Hélia, um nome de que a própria nunca gostou. Por sentir que traía a sua natureza, a discreta persuasão que sempre lhe foi reconhecida. Mas há nele algo mais do que a imediata presença sonora. Por trás da sua escolha, pulsa toda uma crónica de um tempo e de um país envilecido. Como um fruto agreste, caiu neste chão na graça do ano de 1949, estando bem viva no pai a chaga de uma recente passagem pelos calabouços da ditadura. Num tempo em que o sexo se conhecia só no nascimento, ele insistira que, no caso de nascer mulher, se chamasse Maria da Liberdade. Era uma forma de entrar no mundo pela porta da heresia. Mas separado da mãe na maternidade, quando a menina nasceu, ficou claro que aquele nome não passaria. Aflita, enraivecida por não poder consultar o pai, ela colheu o mais alto fruto que alcançou na memória, o mais invulgar nome que conhecia. Baptizou-a Hélia.
Até ajuda ter essa espora tão junto à pele: um nome que quase nos fere de cada vez que nos chamam. Hélia cresceu em Mafra, ao jeito rural como os miúdos formam bandos, em grupos mistos, e vão tomando a consciência a par do território – «andávamos com flechas e arcos e à pancada pela tapada e no jardim, que eram como florestas medievais», contou numa entrevista há uns anos.
Com a sua razão e sensibilidade arisca, foi escapando dos trilhos, e nunca arrumou os passos ao padrão dos universos femininos. Não se ficou sequer pelo recorte herético, mas retirou força à harmonia entre as mais perduráveis pulsões humanas, à cultura clássica, e o alvoroço poético da sua escrita é o testemunho de uma alma entre essas que «possuem a intuição panorâmica do Cosmos». Sem um projeto de obra, os textos trazem aquela vibração que levou Camilo a dizer dos homens que, «se Deus não existir, a crença deles fará tremer o nada».
No seio de brumas genésicas, a lâmpada litúrgica de Hélia balança, bebendo nos gregos antigos pelo pires que se estende aos gatos, e com essa mesma sorrateira, elegante, doce graça. Acaba de publicar Um Bailarino na Batalha, uma reflexão que a um mesmo tempo se arma de uma trama ficcional, para articular a realidade, e do arroubo poético, para colher nos mitos a clareza e destrinçar a dupla face com que a Europa encara hoje os refugiados. Personagens de um terror humano extraordinário, são eles os protagonistas da Nova Odisseia, obrigados a fugir, voltam-se para o velho continente na esperança de que este se mostre magnânimo como prometeu ser.
Quando começou a escrever este livro?
Tenho uma noção rigorosa de quando comecei a escrevê-lo porque foi um processo muito sui generis. Tive um padecimento traumático durante dois anos, em que me vi impossibilitada de escrever o livro que tinha em mãos. Entretanto, vou voltar a ele. Já me encontrei outra vez com ele e estamos em bons termos um com o outro.
O que aconteceu?
O título foi divulgado. Inopinadamente, porque tudo se passa num clima familiar no que toca à minha relação com o editor [Francisco Vale], que ultrapassa em muito uma relação de autor-editor. O título foi-lhe dito e ele entendeu que o romance estava pronto para sair e, por isso, este foi anunciado. Ora, eu tenho um tabu violentíssimo: não posso revelar nada sobre aquilo que estou ainda a escrever. Não porque seja supersticiosa, mas porque de uma vez em que dei um pedaço de um livro para publicação, no dia seguinte, não havia maneira de me encontrar com o livro. O resto do livro desapareceu completamente. Até hoje. Desde então, prometi que nunca mais revelaria fosse o que fosse do que estou a escrever.
Por que acha que isso lhe acontece?
Foi como se uma maldição me tivesse caído em cima. Entrei em pânico. Depois há aquelas coisas que parecem insignificantes, mas a que dou importância, e que é os amigos ficarem entusiasmados, e perguntarem o que é feito do livro, quando é que sai… e tudo se transforma num cerco de fantasmas. Essa assombração do livro cada vez me deixa mais estéril, mais incapaz de o escrever.
