Manuel Hermínio Monteiro. Houve aqui um timoneiro

Assinalando os 70 anos que o antigo editor da Assírio & Alvim teria feito no mês passado, um livro de homenagem monta um pequeno enredo de lembranças, vincando a paixão desmedida de alguém que negligenciou os seus próprios versos, preferindo ser esse condutor de orquestra deslumbrado pelo virtuosismo dos outros.

Todos anseiam ser criadores, nem sequer lhes interessa o papel de condutores de orquestra, mas só a imortalidade que se reserva aos grandes compositores. Não os anima verdadeiramente a hipótese de um compromisso absoluto com essa sintonia bestial e em regime sinfónico, fazer parte de uma tripulação sonora, de uma conversa magnificente nalgum café ou livraria. Ninguém já entretém ambições menores ou mais discretas, nem sequer esse ânimo trepidante das galeras, em que o esforço de cada um se saldava no ímpeto de um avanço feito da força sincronizada de tantos. Ver o seu gesto alcançar essa expansão feroz do que se faz seguindo um ritmo feito de cumplicidades.

Todos se imaginam grandes compositores, mas falta depois uma cultura de intérpretes, essa que está implicada na transmissão de certos valores difíceis, desse gozo indisciplinado que a inteligência e a devoção comportam. Uma paixão pelas ideias em si, e não tanto pelo nome, por se dirigir aos outros como o detentor de uma intuição superior à de todos os outros. Como nos diz a poeta espanhola Gloria Fuertes: “Toda a gente pode escrever versos e não ser poeta;/ só o poeta pode não os escrever e sê-lo.” 

Há tantas formas de se ser intérprete, de carregar por vezes mesmo ao nível desses gestos ínfimos, ao nível dos reflexos, no ânimo e na dedicação como na intransigência que exige uma razão contundente como uma lâmina, há tantas formas de levar a uma extensão imprevista o fulgor de um verso, a sua clareza e tremor. E como é óbvio há muitos leitores de poesia que têm bem mais a dizer-nos do que aqueles que surgem coroando-se de poetas porque sujaram uns papéis com umas frases que ficaram a meio. Mas para se chegar aí, a essa compreensão mais subtil e profunda, é preciso antes de tudo reconhecer como a leitura, se exercida de modo a escapar aos condicionamentos de uma época, estabelece um contrato social de ordem diversa. “Aqueles que amam ardentemente os livros constituem, sem que o saibam, a única sociedade secreta excecionalmente individualizada”, escreve Pascal Quignard, em “Vida Secreta”. “A curiosidade por tudo e uma dissociação sem idade junta-os sem que nunca se encontrem. As suas escolhas não correspondem às dos editores, isto é, do mercado. Nem às dos professores, isto é, do código. Nem às dos historiadores, isto é, do poder. Eles não respeitam o gosto dos outros. Eles vão alojar-se, de preferência, nos interstícios e nas dobras, na solidão, nos esquecimentos, nos confins do tempo, nos costumes passionais, nas zonas de sombra, nas hastes dos veados, nas facas de cortar papel em marfim. Constituem, por si sós, uma biblioteca de vidas breves mas numerosas. Entrelêem-se no silêncio, à luz das velas, no recanto da sua biblioteca enquanto a classe de guerreiros se mata entre si com estrondo nos campos de batalha e a dos comerciantes se entredevora berrando a luz que cai a pique nas praças e nos burgos ou na superfície dos ecrãs cinzentos, retangulares e fascinantes que se substituíram a estas praças.” Mas para isto é preciso uma outra forma de se relacionar com a literatura, é preciso, como dizia há dias Paulo Bugalho “pensar a literatura como uma conversa em que se entra a meio. O rumor num café eterno, onde os intervenientes mudam mas o diálogo permanece, conduzido por ninguém. Deixam-se as palavras de um na boca de outro e esse continua a música. Quem entra (mudando já a metáfora) abandona-se na corrente pelo exacto tempo em que dura o ar nos pulmões (há também quem se deixe afogar).”

