Nascido a 3 de janeiro na Foz do Douro, que lhe viu correr a infância, foi preso aos 7 anos por conduzir uma bicicleta sem licença. A figura da transgressão, que pedala com regularidade no seu terreno literário, haveria de manifestar-se, sem inocências, ora em poemas de bem realizada contrafação irónica, a virarem do avesso a formulação canónica dos mitos clássicos, ora nos textos do temível polemista cultural e do humorista verrinoso que Vasco Graça também foi. O exercício da advocacia deu-lhe o que designava por “a dimensão civilizada da agressividade”.
Graça Moura tornou-se autor do Porto ao entrar, de ego cheio, numa livraria com “o embrulho triunfal”. Da Invicta cidade da estreia literária, com “modo mudando” (1963), um livro de título premonitoriamente camoniano, “pago em suaves prestações” com os primeiros salários obtidos como correspondente de línguas numa empresa do setor conserveiro, em Matosinhos, haveria o jovem VGM de transitar para a cena literária e cultural portuguesa e europeia. Do “embrulho triunfal” faria (auto)ironia, de Camões a sua figura tutelar e do umbigo indecisa linha de fronteira. “Poeta até ao embigo/ os baixos prosa” – assim se definiu, dando corpo à tensão que anima toda a sua escrita.
Depois, em 1987, veio o primeiro romance, “Quatro Últimas Canções”, logo seguidas de “O Naufrágio de Sepúlveda”, tendo publicado desde então mais nove títulos neste domínio. Mas a poesia … A sua é faladora: mete conversa com tudo e com todos, até com a ortografia, se aceitarmos, como escreveu Bernardo Soares, que “a orthographia também é gente”. Mete conversa com as musas que nela se passeiam em novos arranjos, podendo dar-se o reverso: “ – você dá-me um cigarro?, disse a musa / de repente a meu lado”. Mete conversa com os seus antepassados literários, com destaque para Camões, com quem mantém trato intenso. E mesmo aqueles autores com os quais cedo se incompatibilizou, como é o caso de Pessoa, lhe merecem sempre uma irónica palavrinha: “tinha a certeza certeira/ de que na atroz barafunda/ havia de haver maneira/ de em edições de primeira / ter uma vida segunda”. Mete conversa, ainda, com os seus contemporâneos, das mais destacadas figuras do mundo da literatura e das artes ao leitor comum, que pode bem surpreender-se com a agressividade de um registo mais assertivo: “e tu / não me interpretes demais que podes magoar-te no arame farpado. / escrevo sempre com rebarbas à mão e ainda ficam as do papel rasgado”
Desenvolta, lúdica, convivial, praticante do livre culto da coloquialidade, do desassombro e mesmo da insolência, e nisto fiel a uma assumida matriz portuense de valores, a poesia de VGM meteu conversa até com a morte, mantendo-a à distância da retórica trágica e da contemplação melancólica. E todos os lugares lhe serviam: o espaço apertado de um soneto – ideal para dialogar com a “morte convencional” mas igualmente apto a celebrar a vida e a negar a finitude, como acontece no “soneto da exumação” – ou espaços estróficos mais amplos, a convidarem à discursividade de tom conversado que encontramos, por exemplo, num poema como “blues da morte de amor”. A diversidade de registos e cambiantes usada vai da coloquialidade quotidiana à linguagem grave, de sabor ironicamente barroco, por vezes sucedendo-se no mesmo texto em descontraída fluidez: “dizem que a coisa é assim: a grande sonsa / crepuscular alastra pelas veias, / fogem tacto e olfacto à geringonça / e o gosto, o ouvido, a vista e as ideias”.
Do diálogo mantido com a morte nos falaria o “testamento de vgm”, publicado em 2001, a escassos meses de o autor se tornar um “duplo trintão”. Chegou acondicionado em caixa de cartão, espécie de invólucro destinado a acomodar um corpo textual lúdica e humoradamente dinamizado pela ideia da morte própria, à qual o poeta-tabelião então acenava de longe com provocações de humor gelado. Uma tal “escritura” impressionava, desde logo, pelo gesto de quem ensaia um adeus, entregando à posteridade o último elo diacrónico de uma cadeia de livros que haveria de estender-se até “Retratos de Camões”, postumamente publicados.
Mesmo aquele leitor mais familiarizado com o trabalho poético de Graça Moura (e com a sua ampla paleta de tons e de registos) terá experimentado uma certa perplexidade diante de um volume que se dirige aos seus contemporâneos para manifestar um irónico descaso pela reputação póstuma, parodiando, ao avesso, a crispação de Jorge de Sena: “citei autores, pois que me citem, / ou me distorçam, ou crocitem, / me esburguem todo em fim de festa, / mas acrescento mais um item / e nada deixo a quem não presta”. A crítica, avessa à nudez confessional, aos tons do humor negro, e negativamente impressionada com a “balada do bom cavaquista”, ali incluída, começou por vê-lo como uma espécie de anomalia no seu percurso literário.
Em vão se buscará ali o poeta de lirismo meditativo recuando perante as tentações confessionais de pendor biográfico; aquele que escreveu a sombra das figuras, instrumentos para a melancolia ou uma carta no inverno, para nomear apenas alguns dos livros que contêm, provavelmente, a melhor poesia de VGM. E também não se achará no testamento a sua ironia discreta, trocada por modos agrestes, desabridos, uma linguagem mordaz e mesmo obscena. Nem o tom elegantemente desprendido que marca boa parte da poesia do autor e nos faz apreciar a subtileza de pensamento de um homem culto e de gosto refinado que se movia na vida com esmerada educação. Mas nele reconheceremos certamente o estilo “mordaz mordendo” que assistia o cronista de “Os Nossos Tristes Assuntos”.
Composto à maneira de Os Testamentos de François Villon, que traduzira poucos anos antes, este testamento não tem como ponto de arranque a iminência pressentida da morte, que então ainda não figurava no retrovisor (para aludir a um título bem significativo da sua obra ficcional), nem, em boa verdade, existe para dispor de outros haveres que não o pecúlio de vivências de um escritor de experiência múltipla, poeta e homem político guiado por um projeto de cultura que o animaria ao longo de 50 anos de vida literária.
Na sua textura biográfica, o testamento, espécie de encenação de uma ausência, é, paradoxalmente, um livro que leva longe quer o sentido do fingimento, quer o programa poético que resumida e metaforicamente se anuncia no poema de abertura de “modo mudando”, que justamente se caracteriza por uma espécie de sobre-exposição do poema (“exponho a ferida ao ar sem protegê-la / para que infecte e frutifique”).
Contrastando com a seriedade habitual em ocasiões do género, as deixas testamentárias de encadeamento sucessivo contemplam família, amigos, inimigos (tratados com inclemência) – e não esquecem o (eterno) feminino, contemplado nas musas que o acompanharam. Sequer as casas editoras, referidas em extensa e metódica enumeração. Ao leitor coube em sorte um retrato poético perante o qual se levanta uma interrogação difícil de solucionar: onde termina o fingimento da vida e começa a verdade da ficção? O poema “rondó da escrita”, ambíguo o suficiente para não excluímos dele a possibilidade de um aceno à posteridade, parece apostado em manter a confusão: “no que escrevi me traduzi/ e traduzi outros também/ e traduzindo me escrevi […] //havia sempre mais alguém/para o chamar então a si,/ também vivendo o que menti,/ mas como seu, mas como sem/ ter sido meu o que escrevi /[…] e que mal tem?/No que escrevi sobrevivi.”