Camaradas isto, camaradas aquilo… Que duro está esse pão, que difícil meter nele o dente. Mas também, e olhando em volta, sentindo com as mãos e a consciência esta “humanidade exangue, sem paixões nem convicções, inapta para o absoluto, privada de porvir, limitada em todos os aspetos” (Cioran), é natural que sejamos só um resto coceguento, pois ficou difícil saber o que resgatar de toda essa antiguidade e da herança nefasta das últimas décadas, com a derrocada dos sistemas, a falência das utopias, e ainda a vergonha da espécie. E, com tanta desgraça, o mais estranho é que persistam as velhas divisões, mais simbólicas ou rituais do que outra coisa.
E talvez por isso seja cada vez mais difícil aos partidos fazerem-se frente sem se aniquilarem, sem entender que o objetivo de cada discussão possa ser outra coisa além da pulverização do contraditor. Este ano, uma vez mais, anda para aí um charivari desgraçado com a festa do Avante!
Nas duas edições anteriores, deu para pegar pela coisa e infamar a rentrée comunista por esta ter ultrapassado as medidas de prevenção face à pandemia com a justificação de que a índole política do certame devia superar as tais restrições, e o certo é que o PCP passou na prova de fogo e calou os seus oponentes, não se tendo registado qualquer surto na sequência do evento.
Mas o certo é que sem aquele travo de discórdia a festa não teria o mesmo gosto. Só uma existência ameaçada nestes dias tem a certeza de estar viva, e, assim, os que aceitarem uma vez mais o desafio de participar nessa imensa reunião que começou hoje e se prolonga até à noite de domingo, na Quinta da Atalaia, junto à baía do Seixal, poderão extrair essa volúpia perante aqueles que os vaiaram, escarneceram e maltrataram. A receita para pôr em marcha a escandaleira este ano voltou a ser a sopa da pedra. Deitou-se fora a dos dois anos precedentes, e veio a calhar a da invasão da Ucrânia pela Rússia, tendo o PCP sido a única formação política que se absteve de condenar em termos claros aquela violação intolerável da soberania do povo ucraniano.
E, então, José Milhazes, promovido a comentador residente na SIC-Notícias por virtude dos tantos anos que viveu como correspondente na URSS, e tendo nesta crise uma oportunidade para fazer soar o seu canto de cisne de forma estridente, ele que também só se apercebeu da natureza daquele regime quando este desmoronava, mostrou-se muito espantado por existirem artistas dispostos a atuar nos palcos de um evento que, como fez questão de vincar, é político.
Trazia a coisa ensaiada, e mostrou até o cartaz do evento, sugerindo que aqueles artistas não deveriam aceitar tomar parte no evento, apelando assim ao regime de cancelamento tendo por base as posições que o PCP tem assumido relativamente à invasão da Ucrânia.
“É uma festa política de um partido que apoia regimes hediondos e que, neste momento, está a apoiar uma guerra”, sentenciou na altura. Este modelo em que se assanha a audiência, que tendo hoje os meios de acossar diretamente os intervenientes, tornou-se uma arma usada a torto e a direito e sem a menor prudência por aqueles que, em virtude do seu acesso aos meios de comunicação de massa, podem lançar a primeira pedra sabendo que serão de imediato secundados.
(E aqui apetece citar uns versos de Hans Magnus Enzensberger: “um espetáculo para ranger os dentes são/ os porcos gordos nos terraços/ dos hotéis caros, nos campos de golfe/ descansando da ceva e roubo,/ os queridos de deus.// mais difícil/ és tu de suportar, zé ninguém/ de gabardina reles, graxista,/ pequeno-burguês, beleguim, assessor, marçano,/ mais triste a tua cara amarela:/ estragado, entregue a quem de ti faz gato-/sapato, um chapéu cheio de ventos desalentados,/ ferreiro das suas próprias algemas,/ parteiro da tua própria morte,/ confeiteiro do veneno que/ te será posto.// claro,/ muitos te prometem abolir/ o assassínio. A fazer campanha contra ele/ intimam-te os assassinos./ não o crime perderá/ a partida: tu: ele só muda/ as cores da maquilhagem:/ o sangue das vítimas permanece preto.”)
Sem surpresas, lá se juntou uma multidão nas redes sociais com o fim de levar a cabo o ritual linchamento que é possível por meios virtuais, mas se houve muitas críticas para a suposta conivência dos artistas com a postura do PCP face à invasão militar da Ucrânia, não faltou também quem viesse lembrar o enquadramento do conflito feito pelo partido, lembrando que a agressão russa, se desproporcionada, não partiu do nada, mas de um justificado receio de ter a NATO do outro lado da cerca. Não faltou também quem vincasse que, havendo uma componente política na festa do Avante!, há muito que este se tornou um acontecimento cultural, por onde ao longo dos anos passaram muitos dos principais nomes da música que se faz em Portugal.