Manuel Hermínio Monteiro, que teria feito 70 anos no mês passado, e que deixou um vazio extraordinário no campo da edição literária, devia a uma relação de fascínio radiante com a leitura o ânimo que fez dele um dos mais vigorosos intérpretes dessa função da leitura como uma busca daqueles que procuram realizar-se do outro lado da vida, escapando de todos os constrangimentos que nos são impostos, trabalhando para essa sociedade secreta individualizada. Em 1997, no 25.º aniversário da Assírio & Alvim, este editor nascido, em 1952, numa pequena aldeia do interior em Trás-os-Montes, deixava claro aquele que lhe parecia ser o grande privilégio de que gozavam os melhores espíritos da sua geração: “Achamos que a nossa postura tem a ver com o considerarmo-nos uma geração de herdeiros do grande legado da arte poética portuguesa”.

Numa das suas crónicas, ele que nascera numa casa sem livros, explica como foi que se deu a descoberta dessa passagem, a entrada para essa rede subterrânea feita nos interstícios e dobras de cada época: “Um dia aparece um livro. Por puro acaso. E por acaso, ou desleixo, já lhe faltam o título, o nome do autor e as primeiras páginas. É o primeiro livro fora da escola e da catequese. É um livro à solta. Duas ou três crianças juntando esforçadamente as suas letras acabam por devorá-lo. É Verão. As crianças levam o livro para um lugar fresco. Para debaixo dessas ramas de ervilhas que crescem desenfreadamente com as dos feijoeiros pelas estacas, cheias de flores brancas e vermelhas. Jamais saberão o título daquele livro incompleto, mas foi por ele que alcançaram pela primeira vez o fascínio do mar que as montanhas circundantes não deixavam ver.”

Aí está, nesta breve lenda originária, e em caracteres quase míticos, na medida em que invocam o poder da infância para intuir entre os obstáculos e precipícios esse impulso que exige o além. Por meio deste episódio, MHM ilustra a relação de esplendor que passou a ligá-lo à leitura, ao seu efeito de promessa que chega a ser muitas vezes mais fértil do que aquilo que, depois, chega realmente a cumprir. Pois não chega a ser tão decisivo um destino, como o são esses indícios que incitam alguém a buscar outra coisa. De resto, na crónica agora recuperada num volume de homenagem pelos 70 anos do editor, intitulado “Pássaros livres”, MHM esclarece que nem se tratava aquele livro à solta de algum clássico – “não era nenhum livro de Melville, de Stevenson ou de Conrad. Era uma história simples para adolescentes sobre um homem em perpétua aventura pelos mares”…

Resultando de uma parceria que inclui a Câmara Municipal de Sabrosa, concelho onde fica Parada do Pinhão, a aldeia onde nasceu Hermínio, o Espaço Miguel Torga e o Teatro de Vila Real, também este livro que se publicou para assinalar a efeméride, não é mais que um singela proposta, sem grandes pretensões, mas que ajuda a estabelecer mais outra inflexão no mapa da memória, articulando as recordações após a morte de uma figura decisiva no que chegou a ser um dos momentos mais dinâmicos da divulgação da poesia entre nós. Como escrevia Enrique Vila-Matas numa crónica publicada no final do mês em que o amigo e editor desapareceu, junho de 2001, “as recordações amontoam-se de repente e agora tudo não é mais que um perpétuo instante de uma enorme perda, de desolação pela tua partida, embora esta noite, enquanto escrevo, dir-se-ia que as ruas da nossa amizade fluem triste mas docemente.”

Num livro que recolhe uns poucos dos tantos poemas que MHM nunca chegou a reunir (tendo os aqui publicados saído dispersamente em revistas ao longo dos anos), algumas crónicas ou apenas excertos, uma longa e muito completa nota biográfica, além da excelente entrevista que Anabela Mota Ribeiro lhe fez pouco tempo antes da sua morte, e que se tornou o mais eloquente testemunho da paixão que o levou a fazer um traçado luminoso a partir de caminhos ignorados e fendas secretas.