Isso deu-se quando?
Estes últimos anos foram terríveis para mim. Não consegui ter atividade nenhuma… Como eu digo, se há pessoas que hibernam, eu estiolo, literalmente. E estes estios estão a alastrar. Ressinto-me muito, mesmo fisicamente, porque é como se não tivesse a capacidade de estar viva. Esse ano [2016] foi muito mau do ponto de vista da minha relação com a escrita. Depois, no Outono seguinte o livro voltou a ser anunciado, e então decidi: agora é que acabou tudo. Porque ainda tentava voltar. O livro morreu sem ter dado o menor sinal. E quando me dei conta de que o livro acabara, percebi que também a escrita acabara porque não tinha mais nada no horizonte.
Mas a estação seguinte ajudou?
O Inverno foi também muito seco, também não me ajudou nada. Foi num saltinho que dei a Inglaterra, onde normalmente me sinto muito bem… No princípio de fevereiro, dia 1. Estava muito sol, mas tinha o ambiente inglês, e embora me tenha ficado por Londres, não indo às minhas cidades prediletas, ainda assim, sendo uma zona que eu não conhecia, pedi que me deixassem em paz. Dispensei a companhia e comprometi-me apenas com aquilo para que fora convidada. Assim, andei a passear, andei a conhecer a zona, andei por um parque, à beira de um pequeno canal… O tipo de sítios que me são mais acolhedores, e aí fui de certo modo salva: lá me veio a ideia de que, se aquele título passasse para outra coisa, se fizesse outra coisa, se calhar conseguia salvar o livro que agora não tem título (risos).
Então este foi como um exorcismo?
Este título claramente convidava para outro ambiente. A sua escrita teria de ser da ordem da poesia, não de uma narrativa estruturada. Mas isto serve para dizer que sei de cor as peripécias que levaram a que este texto surgisse. Foi de algum modo abençoado por uma coincidência: o último solo de um bailarino e coreógrafo de quem muito gosto: Akram Khan. Que estreou em Atenas uma dança chamada Xenos. Não veio cá, mas eu acompanho certos grupos de dança e fiquei apaixonada por aquela dança. Embora não tenha nada a ver com o ambiente do livro, e a causa próxima daquela coreografia seja outra, o resultado coreográfico deu-me uma imagem que preencheu o meu olhar quando estava a escrever este livro. Foi como se apadrinhasse a ideia do bailarino na batalha, que, para mim, é sempre, primeiro do que tudo, o cavalo. É a imagem que tenho de um ser que, no meio da batalha, surge como músculo, movimento e graciosidade aterrorizada. Não é o guerreiro, é o cavalo. Mas o guerreiro também se cola ao cavalo, e tudo é animal em agonia, em terror.
De resto, é a figura do cavalo que está no poema que serve de epílogo ao livro.
Sim. É uma imagem muito forte na minha vida, essa imagem do cavalo na batalha. Essa dança, essa coreografia.
Como foi ter visto a Europa a partir do Portugal de Salazar e vê-la hoje abandonar os valores de entreajuda do pós-guerra para acatar a lógica tecnocrática? Sente que passámos de uma consciência profunda do mal, e do princípio de solidariedade que este exige, para uma era cínica?
Eu já não conheci a Europa destruída, a das ruínas do pós-guerra. Quando comecei a viajar, com os meus 17 anos, a Europa tinha qualquer coisa de mirífico, por oposição a Portugal. Também não conheci a Europa na sua totalidade de movimentos. A minha experiência foi profundamente gregária, hippie, comunitária, e, portanto, passei ao lado da Europa de gravata e institucional. De qualquer modo, percebia-se que era um universo – por comparação com o nosso – extremamente evoluído e auto-exigente no caminho para o aperfeiçoamento da sociedade. Havia já muita consciência ecológica, havia um nível cultural que me parecia deslumbrante se comparado com o analfabetismo pragmático dos portugueses. É claro que a minha Europa foi também o Maio de 68. Entre os politizados e os que tentavam imitar uma vida pura, uma vida não tecnológica – e eu movimentei-me entre esses dois mundos.
