Vai chover mas a quantidade “não vai mudar o cenário”

A depressão Óscar mal chega ao Continente ainda que estejam previstas chuvas para os próximos dias. Água que, admitem os especialistas do IPMA, não será solução para a seca que o país atravessa. Governo lança algumas medidas e municípios também mas a situação parece longe de se resolver.

Pouco choveu desde o início do ano e o cenário de seca é uma realidade. No início do mês de maio a ministra da Agricultura e Alimentação, Maria do Céu Antunes, afirmou ter assinado um despacho que reconhece a situação de seca severa e extrema em 40% do território nacional, afectando mais o sul do país. Esta decisão oficial permite accionar medidas europeias de apoio aos agricultores.

E de lá para cá, o cenário não mudou. Aliás, agravou, ainda que a chuva comece a dar o ar da sua graça, pelo menos durante esta semana. Aproxima-se a depressão Óscar mas não fará grande mossa no continente, sendo notória mais no arquipélado da Madeira.

Ao i, Cristina Simões, meteorologista do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), detalha que a partir do final do dia hoje “teremos alguma chuva”, lembrando que “todos estes dias temos tido alguma imprevisibilidade, principalmente nas regiões norte e centro com trovoada e aguaceiros”. E explica que “não é uma situação que vá afetar primeiro a Madeira e depois o continente, é diferente”.

Assim, a instabilidade prevista foi sentida durante a tarde de ontem com alguma precipitação e trovoada, uma tendência que deverá manter-se durante o dia de hoje com “ocorrência de aguaceiros, principalmente no interior durante a tarde e possibilidade de trovoada”. A partir do final da tarde desta terça-feira haverá “mudança de regime para períodos de chuva. Chuva mais persistente, generalizada a todo o território. Uma situação a manter-se também para dia 7 e dia 8”, detalha Cristina Simões. E acrescenta que “ao longo desta semana vamos tendo alguma chuva por todo o território, não muito forte mas com alguma persistência, devido então a esta depressão que está a afetar principalmente o arquipélago da Madeira, aí sim com alguma severidade, bastante chuva e vento. A nível do território do continente com menos severidade mas espera-se alguma chuva em todo o território, sim”.

Mas será esta chuva suficiente para amenizar a seca que o país atravessa? “As quantidades não são suficientes para minimizar a gravidade que o território do continente está a atravessar”, defende a meteorologista.

Uma opinião que é partilhada por Jorge Marques, especialista do IPMA, que ainda assim deixa a questão no ar: “Qualquer chuva vem amenizar um pouco agora se vai colmatar as necessidades é que não temos a certeza porque não temos ainda com grande fiabilidade as quantidades que vão cair”, lembrando que a chuva que tem caído é “muito concentrada a nível local”. O especialista diz que “tem havido grandes precipitações que muitas vezes servem mais é para estragar que para atenuar”.

O especialista diz ao i que é preciso ter em conta que as previsões mudam com alguma frequência. Na quinta-feira também está prevista chuva, ainda que mais na região norte mas “o sul continua uma desgrava, é das regiões que mais precisa de água neste momento”. O sul é a parte do território que está mais afetada, acrescenta, e não tem dúvidas que “as quantidades que vão cair não vão, de maneira alguma, com toda a certeza, mudar o cenário drasticamente”.

 

O que tem acontecido

A situação de seca vem acontecendo ao longo deste ano, em que pouco choveu. E o mais recente relatório mensal do IPMA, que diz respeito a abril diz que este mês classificou-se como “muito quente em relação à temperatura do ar e extremamente seco em relação à precipitação”.

E detalha foram ultrapassados “os anteriores maiores valores da temperatura máxima do ar em 60 % das estações meteorológicas da rede IPMA do continente, algumas delas com séries com mais de 60 anos. Verificouse ainda a ocorrência de 3 ondas de calor nos períodos de 2 a 11, 15 a 21 e 23 abril a 7 de maio”.

