Calor tórrido, risco máximo

Deverão ser batidos recordes locais de temperaturas nos próximos dias. Extremo nacional continua a pertencer aos 47,3ºC registados na Amareleja, em 2003. Se não for agora, nos próximos anos o país resgistará pela primeira vez 48ºC. 

Uma onda de calor prolongada, com temperaturas máximas e mínimas elevadas e as previsões oficiais para esta semana a mostrarem quarta e quinta-feira como os dias mais tórridos: 42ºC de máxima previstos para quinta-feira em Lisboa, 45ºC em Santarém, 47ºC em Tomar, 44ºC em Moura, com noites tropicais em que as temperaturas poderão manter-se em alguns pontos nos 28ºC/30ºC durante a madrugada. O cenário complexo em matéria de incêndios florestais, em que se conjugam o calor tórrido, a baixa humidade e vento forte de leste, levou o Governo a determinar estado de contingência e alertas da Proteção Civil para a necessidade de responsabilidade geral, com pedidos de especial cautela no uso de fogo (churrascos, fogueiras e beatas em zonas de risco), além do fogo de artifício proibido e restrições ao  uso de máquinas agrícolas, até porque se sabe que cerca de metade das ignições no país são causadas por negligência. 

O recorde atual de temperatura no país foi registado na grande onda de calor de 2003 na Amareleja, altura em que os termómetros chegaram aos 47,3ºC. Numa altura em que as páginas que acompanham os modelos meteorológicos como a Luso Meteo admitem que recordes locais de mínimas e máximas poderão ser batidos, e mesmo os 48ºC podem ser atingidos, Filipe Duarte Santos, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, explica ao i que mesmo que não ocorra agora, na próxima década é provável que isso venha a acontecer. 

“Quando falamos da necessidade de conter o aumento da temperatura a 1,5ºC a 2ºC ao longo do século, dos compromissos do acordo de Paris, falamos da temperatura média à superfície. O esperado é vermos máximas mais elevadas e as temperaturas extremas ocorrem precisamente durante ondas de calor”, explica ao i o especialista em alternações climáticas. “O que nos têm mostrado todas as análises nos últimos anos é que as ondas de calor estão a tornar-se mais frequentes e com máximas mais extremas e é isso que mais uma vez vemos neste episódio. Repetem-se e vamos ter de aprender a viver com elas”, sublinha, chamando a atenção para a preocupação com os incêndios florestais – “o risco é máximo mas o que as pessoas devem perceber é que um fogo começa sempre com uma ignição – mas para outras dimensões do calor extremo como o impacto na saúde ou mesmo nos consumos energéticos.

“Durante muitos anos, os picos de consumo de eletricidade na Península Ibérica eram em ondas de frio. Cada vez mais vemos que tendem a ocorrer em ondas de calor, pelo recurso à climatização”, diz o investigador, sublinhando que a gestão destes consumos de eletricidade no verão numa altura em que a meta é a descarbonização será mais um desafio nos próximos anos. Esta preocupação de resto espalha-se por toda a Europa perante as temperaturas elevadas.

Por outro lado, diz Filipe Duarte Santos, mudanças nos comportamentos e rotinas poderão colocar-se, admitindo que poderá fazer sentido equacionar, como na pandemia, soluções como o trabalho remoto em momentos de maior canícula. “Vemos que alguns países no Médio Oriente atingem temperaturas acima dos 50ºC, às quais o organismo não está habituado e teremos de nos adaptar nesses momentos.”

Ondas de calor na europa a aumentar mais rápido Nos últimas dias, uma das publicações virais nas redes sociais prende-se com um recorte do Diário de Notícias, de agosto de 1944, dando conta, naquela altura, de uma vaga de calor com 39,2ºC graus à sombra em Lisboa, 45,8ºC em Coimbra. 

Primeira nota: as medições por exemplo nos mostradores das farmácias não contam como registos oficiais – basta ver os 50ºC que já apareceram também na farmácia da Amareleja. Depois, esses valores não batem certo com os oficiais, que é possível que em algumas estações sejam superados. No caso de Lisboa, tal não está previsto: o registo até aqui mais elevado em Lisboa foi feito em 2018 na estação do IPMA da Gago Coutinho, quando chegou aos 44ºC, batendo um recorde de 37 anos. 

Filipe Duarte Santos, que admite também ter visto a circular o recorte, sublinha que ondas de calor sempre existiram, mas o que tem sido associado a um clima em mudança é a sua maior frequência em vários pontos de globo, e na Europa em particular, e os extremos serem mais extremos. “Quando os cientistas o afirmam é porque analisam séries de dados comparáveis. Haverá sempre pessoas que não acreditam mas nesses casos só podemos dizer paciência”.
Um artigo publicado na semana passada na revista “Nature” apontou uma explicação para a Europa ter vivido nos últimos uma tendência de aceleração de ondas de calor que parece ser “desproporcional” ao resto do globo, três a quatro vezes mais rápido, escrevem os autores do Instituto para Impacto Climático de Postdam, na Alemanha.

Associam-no a alterações na dinâmica atmosférica relacionadas com a corrente de ar (jet stream) da Eurásia. “Se as ondas de calor não são um fenómeno novo, o que é novo são os eventos extremos ocorrerem com maior frequência e intensidade do que no passado”, disse a autora principal Efi Rousi. “Percebemos que há tipicamente três estados desta corrente de ar, um deles o jet stream duplo, com o aumento da intensidade”, explicou o co-autor Kai Kornhuber. Este fenómeno é contrabalançado no continente europeu por correntes de ar do Atlântico Norte, que tendem a ter um efeito de “arrefecimento” dos ventos quentes de leste, mas quando o jet stream está neste estado duplo, esse efeito é anulado e a Europa ocidental tende a viver ondas de calor mais persistentes.