A este respeito, poderia fazer-se notar como “a virtude primeira do espetáculo é a de abolir qualquer móbil e qualquer consequência”, e como, neste aspeto, a festa do Avante! dificilmente se distingue de qualquer outro festival de verão.
Talvez o elemento decisivo seja a forma como emerge vertical e solitária enquanto evento que não privilegia a componente lucrativa para as entidades envolvidas na organização, mas promove, hoje, um raro contraponto no deserto de iniciativas que ofereçam uma oportunidade de cruzar num mesmo espaço delegações regionais e internacionais, permitindo o debate sobre a realidade nacional e alentar a solidariedade internacionalista.
Assim, o escrutínio popular que Milhazes quis orquestrar, antevendo que os artistas viessem a ser coagidos a boicotar este festival, é um ataque a um conjunto de valores que estão sub-representados face à marcha imparável dos eventos promovidos pelas marcas.
Madalena Santos, responsável pela organização da rentrée do PCP, explicou que o partido está empenhado em demonstrar ao público que o seu compromisso é com a paz em qualquer circunstância, isto apesar de vários comentadores e figuras políticas terem ‘apontado o dedo’ aos comunistas por um alegado alinhamento com o Kremlin.
“A minha resposta é muito simples: a Festa do Avante! é um espaço de paz – era, continua a ser e sempre será um espaço de paz –, o nosso posicionamento é este”, disse à Lusa Madalena Santos, que já vai na 46.ª festa, e espera chegar à 50.ª, na Comissão de Espetáculos. De resto, e no que toca à participação das delegações de partidos comunistas do mundo inteiro, este ano, a festa na margem sul não contará nem com a Rússia nem com a Coreia do Norte.
É o que se constata da lista publicada no jornal oficial do partido, onde estão elencados o Partido Comunista da China e o da Alemanha, o Partido dos Trabalhadores do Brasil, a Frente de libertação de Moçambique e o Partido Comunista do Vietname. Outra das ausências é o partido no poder na Venezuela, sendo que estará presente, no entanto, o movimento muito menos representativo Solidariedade com a Venezuela Bolivariana.
Embora a Rússia não esteja representada, volta a marcar presença no Espaço Internacional uma delegação da Associação Portuguesa de Amizade e Cooperação Iúri Gagárin, antes conhecida como Associação Portugal-URSS, que se dedica, conforme a mesma explica na sua página de Facebook, a “estabelecer e incentivar, entre o povo português e os povos que constituíam a URSS, a amizade e o conhecimento mútuo, o intercâmbio cultural, social e científico, no interesse da cooperação e da paz”.
Voltando à vaca fria, o comentador Daniel Oliveira, na sua crónica semanal no Expresso, entende que a festa do Avante! Se tornou um desses eventos que provoca “indignações sazonais” e, apesar de manter reservas face à força como o PCP tem lidado com a atual crise na Ucrânia, rebate os argumentos daqueles que pretendem estabelecer uma equivalência entre atuar naquele certame e ser cúmplice de Putin. “Claro que a participação na Festa do Avante! é, para além de um momento cultural, um ato político. Mas nunca significou um apoio a todas as posições do PCP, que incluíram conivência com algumas ditaduras”.
Daniel Oliveira regista ainda que “a posição comunista sobre a guerra da Ucrânia, que resulta de um automatismo antiamericano, é um espelho fiel do automatismo pró-americano de quem determina a sua agenda política e moral pelos interesses circunstanciais da Casa Branca”.
Este comentador regista ainda a hipocrisia daqueles que, até aqui, nunca se coibiram de manifestar o seu apoio a invasões imperiais de países soberanos que custaram centenas de milhares de vidas. “O objetivo é transformar o PCP num intocável, em tudo semelhante ao Chega. Não querem banir o PCP, querem naturalizar, por via da equiparação, um partido racista para que possa contar na aritmética do poder. Se foi possível governar com um, também se pode governar com o outro”.
Daniel Oliveira conclui reforçando a sua discordância face à postura do PCP no que toca a política internacional, mas sustenta que, se o seu discurso sobre a invasão da Ucrânia é condenável, “ainda assim [é] menos grave do que apoio institucional que o Governo de Durão Barroso e Paulo Portas deu à invasão do Iraque, [ou do que o] racismo que se vai normalizando na política portuguesa”.