Voltando à tal crónica, que se intitula justamente “Uma rara magia”, Hermínio esclarecia aquilo perseguem esses interpretes que, sem o saberem, estão empenhados em segurar aquele espanto que arrasta algo do próprio encanto genesíaco consigo, muitas vezes contra uma sociedade que, traindo o sentido da criação, nos encerra no fedor de noções sufocantes: “Compreende-se, por intuição, os trabalhos misteriosos da terra e do céu”. Mas para se escapar a toda esse enredo pútrido de intuições e escolas que encerram a vida e a fazem cheirar mal, é preciso uma cultura que sustente esse ânimo evasivo, e, assim, como em redor de um lago, como num breve poema de Leopoldo María Panero, “Sapo contra sapo enfrentam-se e lutam/ e trocam a sua saliva/ ah comunhão de saliva/ ah comunhão do espanto.”

Assim foi com aqueles miúdos juntando-se esforços para desbravar por meio daquele livro incompleto um caminho através das montanhas para o mar. E depois, mais tarde, esse leitor que se formou então naquele espanto partilhado, compreenderia mais tarde, ao descobrir a prosa de Camilo, que, muitos mais importante do que “as sanguíneas histórias, interessavam as palavras ‘indecifráveis’, ásperas, e inesperadas em cada página”. E depois compara esse encontra a um momento crucial, a tradução que permitiu aos leitores livrarem-se dos padres e ir diretamente às fontes, desenhar autonomamente o seu caminho e confronto com as sagradas escrituras: “Era como se a missa em latim tivesse explodido, projetando pedaços, alguns intactos, por dentro daqueles livros amarelados.”

Em grande medida, o que MHM nos trouxe foi essa sua capacidade de construir, por meio da actividade de editor, “uma floresta vigilante” que os leitores pudessem penetrar reservando intocado o seu sentido de aventura. “Por não terem medo era-lhes permitido reconhecer o real e saborear os sinais”, lê-se num dos poemas recolhidos em “Pássaros livres”. E se há algo que merece uma crítica mais severa nesta edição é o limitar-se a recolher textos ou testemunhos que proferidos logo a seguir à morte, de Hermínio, como a já referida crónica de Vila-Matas, ou o obituário que Jaime Rocha assinou no Público, com o nome de Rui Ferreira e Sousa. Mas esse é, afinal, mais um sinal da perda e da ausência que, nestas duas décadas que se seguiram, se revelou absurdamente irreparável. Em certo sentido, o desaparecimento de MHM significou a completa perda de audácia e de projeto por parte da edição que aprendeu a ir buscar fundos e valer-se de um enredo de cumplicidades à volta das instituições públicas e das estruturas do poder local.

Depois de Hermínio, aqueles que parecem ter tomado notas e aprendido algo com ele, não fizeram outra coisa senão sangrar as mesmas instituições ou outras, mas agora para seu benefício próprio, sem grande sacrifício e, sobretudo, sem construir um espaço mais amplo e colocá-lo ao dispor dos que venham a chegar depois. No fundo, o falso dinamismo das actividades culturais sinaliza uma dispersão de eventos que se esgotam em si mesmos, toda uma panóplia de celebrações, comemorações e conferências que não deixam qualquer lastro, não geram uma verdadeira disponibilidade e antes deprimem e desgastam o público e os leitores. Logo no arranque do obituário, Jaime Rocha elenca alguns dos autores que Hermínio editou e defendeu, tendo-os como uma família, “tantos que ele amava e divulgava como se os versos tivessem saído dos seus dedos”. E neste retrato emerge uma figura quase antinómica face à maioria dos editores portugueses, particularmente aqueles que estão ao leme de selos sustentados em grandes aparelhos empresariais.

