o seu parceiro preferencial. Foram muitas as tentações, reveladas e implícitas, à volta de ideias como o Bloco Central e de repúdio por conteúdos programáticos mais afastados da ortodoxia definida pelo Partido Socialista. Todos esses sinais foram dados e essa ambiguidade instalou-se.

O PSD falhou na tentativa de construir uma alternativa à chamada geringonça?

Sempre defendi que a democracia portuguesa não fica completa se o sistema não for capaz de proporcionar uma alternativa politica ao poder do Partido Socialista. Sem isso, ficamos como outras democracias ou semidemocracias, que vão alastrando até no continente europeu, em que há um partido que, colonizando o aparelho administrativo, a sociedade civil e a economia privada, domina o país inteiro. Se o PSD não conseguir proporcionar essa alternativa é uma falha irreparável no contributo que esse partido deve ao país. Esta crise interna não é por falta de legitimidade da sua liderança, e fui sempre contra pedidos de demissão extemporâneos. Prefiro falar em estratégias políticas e essa estratégia tem de passar por perceber que há uma parte assinalável do eleitorado que não se revê no atual PSD e que isso o fragiliza no combate eleitoral com o Partido Socialista.

Consegue encontrar duas ou três razões que levam a que o PSD não consiga crescer eleitoralmente?

Estamos perante um problema em Portugal que não é pequeno. O país está afundado numa crise profunda. Esta pandemia veio agravá-la e veio expor as fragilidades e vulnerabilidades do país. O país está ligado a uma máquina europeia. Toda a gente já percebeu que a viabilidade do país, como um país com uma economia de mercado minimamente forte, depende em absoluto desta máquina de ventilação europeia. Temos de perceber, ao fim de 25 anos de estagnação e de arrasamento das instituições, que o país não pode viver muito mais tempo assim. O ato de governar corresponde a uma pura lógica partidária de ocupação do Estado e da sociedade civil. Esse é o grande desafio que se coloca ao país. O país tem de ser confrontado com as suas dificuldades e com os seus desafios. Não pode estar sistematicamente a tentar contorná-los com exercícios de propaganda que não passam de negações dos problemas que estão à frente de todos. Já passaram 25 anos, é muito tempo.

A pandemia não veio limitar a capacidade dos partidos de direita de fazerem oposição ao Governo?

A oposição política que se faz pode assumir muitas formas e muitas manifestações. Os sistemas democráticos, por toda a Europa, não foram suspensos. O escrutínio e a crítica do poder político permanecem. A ideia que se encontrou em Portugal para censurar e intimidar a mais ligeira crítica à governação corresponde a uma estagnação institucional que pode ser perigosa.

Voltando às presidenciais: tem alguma explicação para que um candidato como André Ventura tenha conseguido quase meio milhão de votos?

Estamos ainda longe de conhecer com detalhe as razões que levam as pessoas a votar no Chega. Penso que as pessoas utilizam André Ventura como um martelo. Uma parte muito pequena das pessoas subscreveriam integralmente todas as propostas do Chega, mas cada um daqueles eleitores vê nele um martelo que pode ser utilizado para martelar diferentes pregos. Para uns será a corrupção, para outros será o combate destemido à extrema-esquerda… Não sabemos exatamente o leva as pessoas a aderir às várias mensagens do Chega. Muitas delas são contraditórias mas, na cabeça de quase 500 mil eleitores, essas contradições não foram importantes.

Como deve o PSD reagir a este fenómeno?

O PSD deve ser o motor de uma plataforma reformista e europeísta, mas em clara demarcação do socialismo e da extrema-esquerda. Um PSD que construa o seu projeto, os seus aliados, com total autonomia relativamente às esquerdas, será visto pela grande maioria dos eleitores, que não se reveem nestas quase três décadas de Partido Socialista, como uma alternativa.

Essa alternativa é possível com Rui Rio?

Ainda vai a tempo de mudar. Sou militante do PSD e tenho obrigações como militante. e, por isso, no cumprimento dessas obrigações continuarei a dizer que ele ainda vai a tempo, mas tem de mudar.

O acordo nos Açores criou algumas divisões. Se vier a colocar-se uma situação idêntica a seguir às próximas eleições legislativas, o PSD deve ou não fazer um acordo com o Chega?