Quanto aos artistas que se viram envolvidos nesta polémica, de entre as reações que manifestaram nas redes sociais à imprensa, pode constatar-se que não se iludem quanto à verdadeira natureza deste enfrentamento, que deles fez peões na sintaxe de uma rigidez, de uma dignidade hipócrita e que lhes atribuiu um lugar do qual, fosse qual fosse a posição que assumissem, ficariam sempre a perder.
Este regime de troca de acusações serve de um jogo de oposições quase sempre estéreis, pois quem esgrime estes argumentos são, por natureza, aqueles ociosos, parasitas e peritos em torpeza, esses que vivem de excitar e acirrar as tensões, são os pequenos patifes que se aproveitam desta profusão algo anárquica de contrastes que se ficam sempre apenas pela superfície das questões.
Naturalmente, a maioria dos artistas visados não morderam o isco, e aqueles que acederam a ser absorvidos por esta querela insolúvel, fizeram-no deixando sinal de uma certa exasperação perante este regime de debate desleal e desnecessariamente agressivo, todas essas incitações e palavras de cianeto, que sinalizam uma espécie de agonia do confronto de ideias.
Foi o caso de Dino d’ Santiago, o primeiro a reagir às críticas, através de uma publicação no Instagram, notando que além de ter “recebido mensagens de algumas pessoas” contra a sua participação na Festa do Avante!, foi também alvo de insultos: “Uns pedindo para que a cancele, outros responsabilizando-me pelo sangue ucraniano derramado nesta guerra”.
Depois cede ao tresvario, ilustrando com as suas palavras essa vertigem de quem se sente precipitado numa espiral desgastante perante uma realidade inabordável e sufocante: “Sim. Sou responsável pelo sangue derramado nesta e em todas as guerras, em ambos os lados da trincheira! Porque sou um filho do século XX! O século mais assassino da história da humanidade! Nas nossas mãos carregamos o sangue de mais de 100 milhões de seres humanos, mortos em nome do poder, religião ou genocídio”.
É palpável o sentimento de impotência, essa sensação de se ser engolido por um mundo onde, para se ser absolutamente coerente com os seus princípios, qualquer artista teria de deixar os palcos e contemplar formas de insurreição beirando o terrorismo.
Ao mesmo tempo, se lhe é imposta esta dignidade cadavérica, o músico reconhece-se alvo de uma acusação parcialíssima, e desata a elencar outros sinais do colapso: “Onde estão quando a fome grita por socorro às crianças no Iémen, onde estão quando o assunto são 5,5 milhões de seres refugiados da República Democrática do Congo, ou dos 1,75 milhões que fogem do Burkina Faso, somando aos outros milhões de pessoas refugiadas vindas dos Camarões, Sudão do Sul, Chade, Mali, Sudão, Nigéria, Burundi e Etiópia?”, acaba por indagar, concluindo: “Sou e serei sempre pela paz em qualquer canto do globo! E para esta guerra da humanidade carrego a única arma que herdei dos meus pais: amor! E enquanto tiver munições viajarei por todos os lugares onde sou bem-vindo.”
Em declarações ao Público, outro dos artistas que integram o cartaz do festival, o músico Marcus Veiga, mais conhecido por Scúru Fitchádu, goza do privilégio de não estar na linha da frente perante esta saraivada que fez dos artistas convidados danos colaterais numa suja guerra de propaganda. Veiga compreende a frustração daqueles que, por terem um perfil mediático mais avantajado, “como o Dino d’ Santiago ou a Carminho”, colhem mais estilhaços.
Mas quanto à substância da polémica, também ele a desvaloriza: “Li a mensagem do Dino e alinho pelo seu pensamento, embora se não tivesse dito nada também não me pareceria mal, porque não tem de provar nada a ninguém”. Não sendo um alvo preferencial, o músico diz que não lhe chegaram mais do que duas ou três mensagens, e que se limitou a ignorá-las. Até porque nestas coisas, sem o efeito de multidão, o tal linchamento parece-se mais com picadas de insetos. De qualquer modo, e depois de advertir que o seu espaço de intervenção começa quando sobe ao palco, Marcus Veiga não deixa de notar que se tornou “nítido” a forma como o PCP está a ser alvo de uma série de ataques, nos últimos anos, “para aproveitamentos políticos”.
Daniel Oliveira lembra que, se até à geringonça, o PCP era tratado com uma certa bonomia pela comunicação social, agora que a Direita precisa do Chega para regressar ao poder, é necessário “alimentar falsas equivalências”, dar a sensação que a indisponibilidade do PCP para condenar de forma categórica a invasão militar da Ucrânia é um delito em linha com “os discursos xenófobos de Ventura”.
