O mistério poético de Herberto

Religiosos têm sido os maiores poetas portugueses”. António Quadros defendeu esta ideia em 1979, num texto de evocação de José Régio, a quem atribuía o pódio do génio poético português no século XX, a par de Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. É impossível saber se, porventura vivo, o filósofo estenderia hoje a graça a…

Herberto Helder fê-lo sem fidelidade a Deus (“destruído pelo extremo exercício da beleza”), mas com um visionarismo largo e profundo da vida, nascido da tentativa de toque poético nas coisas mesmas, directas e quotidianas (“vem aí o sagrado, e tornam-se radiosas as coisas mínimas”). Numa simultânea carnificação e coisificação da palavra, o poeta pesquisou gestos primitivos (como levar a colher à boca), uma iluminação primordial, a “alquimia do verbo” possuindo “todas as paisagens do mundo”, tal como Rimbaud a sonhou.

Não é justo que com Herberto Helder, cujo conhecimento profundo das coisas era tão anti-académico, se apliquem balofas considerações professorais (ainda que ele tenha convocado tantos autores canónicos, numa intertextualidade complexa). Recorro a categorizações formais apenas na tentativa de apresentar o que é, afinal, excepcional na sua obra: a simultânea informalidade e transcendência de um contacto (recriador e transformador) com a vida e com cada leitor.

Logo na estreia, em 1958 (O Amor em Visita), Herberto Helder abre para si um espaço único entre uma geração emblemática de jovens poetas. Misantropo, sábio, afasta-se de todas as cliques e exposições públicas. Parte de um surrealismo tardio, testa novas sintaxes, faz e refaz a sua obra desde 1963, a cada reedição de Poesia Toda e Ofício Cantante (última edição, de 2009), em Ou o Poema Contínuo (2001) ou A Faca Não Corta o Fogo (2008).

Empírico, pesquisa sempre a realidade possível da poesia: a difícil união entre o objecto e a metáfora. Primeiro a partir das memórias de infância ou da experiência do amor e da crueza da carne, depois em descoberta da decadência do corpo ou em discussão com a morte. Cada vez mais solitário e mais devotado ao fazer poético, cada vez incorpora mais nele os traços autobiográficos. Como se o corpo do poeta só existisse de facto ao tornar-se poema. Como se só assim atingisse o “instante perfeito, pré-babélico, desse fulgor em que mundo e verbo são idênticos” (Álvaro Manuel Machado).

Creio que Herberto Helder nunca quis ser um poeta hermético, no sentido filosófico ou prosaico do termo. Apesar de uma poesia inicial mais intelectualizada, o seu movimento foi de progressiva humanização. Apurada até à exaustão no contacto com a realidade das coisas e do corpo, a sua gramática aperfeiçoou-se também no desejo de expressão do sagrado e tornou-se profundamente pessoal. Comprovam-no os dois livros finais, Servidões (2013) e A Morte Sem Mestre (2014), últimas fulgurações de um poeta raro, tão forte que sobreviverá ao tempo, na sua “verdade última, sobre a morte do corpo”.