O fio da meada…

O ‘baile de máscaras’ antecedeu o Carnaval. E, por este andar, o corso não vai longe.

O ruído mediático à volta da troca de sms e emails entre Mário Centeno e António Domingues tornou-se tão espesso e abrangente que ninguém sai bem na fotografia. Pior: já ninguém se interroga sobre o destino da recapitalização urgente da Caixa, aprovada por Bruxelas, nem sobre o interesse das esquerdas – do PS, ao Bloco e ao PCP -, em bloquear a comissão parlamentar de inquérito, encobrindo algo incómodo.

Num país com uma opinião pública forte, o que se sabe seria já suficiente para fazer cair o ministro e, talvez mesmo, o primeiro-ministro, porque só um selenita poderá acreditar na sua virgindade nesta intricada novela. 

Nada disto é inocente, e bem pode o novo presidente da CGD ‘rapar o fundo ao tacho’ e descobrir a ‘varinha mágica’ que lhe permita continuar com o estabelecimento de porta aberta e a liquidez mínima para honrar os compromissos à vista.

Percebeu-se que os parceiros da ‘geringonça’ entraram em desnorte, se não mesmo em estado de susto. 

O episódio de o PS ter avançado um ‘peão de brega’ para bater ‘forte e feio’ em Marcelo – embora posteriormente desautorizado -, não é uma trica ou um fait-divers. É um modo típico de atuação dos socialistas, pelo menos desde o tempo em que foram pastoreados por Sócrates, com muitos amargos de boca para Cavaco, conforme se queixa no seu livro de memórias presidenciais.

 

António Costa deve desconfiar da ‘fartura’ que algumas sondagens atribuem às intenções de voto no PS. E prefere, à cautela, seduzir o universo de eleitores dependentes do Estado, desde funcionários públicos a reformados e pensionistas, prometendo-lhes o céu, cheio de ‘vacas voadoras’.

Mas, para isso, precisa de tempo. E é esse tempo que está a fugir-lhe. A Caixa revelou-se de Pandora, o que está a lançar uma visível perturbação nas hostes.

Por azar, a oposição resolveu ser oposição. E tanto o PSD como o CDS estão a exercer o escrutínio que deles se espera, após um prolongado período de imobilismo e de apatia. Cada debate quinzenal no Parlamento está a sair torto a António Costa, e a má qualidade de muita gente que o rodeia faz o resto.

A questão da correspondência trocada entre Centeno e Domingues, não foi ‘privada’, como o PS atabalhoadamente quis impingir. Tratou de assuntos de Estado, não de frivolidades. O finca-pé dos partidos de esquerda, que levou à demissão inédita do presidente da comissão de inquérito, provou que há ‘esqueletos no armário’ que se querem esconder.

O caso tem a importância que tem a Caixa – e mal seria se não fosse feito um rigoroso apuramento do que correu mal. O dinheiro dos contribuintes obriga-o. A transparência democrática também. 

Costuma dizer-se que ‘a mentira tem perna curta’ – e o «erro de perceção mútuo» não menos. Desta vez, o ‘baile de máscaras’ antecedeu o Carnaval. E, por este andar, o corso não vai longe. O povo diverte-se, distraído com os reis Momo, enquanto a dívida aumenta e o rating é lixo. Depois, a Europa e o mundo não estão para brincadeiras. 

 

Carlos César confessa que «não escolheria [Mário Centeno] para orador de um comício». Compreende-se. Quem é que antes da ‘geringonça’ imaginaria, também, este profissional da política como presidente do PS e líder parlamentar? Provavelmente nem os seus mais próximos. 

A ‘floresta de enganos’ é vasta. E a Caixa guarda muitos segredos da época em que o braço de Sócrates era longo e obedecido, sem pestanejar. 

O fio da meada não anda longe. A Justiça, perseguidas várias pistas, estará à beira de deslindar o imbróglio. As esquerdas perceberam isso. 

Por coincidência, Cavaco veio confirmar, agora em livro, que percebeu também muitas coisas durante os seus dois mandatos em Belém. E não hesita em contá-las ao pormenor, prestando contas dos seus silêncios. Mais vale tarde…

 

Nota: Com a morte de António Freitas Cruz o jornalismo perdeu um dos seus grandes nomes. Foi ele quem relançou o Jornal de Noticias do Porto – a sua paixão de sempre como jornalista -, promovendo-o a uma dimensão nacional que não tinha. Sob o seu impulso, o JN rompeu com a limitação regional e ganhou ‘nervo’ nacional, com um invejável estatuto de credibilidade. Foi uma voz do Norte influente que chegou ao Terreiro do Paço.

Engenheiro de formação, Freitas Cruz combinava um invulgar talento editorial com não menos invulgares qualidades de gestor. Dedicou ao JN mais de trinta anos. O jornal deve-lhe quase tudo. Mas tem memória curta. Por isso, dedicou escassas linhas ao seu desaparecimento, quando lhe devia uma imensa homenagem.

Mesmo a Marcelo Rebelo de Sousa, que o conheceu de perto, não ocorreu uma palavra de despedida. Nem a Cavaco Silva ou a Marques Mendes, que o convenceram a assumir a administração da RTP. 

A memória é cada vez mais a circunstância, o partido, o adro da capela. Uma tristeza.