O princípio da incerteza

Não, não se trata do princípio da incerteza que inspira a mecânica quântica de Heisenberg, uma das mais importantes descobertas científicas do século passado mas cujas implicações permanecem ainda em aberto. Mais terra a terra, o que aqui está em causa e se mostra facilmente observável, depois do que se passou em Portugal nos últimos…

Referindo-se recentemente às incógnitas da atualidade portuguesa, o presidente do BCE, Mario Draghi, admitiu que, embora a incerteza seja “má para a economia, a incerteza política faz parte da democracia”. O próprio Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças alemão, transigiu numa condescendência lírica, afirmando que “a vida é sempre cheia de incerteza” e que essa incerteza faria parte, aliás, da sua “beleza”.

Apesar de tanta compreensão, não parece que António Costa possa dormir tranquilo como próximo primeiro-ministro, quando chegar o momento do choque com a realidade imposta pelas instâncias europeias. Com efeito, o princípio da incerteza democrática revela-se dificilmente assimilável por uma Europa onde vigora a regra – nada democrática – de que ‘não há alternativa’ aos dogmas orçamentais e financeiros impostos por Berlim e Bruxelas.

É este o caminho das pedras que espera Costa, entalado entre esses constrangimentos externos e a aplicação do acordo anti-austeridade laboriosamente negociado entre o PS, o Bloco de Esquerda (BE), o PCP e o PEV. Apesar da inesperada reviravolta na história da democracia portuguesa representada por esse inédito acordo de Governo, as reservas e as desconfianças entre os subscritores dos documentos (tripartidos, em vez de um documento comum) fazem temer um casamento de curta duração – como, de resto, acabaria por admitir o próprio líder do PS.

Ora, não obstante tudo isso, e ainda sem esquecer os tremendos (eventualmente intransponíveis) obstáculos que um Governo minoritário do PS apoiado pelo BE, o PCP e PEV irá enfrentar, há dois pontos essenciais que não se podem pôr em causa. O primeiro é a legitimidade da maioria parlamentar em que assentará esse Executivo. O segundo é a possibilidade estimulante de se iniciar um novo ciclo político depois de quatro décadas de um arco governativo sempre fechado à formação de um Governo de esquerda.

Evidentemente, esse Governo nunca existiu até hoje porque a esquerda desunida e refém dos seus diferendos históricos não foi capaz de assumir tal compromisso. É certo, também, que profundas divergências ideológicas – nomeadamente sobre a União Europeia, o euro ou a NATO – permanecem entre os subscritores do acordo, como, aliás, é explicitamente reconhecido por todos eles.

Mas, como acontece com tantos governos resultantes de apoios pluripartidários por esse mundo fora, isso não impede a existência de pontos de convergência suficientemente importantes para sustentar uma alternativa política.

O fator principal que inspirou essa alternativa foi, de resto, uma rejeição comum das terríveis consequências sociais da política de austeridade seguida, com arrogância autista, pela coligação de direita. Foi essa política que tornou possível a inesperada plataforma entre os partidos de esquerda, apesar de tudo o que ideologicamente os separa. E a prova de que a coligação não percebeu isso é a sua insistência na legitimidade que lhe adviria de ter ganho as eleições, escamoteando o facto de ter perdido a maioria parlamentar (e, já agora, uma base imensa de eleitores da classe média).

Para a direita – e também para os socialistas mais a ela chegados – o PS estaria condenado a permanecer refém da coligação no poder e esperar pela sua vez. Ou seja: abstendo-se como de costume e reeditando uma vez mais o eterno ciclo do arco de governação que se arrasta há quarenta anos.

Pense-se o que se pensar das intenções reservadas de António Costa, o seu direito constitucional de chefiar um Governo assente numa maioria parlamentar – face à ausência evidente de outras alternativas – é rigorosamente indiscutível. Claro que isso não impede o ceticismo sobre o futuro da solução encontrada, mas também está por provar que essa solução não será capaz de ganhar apoio popular e eleitoral ou até de ultrapassar os obstáculos externos. Mais cedo ou mais tarde, a resposta caberá aos eleitores – que julgarão soberanamente a ação do futuro Governo. Será um novo sinal de maturidade democrática.

Não há democracia sem o princípio da incerteza. Abdicar desse princípio significa conformarmo-nos com uma certeza desencantada: a redução da democracia a um desperdício e a uma abstração sem sentido.