Já no que diz respeito à precipitação, “foi o 3.º abril mais seco desde 1931 (mais seco 2017, 11.5 mm) com um total de 18.2 mm que corresponde a 23 % do valor normal. Durante o mês ocorreram valores de precipitação mais significativos na primeira quinzena do mês e em especial na região litoral Norte e Centro”, detalha o instituto meteorológico.

 

2022, o ano mais quente

Todos os anos o país vive grandes momentos de seca, uns piores que os outros. 2022 foi um ano para esquecer. Em muitos locais os termómetros chegaram aos 46 graus e o ano foi classificado como “extremamente quente” em relação à temperatura do ar e seco no que à precipitação diz respeito. Foi o ano mais quente desde 1931.

Portugal contou nesse ano com seis ondas de calor – uma em maio, quatro no verão e uma no outono – e a média da temperatura máxima do ar foi de 22,32°C, mais 1,82°C que o valor normal. Os “últimos 14 anos registaram sempre anomalias positivas”.

Classificado “como extremamente quente em relação à temperatura do ar e seco em relação à precipitação”, 2022 foi o ano em que 80 por cento do território de Portugal Continental foi considerado “em seca severa extrema”.

 

As medidas do Governo

Acusado por muitos de não fazer nada em relação à situação, o Governo chegou-se à frente no final da semana passada e tomou medidas restritivas ao consumo de água no sotavento algarvio, onde pretende reduzir em 15% o consumo da água das massas subterrâneas no Algarve.

O ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, e a ministra da Agricultura e da Alimentação, Maria do Céu Antunes, anunciaram ter ficado decidido que a partir de agora, na barragem de Odeleite, a cota de utilização de água para a agricultura será reduzida em 20%, somando-se uma redução também de 20% para a água utilizada para campos de golfe e jardins. Já para os campos de golfe com capacidade para reutilização de água, a limitação será maior, na ordem dos 50%.

Além disso, foi criada uma task force especial dedicada a esta região, com a Agência Portuguesa do Ambiente, a Direção Geral de Agricultura, entre outras entidades do Ministério da Agricultura, com o objetivo de rever os títulos de utilização de recursos hídricos atribuídos (para mitorizar consumo de águas subterrâneas) e limitar 15% no consumo de massas subterrâneas na região mais a sul do país.

Sobre estas medidas, António Pina, presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL), diz que “já eram esperadas e que fazem parte de uma espécie de protocolo para quando estamos com estes níveis de reservas de água”. Ao nosso jornal, o responsável diz que os “primeiros cortes fazem-se sentir na agricultura e no golfe de forma a proteger o consumo humano a mais longo prazo possível”.

Questionado sobre se estas restrições poderão penalizar a região, nomeadamente no caso do golfe, António Pina defende que a expectativa é que não “porque esses campos de golfe vão ter que ser mais eficientes no uso dessa mesma água e vão ser, em alguns casos, servidos pelas águas residuais tratadas e vão ser obrigados a utilizá-las, porque o corte pode ir até 50% e vão ter que também recorrer a alguns furos, porque mesmo que essa água seja de menor qualidade, para não utilizar a água das barragens que essa está a ser produzido para o consumo humano”.

Mas as restrições eram mais restritivas no ano passado, principalmente no que diz respeito aos jardins. Sobre este assunto, o responsável diz que “essas indicações são aconselhamentos porque se trata do abastecimento público. E são as medidas que os municípios, de uma forma generalizada, vão adotar na tentativa de assumir este desígnio da região e este compromisso que é o aumento zero face a 2019”.

Sobre a task force, António Pina, atira: “O ministro disse que gostaria de ter um representante da AMAL dos municípios nessa task force de acompanhamento, como aliás tem acontecido. E esta task force é para fazer o acompanhamento nos cortes na agricultura e no golfe. O que os municípios têm dito e que eu também tenho dito é que está na hora de, nesta fase, não permitir o aumento da área agrícola”.

