Estado passa dados dos contribuintes portugueses a empresa estrangeira

Governo entregou programa do Ivaucher ao único concorrente em concurso, a Pagaqui, que foi entretanto comprada pela empresa internacional SaltPay. E que, assim, fica com todos os dados dos contribuintes portugueses. Comissão de Proteção de Dados não foi consultada.

Por Sónia Peres Pinto e Henrique Pinto de Mesquita

O Estado português entregou a uma empresa estrangeira dados pessoais dos contribuintes portugueses – incluindo NIF, morada, contas bancárias e cartões, entre outros dados.

O Ministério das Finanças e a Autoridade Tributária garantem que os dados estão protegidos, mas a Comissão de Proteção de Dados não foi consultada (e confirmou ao Nascer do SOL que não o teria de ser) e os especialistas dividem-se: uns defendendo a posição do Ministério das Finanças e da AT, outros manifestando sérias reservas sobre a garantia dada e preocupação com a permeabilidade dos dados. 

O que está em causa é o programa IVAucher – plataforma em que os portugueses podem aderir ao benefício acumulado em IVA, que depois poderão descontar em compras futuras na restauração, em alojamento ou em Cultura.
O programa foi lançado através de um concurso público que teve como único concorrente, em janeiro de 2021, a empresa Pagaqui, com sede no Porto.

Acontece que esta empresa, única que se apresentou a concurso – uma vez que a SIBSoptou por não entrar na corrida – e, por isso, vencedora do mesmo, acabou por ser vendida, em final de fevereiro de 2021 – ou seja, no mês seguinte – à empresa islandesa SaltPay.

Na altura, a SaltPay emitiu uma nota de imprensa anunciando a compra da Pagaqui – sem divulgar, porém, os montantes envolvidos no negócio – e revelando que tem por objectivo criar um centro tecnológico no Porto e contratar mais 600 profissionais até 2022.

«A aquisição da Pagaqui marca o nosso primeiro investimento em Portugal. Acreditamos que Portugal será o centro da nossa inovação tecnológica, que irá proporcionar às PME a próxima geração de ferramentas e serviços que permitem vender mais e gerir melhor os seus negócios», afirmou Ali Mazanderani, chairman da SaltPay, na mesma nota de imprensa. O comunicado esclarecia ainda: «João Barros e a sua equipa na Pagaqui serão uma parte integral da nossa expansão no mercado português e fundamentais para ajudar comerciantes, por toda a Europa, a saírem mais fortes desta crise».

Por sua vez, o CEO da Pagaqui, João Barros referia também no comunicado à imprensa: «Fazermos parte da SaltPay permite-nos melhorar os produtos e serviços e alargarmos a nossa oferta. Passamos a ter uma dimensão internacional e a possibilidade de partilhar competências que serão uma mais valia para os atuais e potenciais clientes, permitindo-nos delinear uma estratégia comercial assertiva e aumentar a nossa quota de mercado».

A empresa islandesa terá sido fundada e registada em Londres por empresários brasileiros, que participam numa plataforma semelhante no Continente americano: a Stone (que recentemente comprou a brasileira Linx).
Independentemente de todo este processo, Governo e AT continuam a assegurar que os dados dos contribuintes portugueses não serão partilhados, tal como ainda recentemente noticiou o jornal online ECO – que igualmente ouviu especialistas considerarem um erro a não consulta prévia à Comissão de Proteção de Dados, devido ao volume de informação em causa, ao caráter privado da mesma e por uma questão de prudência.  
Nos termos do contrato assinado com o Estado português, a Pagaqui terá de disponibilizar «o serviço de consulta do detalhe dos movimentos da conta-corrente de benefícios e o saldo da mesma, em tempo real, a cada consumidor, via webservice, através de consulta em aplicação móvel e/ou do portal, ambos da AT». Isto significa que, com este sistema, os consumidores que aderirem a esta modalidade poderão consultar os seus movimentos e o saldo da conta-corrente de benefícios (o IVA acumulado nos setores abrangidos) através da aplicação da Autoridade Tributaria  ou do Portal das Finanças, ficando a conhecer o valor que utilizarão posteriormente. 

Mas como funciona? Este benefício será o resultado do IVA pago em compras nos setores da restauração, alojamento e cultura, a partir de 1 de junho.  No entanto, na segunda fase, este saldo pode ser descontado em compras, até um máximo de 50%. Ou seja, poderá ser necessário realizar mais do que uma despesa, para gastar todo o benefício acumulado. A medida vai vigorar durante 12 semanas.

A adesão à iniciativa poderá ser feita através do multibanco ou da plataforma que será criada pela Pagaqui, integrada com o Portal das Finanças, para credenciar o NIF. Segundo as condições contratuais, estas ligações e a verificação da titularidade do cartão de pagamento serão feitas «através de meio de autenticação segura».

É de referir que benefício do consumidor é apurado pela Autoridade Tributária «com base nas faturas em que aquele figure como adquirente, quer sejam comunicadas pelo emitente, quer sejam comunicadas pelo adquirente». Mas para que o benefício seja liquidado, a compra tem de ser concluída com sucesso. Ou seja, se por qualquer motivo a parte do consumidor não for paga, o Estado também não irá pagar a parte que lhe compete.

Ainda assim, os consumidores podem, em qualquer altura, cancelar a adesão ao IVAucher.

Os portugueses que aderirem ao IVAucher vão conseguir ver em tempo real o benefício acumulado em IVA que poderão depois descontar em compras futuras na restauração, em alojamento ou na cultura. Essa funcionalidade está prevista no contrato assinado entre a Pagaqui, que vai colocar o IVAucher no terreno a partir de 1 de junho, e o Estado português, o qual foi publicado no Portal Base. A consulta será feita através de uma app e/ou do Portal das Finanças.

Contactada pelo Nascer do SOL, Paula Franco, bastonária dos Contabilistas Certificados, lembra que a Pagaqui foi a empresa única que se apresentou em concurso público, mas, ainda assim, mostrou a sua preocupação em relação à partilha de dados. 

É certo que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) garantiu que nenhuma empresa irá ter acesso a dados dos contribuintes que adiram ao IVAucher, além daqueles que constam do e-fatura, mas basta aceder ao site para não se ficar com a mesma certeza.  Com efeito, é  a própria empresa que assume que «reserva o direito de, a qualquer momento e sempre em conformidade com a legislação aplicável» alterar os termos de adesão dos consumidores e ainda que «a recolha e a utilização de dados pessoais são geridos com a competência e cuidados adequados tendo em conta os dados tratados». 

O jornal Expresso, na sua edição de ontem, também avançou que o SNS e vários serviços públicos estão a partilhar dados pessoais designadamente com a Google, referindo entre eles o IVAucher.