Numa altura em que, no nosso país, a edição de originais atravessa uma depressão profunda, e os novos autores não encontram quem os edite e lhes dê uma hipótese (isto sem contar com uns quantos oportunistas que se limitam às edições tipo fotocópia para vender aos familiares e amigos do autor), e quando mesmo os mais ufanos editores independentes se limitam a importar e traduzir os sempre “geniais” autores estrangeiros, na sua larga maioria convenientemente mortos, e que por cá são usados como penhor da fúria subversiva destes actores marginais, erguendo do pé para a mão catálogos bem afim do regime de luxo a que o pequeno tráfico se condena, neste ambiente é que MHM se impõe não só por tudo o que fez, mas também por tudo o que, depois dele, mais ninguém soube fazer. “Aos vivos, editava-lhes os livros, acompanhava-os, ocupava-se deles”, lembra Jaime Rocha. E recorda ainda essa outra noção que Hermínio tinha do trabalho da edição e que aclarou numa entrevista ao Público, em 1997: “Às vezes, tenho a sensação de que a edição é outra forma de escrita, é uma maneira de escrevermos um livro maior.” E, como prova disso, é-nos recordado também que o seu último acto poético, que chegou aos escaparates dias antes da morte do editor, foi “Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro”, a maior e mais completa antologia alguma vez publicada entre nós de poetas de todo o mundo.

Ao contrário de tantos editores, estes que surgem mais como usurários, obrigando os autores que publicam a contraírem uma dívida impagável, passando depois a actuar como meros agiotas e a exigirem uma lealdade canina, erguendo esses projetos editoriais como “conchas ocas onde projetam as suas fantasias moribundas”, Hermínio empenhou-se até ao fim em que a poesia fosse como um corrimão para que os homens não abdicassem dessa evasão que lhes exige o espírito: “Desejamos que, diariamente, o leitor possa contaminar a passagem das horas com versos como este de Herberto Helder: ‘Temos um talento doloroso e obscuro./ Construímos um lugar de silêncio./ De paixão”, lia-se na edição do Poemário, um calendário anual que a Assírio editou até há alguns anos. Mas esse culto partia de se ser capaz de enunciar aquilo que se impõe do outro lado, enquanto diferença, aquilo que vale por si e como uma suspensão da parolagem, do falar fiado, da tagarelice que tomou conta do mundo e nos impede de entender ou exigir outra coisa. Naquele que foi o seu último testemunho, o prefácio de “Rosa Mundo” (“À maneira de uma cosmogonia”), Hermínio lembrava que, “como uma rosa de cujas pétalas centrípetas emana a beleza e o mais intenso perfume, sem nunca prescindir da defesa vigilante dos seus espinhos”, não existe nada que a poesia não tenha experimentado, “desde o mais recôndito silêncio do deserto, ao fragor das batalhas mais sangrentas”. Mas o que é decisivo, portanto, nem é tanto ter escrito um verso ou um poema, mas esse sentido que persegue as relações que neste mundo cultivam o outro, essa intuição do crítico, essa capacidade que tem de ser continuamente cultivada para se reconhecer o poema pela “substância do seu silêncio, pelo seu fulgor, pelo seu perfume, pela riqueza inesperada das suas sugestões”. Hermínio diz-nos que são da poesia as artes mais singulares de surpresa e de ocultação. Mas isto, e face ao mundo em que vivemos, impõe-nos uma tarefa constante se separar o trigo do joio, de não permitir que este seja traficado em seu nome. E eis as últimas palavras e um aviso do editor que, na sua generosidade e ânsia de comungar de um espanto mais vasto, quis uma obra maior, colhendo o oiro de todos os dias: “Aspiramos o seu perfume e dizemos, que bom seria se ele desse uma volta completa e perfeita a este mundo. Mas, simultaneamente, apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações. Da sua extrema leveza. Do seu silêncio de sangue e da sua banalização. Das artimanhas que permanentemente buscam interferir no seu campo magnético.”