Defendo que, se for possível, o PSD deve liderar uma coligação com um programa conjunto para se apresentar a eleições e derrotar o Partido Socialista com uma maioria absoluta. Isso requer uma determinada estratégia e um certo tipo de liderança. Essa seria a minha primeira opção. Na ausência disso, a única solução é o PSD concorrer sozinho às eleições e, depois, tentar reunir apoios no Parlamento. A direção e a orientação que o André Ventura decidiu assumir são incompatíveis com um entendimento político, mas ele terá de fazer escolhas. Se chegarmos a um momento em que, nas eleições legislativas, o PSD fique dependente de dois deputados do Chega, como aconteceu nos Açores, André Ventura terá de decidir se quer ser uma força de eliminação de um Governo liderado pelo PSD e tornar-se um aliado da esquerda. Não sei se algum dia vamos viver este cenário. Vai depender dos portugueses, mas essa responsabilidade está nas mãos de todos.

A evolução do Chega contribuiu para que não seja possível um entendimento?

Essa incompatibilidade foi escolhida pelo André Ventura e, para mim, parece-me ser cada vez mais evidente. A tendência não é a de aumento da razoabilidade das posições do Chega. Pelo contrário, é o somar dessa irrazoabilidade. Isso cria problemas políticos que não podemos negar.

O CDS mergulhou numa crise interna depois de fracos resultados nas sondagens. A crise no CDS, que nos últimos anos tem sido o parceiro do PSD, também não ajuda…

O problema já é sistémico. Não é só do CDS ou do PSD… Temos, hoje, uma fragilidade de todos os partidos com a exceção do Partido Socialista e a ascensão do Chega. O_PS é o único partido que se apresenta forte nas sondagens, apesar de ser o partido do Governo e de demonstrar total impreparação e incompetência. Todos os outros estão em dificuldades, com a exceção do Chega. A ascensão do Chega é impressionante. Não podemos esquecer que a base inicial do Chega, nas eleições em 2019, foi de 1,2% dos votos. Julgo que é um sintoma dos riscos que o sistema político está a atravessar.

Marcelo Rebelo de Sousa saiu reforçado desta eleição. Espera um segundo mandato diferente?

Não espero nada de diferente relativamente ao primeiro mandato. As condições externas ao Presidente da República mantêm-se iguais.

O próprio Presidente da República lamenta que não exista uma alternativa forte a este Governo…

É sempre o problema do ovo e da galinha. O_Presidente, durante o primeiro mandato e será o mesmo no segundo mandato, foi decisivo para socorrer politicamente o Governo e o primeiro-ministro, António Costa, em vários momentos de crise. Há sempre aqui um problema do ovo e da galinha. O Partido Socialista manda e o Presidente da República ajusta-se.

Voltou a surgir recentemente a possibilidade de Pedro Passos Coelho regressar à liderança do PSD. Isto é um sinal de que há novos protagonistas?

Sempre insisti que estes eram os anos das novas figuras nas direitas, mas é preciso reconhecer que elas tardam em aparecer e, por isso, é natural que as pessoas pensem em alguém que já foi o líder de uma federação das direitas com um estilo de liderança muito diferente.

É daquelas pessoas que gostaria que ele voltasse?

Procuro não ter muitos desejos. Vejo o meu país afundar-se e faço um esforço por tentar compreender aquilo que está a acontecer. Esse esforço é mais importante do que estar a escolher pessoas. Toda a gente sabe que sou amigo e próximo de Pedro Passos Coelho.

Mas faz sentido colocar esse cenário?

Não faço ideia se o possível regresso de Passos Coelho à vida política é uma possibilidade concreta ou não. Seria preciso perguntar-lhe a ele. Não faço essa consideração como se estivéssemos a falar de uma realidade concreta. Diria que, no atual panorama político, não há ninguém em Portugal como Pedro Passos Coelho.

Portugal está a atravessar um momento muito difícil devido à pandemia. O_poder político tem responsabilidades nesta situação?

Nós estamos a assistir desde março a um enorme exercício de propaganda. Um Governo que age desta forma nunca conseguirá gerir uma situação como esta da melhor maneira. O poder político enfrentou o início desta pandemia com a mesma lógica com que lidou com todas as questões políticas, pequenas e grandes, desde 2015. Quando muita gente já estava a sentir os efeitos negativos desta pandemia, o poder político dedicou-se ao exercício de pura maquilhagem de que nós éramos uma espécie de paraíso graças à ação do Governo. Não há o mínimo de pudor em querer inibir a oposição de escrutinar a ação do Governo, enquanto os ministros desfilam em ações de propaganda. Isto reflete o problema com que estamos confrontados no modo como o poder é exercido.

A pandemia pode provocar uma crise política?

Vivemos um período de grande incerteza, mas diria que, apesar de tudo, o que acontecer politicamente dependerá da vontade política do primeiro-ministro. As decisões do Partido Socialista contarão mais do que as posições do Bloco de Esquerda em relação ao Orçamento ou do que os protestos por causa da pandemia.