Um pouco menos de individualismo

Os leitores de CD tinham chegado há pouco tempo ao mercado. Eu teria perto de dez anos e recordo-me bem do fim-de-semana em que o programa da família, depois de termos adquirido o aparelho, foi ir à loja da Valentim de Carvalho em Cascais, um espaço moderno e irreverente desenhado por Tomás Taveira, para comprar…

A escolha dos mais novos – eu e o meu irmão – recaiu sobre o álbum duplo do concerto dos Supertramp em Paris, enquanto os nossos pais optaram pela nona sinfonia de Beethoven e o bolero de Ravel. Quando chegámos a casa fez-se silêncio para pormos o novo engenho a funcionar: ouviu-se o disco a girar a alta velocidade no interior da aparelhagem, a que se seguiu um som limpo, sem interferências, quase metálico na sua pureza. Não havia aquela espécie de vibração ou zumbido que saía das colunas na era do gira-discos.

Lembrei-me deste episódio há dias, quando um amigo da família (e parente afastado) me convidou para conhecer a sua magnífica colecção de aparelhos de reprodução mecânica de música. O primeiro a tocar foi um fonógrafo de Edison, que funciona com cilindros que têm sulcos muito semelhantes aos dos discos de vinil. Assim que o cilindro começou a girar e o som saiu do aparelho, foi como se tivesse sido accionada uma máquina do tempo que nos transportou de imediato para as primeiras décadas do século XX. Uma vez que se tratava de um fado, foi como se tivéssemos recuado à era de ouro do cinema português.

Essa experiência fez-me pensar que não são apenas as melodias que envelhecem: cada época, de acordo com os meios técnicos e os instrumentos de que dispõe, também tem a sua forma preferencial de ouvir música, que resulta numa determinada paleta de sons, com a sua frequência e timbres próprios. Até há pouco mais de cem anos, para se ouvir música era preciso cantar ou tocar ao vivo – por isso o piano era uma peça de mobília indispensável em tantas casas. A invenção de Edison veio revolucionar tudo isso.

Mas se cada época tem uma forma preferencial de ouvir música, qual é então a que melhor define os nossos tempos? Encontrei a resposta para esta pergunta na montra de uma loja.

Quando olhei para o preço dos pequenos auriculares que estavam em destaque não queria acreditar: mil euros. Mil euros por uns phones de enfiar na orelha? Depois, reparei na variedade interminável de modelos disponíveis e, já em casa, ao fazer uma pesquisa na internet, descobri que os que me haviam chamado a atenção nem sequer eram os mais caros… Um site especializado dá conta de que o modelo Beats by Dr. Dre pode ter 114 diamantes incrustados e custar um milhão de dólares!

Por que penso eu que os headphones definem os tempos que correm? Em primeiro lugar, porque funcionam quase como se a música estivesse a tocar dentro da nossa cabeça, o que é sintomático de uma época que sonhou com ciborgues, inventou próteses e se dedicou ao estudo do cérebro e da consciência. Em segundo lugar, porque constituem uma manifestação clara de uma sociedade dominada pelo individualismo. Artur Jorge, que treinou a selecção dos Camarões, contou-me uma vez como os jogadores passavam as viagens a cantar em uníssono. Hoje a realidade é outra: quando os jogadores da Selecção Nacional ou dos grandes clubes são filmados a sair das camionetas, levam quase sempre headphones nos ouvidos. São acessórios de estilo, mas também são mais do que isso – como os cartões que se penduram nos puxadores dos quartos de hotel, parecem querer dizer: 'Please, do not disturb'.

jose.c.saraiva@sol.pt