Há que sinalizar ainda que o cartaz desta edição do festival não é senão uma reconfiguração a partir do elenco de anos anteriores, sendo Dino D’ Santiago, Mão Morta, Scúru Fitchádu, Paulo Bragança, Fogo Fogo, Dany Silva, Marta Ren, Ricardo Ribeiro, Júlio Resende e outros tinham já atuado no Avante! Assim, este continua a ser um evento que privilegia a música popular portuguesa, afro-portuguesa, fado, jazz, hip-hop ou eletrónica, sendo de assinalar ainda iniciativas especiais como o concerto sinfónico de celebração dos 100 Anos de José Saramago e que abre o festival com música clássica que está nos livros do Nobel português e ainda dois concertos de homenagem a Adriano Correia de Oliveira.
Vitorino Salomé foi outro dos artistas a reagir à polémica cozinhada por José Milhazes a partir da sua tribuna televisiva, onde vai sendo preciso usar um palavrão ou criar alguma outra manobra que sirva para apimentar uma espécie de telenovela diária centrada nos avanços e recuos da guerra na Ucrânia, perdurando há meses e que, mais tarde ou mais cedo, já não exercerá o menor fascínio junto do público.
“Quando aquele senhor de que não digo o nome, para a língua não se me dobrar, levantou a polémica, não lhe atribuí qualquer importância e continuo a pensar da mesma forma”, disse o músico, em declarações ao Público, acrescentando que irá “com vontade, alegria e gosto” ao festival, “porque é uma das festas maiores e mais importantes da música portuguesa.”
Vitorino, que subirá ao palco com o cubano Emilio Moret, antigo elemento do famoso Septeto Habanero, frisou que a “componente política” desta festa não o incomoda, uma que, “não sendo militante do Partido Comunista — nem de nenhum outro —, sou de esquerda. E ainda por cima vou cantar com um cubano, e o que mais me importa são essas questões culturais e esta mistura fantástica que se faz com outros povos a cantar. Isso interessa-me mais. Deixem-nos estar descansados porque cantar é o melhor remédio para muitos males”.
Como um herói de capa ao pescoço e a brandir a espada da sua consciência frente a moinhos de vento e artistas de música com vista a vingar o sofrimento dos ucranianos, Milhazes visou especificamente a cantora brasileira Bia Ferreira, voz destacada da luta antirracista e da afirmação da comunidade LGBTQI+. O jornalista e antigo membro do PCP, chamou-a à pedra por vir “à festa de um partido que apoia regimes que perseguem, prendem e matam todas estas minorias sexuais”.
Em resposta, a também compositora e multi-instrumentista, reagiu através de um vídeo, procurando explicar que é “totalmente contra a guerra” na Ucrânia, mas que também vive num conflito desde que nasceu, e que, por essa razão, “qualquer palco que me convide para fazer a minha arte, eu subo, porque sou uma mulher, preta e brasileira, que não tem tantas oportunidades assim para fazer a arte política e revolucionária que eu apresento”.
E sendo o nome do jogo em que Milhazes se quis vir meter o da sinalização de virtudes, Bia Ferreira apressou-se a exibir a munição que trazia: “Eu vou para denunciar os estragos que o povo português deixou aqui no Brasil. Se só as mortes na Ucrânia incomodam vocês, porque é um europeu branco morrendo, eu queria falar que a cada 23 minutos morre um preto aqui no Brasil. E é isso que eu vou fazer à Festa do Avante!: denunciar o estrago que ficou aqui. Eu não me nego a tocar, porque a minha arte não vai ser calada, nem denunciada”.
Assim vamos, cada um escolhendo e enchendo o prato das atrocidades que se cometem todos os dias à volta do globo como se se tratasse de um bufê e para efeitos de se exibir como um glutão de atrocidades. Cada um cumpre o seu regime, deixando à sua passagem um rastro mais ou menos distinto de ranho retórico, que, curiosamente, não mistura nem terra, nem sangue, nem essas coisas que geralmente dizem respeito à alma.
É tudo demasiado nobre, mas, no fim, quando a controvérsia esfria, fica um cheiro a ranço, o que deixa uma nostalgia da verdadeira fealdade e do soberbo desalinho quando tudo não era só uma compulsão narcísica, mas estes adversários que se escoriavam publicamente não demoravam muito a exigir a defesa da honra, e punham-se ao alcance de um disparo que resolvesse a disputa e também provasse a carne dessas convicções.