É preciso relembrar que, recentemente, foram anunciadas medidas para não autorizar novas produções, nomeadamente de abacate e de frutos silvestres. O presidente da AMAL diz que “não se fala em espécies, fala-se em novas áreas agrícolas de regadio e temos que pensar a longo prazo o modelo de desenvolvimento económico agrícola na região em face das necessidades de água. Estes representam 60% do consumo”. O responsável alerta ainda que “é preciso não diabolizar o golfe porque consome apenas 6% da água e tem um valor acrescentado bruto para a região superior à agricultura que consome 60%. É preciso proteger esta atividade tão importante economicamente e tão importante principalmente para a diminuição da sazonalidade na região”.

O i tentou ainda perceber junto de António Pina se há risco de não haver água nas torneiras ao que o responsável defende que as pessoas devem consumir água de forma moderada “como devem fazer nas suas casas todos os dias no ano”, defendendo ainda que “não vai haver falta de água” mas pedindo “por favor” para que a “tratem bem”. “Não vai haver restrições porque temos água para mais de um ano”, descansa.

Sobre a resistência no que diz respeito à dessalinização e reutilização das águas, António Pina diz: “Já sabemos que quando surgem estas situações aparecem aqueles extremistas ambientais que tentam pôr tudo em causa e que eventualmente poderão tentar dificultar o desenvolvimento deste grande projeto. A nossa esperança é que se tivermos que criar legislação que ultrapasse essas providências tem que ser criada e aí o Governo tem que estar atento para não deixar que muito poucos travem investimentos tão importante para muitíssimos. Sem água não há vida”.

E as medidas podem não se ficar por aqui. Ainda esta segunda-feira o ministro do Ambiente disse que não quer avançar com a possibilidade de mais medidas restritivas do consumo de água, mas elas podem ser necessárias. “O volume de consumo no Algarve este ano está superior ao ano passado”, disse Duarte Cordeiro, acrescentando que “se o consumo aumentar substancialmente e se as medidas que nós adotarmos não forem suficientes, provavelmente teremos de tomar mais medidas”.

Para já, o ministro “não quer fazer especulação” e acredita que a campanha de sensibilização que começa no dia 15 de junho no Algarve possa dar resultados. No entanto, num ano em que a região espera mais turismo do que em 2019, será “difícil”, como os municípios já admitiram, conseguir que os consumos de água sejam menores.

E é preciso relembrar que Portugal já anunciou que vai pedir a Bruxelas a mobilização extraordinária da reserva agrícola europeia, numa altura em que “os agricultores atravessam momentos particularmente difíceis” e a seca severa ou extrema, que cobre 40% do território nacional, coloca a produção alimentar em risco. “Está inscrito na agenda do Agrifish, um ponto com o nosso pedido, que Espanha, França e Itália subscrevem, em que solicitamos que a Comissão Europeia dê um sinal claro de preocupação em relação à utilização de água como recurso fundamental para produzir alimentos”, afirmou a ministra da Agricultura e Alimentação, alertando que “a produção alimentar está ameaçada” não só em Portugal, mas noutros Estados-membros.

Face a este cenário, a governante afirmou que o assunto irá ser discutido com a Comissão Europeia. A ideia passa por apresentar medidas concretas, nomeadamente para o setor pecuário altamente afetado pelos preços das rações, assim como pela hipótese de acionar a reserva agrícola que dispõe de cerca de 400 milhões de euros por ano em relação ao extra-Política Agrícola Comum (PAC).

 

Outras medidas

No Algarve, o encerramento antecipado das piscinas municipais nas áreas do litoral, redução dos dias de rega; cessar a rega dos espaços verdes públicos relvados com reconversão por espécies autóctones e com necessidades menores de disponibilidade hídrica, são algumas das medidas decididas na reunião do Conselho Intermunicipal do Algarve.

“As medidas consensualizadas na AMAL são, de resto, as que foram implementadas o ano passado e que, efetivamente, deram frutos na redução do consumo de água e que serão reforçadas em todo o território”, explica a AMAL. São elas a redução do consumo público de água nos jardins, encerramento antecipado das piscinas municipais, com exceção das piscinas nos territórios mais do interior, assim como a redução de lavagens de rua e a eliminação de lavagem de equipamentos, exceto a lavagem de contentores de higiene urbana.

Outro exemplo é dado pela Câmara Municipal de Loures que vai levar a cabo um projeto-piloto, que arrancou esta semana e que vai aproveitar e reutilizar a água das piscinas municipais da Portela para rega e outros usos não potáveis. O projeto tem como objetivo “evitar desperdícios e diminuir o impacto ambiental”, numa altura em que o país se depara com o “aumento da frequência e intensidade de períodos de seca e escassez de água”, explicou à Lusa o vereador com o pelouro da Energia e Sustentabilidade, Nuno Dias (PS).

Já no Alentejo, a Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo (FAABA) pediu ajuda ao Governo para ajudar o setor a enfrentar a seca na região. E diz que as já tomadas são avulsas e contrariam as suas aspirações.

Numa carta enviada à ministra da Agricultura, a FAABA alerta que o sul do país enfrenta graves problemas ao nível da agricultura, precisamente devido à seca e, por isso, lamentou “a atuação do Governo que não tem ajudado a mitigar estas situações, uma vez que as medidas de política são definidas de uma forma avulsa, com horizontes temporais curtos, e, muitas vezes, contrariando as legítimas aspirações dos agricultores”.

 

Quando a falta de água causa guerra

Olhando para o resto do mundo, não é só Portugal que enfrenta esta dificuldade. Na vizinha Espanha, por exemplo, a seca estende-se a várias regiões e a zona mais afetada é a Catalunha e nem as chuvas recentes trouxeram alguma salvação. As autoridades espanholas já alertaram que abril foi o mês mais quente e seco dos últimos 60 anos e as barragens estão praticamente vazias.

O problema maior é quando a falta de água pode resultar em guerra. O alerta mais recente vem da Water Peace and Security (WPS) cujos investigadores desenvolveram um “instrumento de alerta precoce” para prever se a escassez de água conduzirá a conflitos.

Além da Europa também a Califórnia, nos EUA enfrenta uma situação de seca. “Estas são regiões áridas e semiáridas que têm lutado com a escassez de água durante muito tempo, mas as alterações climáticas estão, naturalmente, a piorar as coisas”, disse a coordenadora da WPS Susanne Schmeier, alertando para “muitos outros fatores que podem levar a conflitos entre diferentes grupos de utilizadores de água, diferentes províncias, ou em alguns casos, países inteiros”.

Segundo os últimos dados da WPS, ainda referentes a 2022, há várias zonas onde estes conflitos podem existir como, por exemplo, Quénia, Etiópia e Somália. Estes três países foram atingidos por seca durante vários períodos consecutivos e a guerra na Ucrânia, tendo reduzido as importações de cereais, deixou pelo menos 18,6 milhões de pessoas confrontadas com a subnutrição naquela zona e, por isso, segundo a WPS, a probabilidade de conflito naquela zona é elevada.

Mas não é a única. Na África do Sul a situação não é diferente tendo em conta que a seca prolongada está a empurrar a Baía de Nelson Mandela para o ‘Dia Zero’, um termo que é usado para o ponto em que os habitantes têm as torneiras fechadas. É preciso ainda relembrar que a região do Cabo Ocidental sofreu uma grande seca entre 2015 e 2020.

No Iraque, por exemplo, os níveis dos rios Tigre e Eufrates – linhas de vida para milhões de iraquianos – estão baixos a um nível alarmante. Para que se possa ter uma noção, no final de maio, os níveis dos rios desceram 60% em comparação com o ano passado. A escassez de águas superficiais forçou o Ministério da Agricultura a cortar as colheitas nas áreas irrigadas para metade. Por isso, o país pediu à Turquia e ao Irão para que libertem mais água do rio. “Pouca ou nenhuma ajuda vem de países a montante, enquanto as províncias desafiam os esforços do governo nacional para gerir o problema internamente”, alerta o WPS.

No nível de risco de guerra juntam-se ainda o Irão e o Afeganistão que partilham o rio da região de Helmud, o que tem levado a que as tensões tenham aumentado porque os dois países competem pelo abastecimento de água.

Em risco estão ainda Paquistão e Índia. Este último confrontado com escassez de culturas e que impôs uma proibição à exportação de trigo.