A certa altura, as dificuldades da travessia do deserto conduzem a um desespero libertador para as personagens deste livro, ao ponto de algumas das mulheres se recusarem a continuar tapadas, a obedecer aos homens. Por outro lado, há também uma perda da inocência, como se estes refugiados, ao serem confrontados com aquilo que os espera, se dessem conta de que não há uma terra prometida. E essa perda parece refletir a própria condição da Europa.
É isso mesmo: a perda da inocência. A Europa perdeu a inocência. E esta já nem era assim tão pura… Tenho a sensação de que chegámos, com a fanfarra dos nossos progressos civilizacionais – nós, o Ocidente -, a uma espécie de júbilo pelo que somos, de auto-comprazimento. O bem-estar económico, seja real ou percepcionado, parece estar a rebentar pelas costuras. E não sei ao certo que fenómeno é este, que parece menos humano do que diabólico ou divino, mas de repente as coisas acontecem… Assim, depois do período de conquistas, o Ocidente parece ter alcançado esse regozijo com a sua perfeição: atingiu a sua própria beatitude. E sente que, para completar essa sua felicidade, tem de ser bondoso. Bondoso a todos os níveis, até ao nível da linguagem. Daí o politicamente correto. Estávamos, assim, a banhar-nos na nossa própria perfeição… Que não podia durar muito. Como as placas tectónicas estão em movimento também as sociedades estão em movimento.
Mas há algo de novo nisto?
Creio que nunca se tinha alcançado um período tão duradouro de bem-estar e de felicidade, além, é claro, de um sentimento de absoluta superioridade em relação às outras civilizações. E na tendência que há nos fenómenos civilizacionais para definharem ou implodirem ou são as ameaças que vêm de fora ou são os impérios que se destroem a si mesmos porque se abatem sobre o vazio que está no seu interior, e que vai aumentando.
Parece-lhe que é esse o momento que estamos a viver?
É uma percepção que vou tendo. A de que depois de tanta abundância, desse convívio tão fraterno entre os povos do Ocidente, essa abundância chegou a um extremo que só podia gerar a sua própria decadência. Quando olho para o Ocidente hoje vejo uma sociedade em decadência. Vejo a construção da bela civilização ocidental a abater pela força do seu próprio peso. Porque há abundância a mais, estamos doentes de abundância. Não era preciso mais nada. Essa abundância seria o suficiente para que perecêssemos. Claro que a acicatar isso há este passo que causa uma vertigem de mil anos em vinte anos de cronologia e que é dado com a chegada das novas tecnologias. Isso sim provocou uma grande revolução, que é aterradora porque não é acompanhada pela matéria humana. E quando falo de matéria falo também de espírito, porque as próprias faculdades mentais não estão aptas a acompanhá-la. Ora, isto cria um rasgão tremendo nas nossas sociedades. Mas essa seria uma outra conversa, também ela muito longa.
E o que é que isto provocou?
De repente, os outros acordam. A nossa felicidade, que nos faz estragar tanta coisa, estragar a terra, estragar os alimentos, estragar tudo à força de tanto termos, é agora ameaçada pelo outro. Eu tinha aliás uma frase que pedi ao Saramago que ma escrevesse num cartão. Ele disse-me certa vez uma coisa magnífica: «O outro existe. Sou eu». Tendemos a esquecer-nos que também somos o outro. Estamos tão empolgados com a nossa caminhada, pela extraordinária beleza e comodidade do sítio a que chegámos, que nos esquecemos que outros ficaram para trás. E que os outros têm quereres, necessidades e ambições como nós tivemos. E há uma história de dominação por parte do Ocidente que cria ressentimentos recalcados, e quanto mais recalcados mais intensos são.
De que modo entra aí a perigosa bondade dos ocidentais?
Esta coisa do ocidental bonzinho, que quer receber todos os refugiados, porque eles saíram de sítios horríveis, é uma construção típica de um teórico. Porque depois a prática da vida real desvenda o grande problema que está por trás disto, e que é este: enquanto temos a nossa casa, as nossas coisas, todo esse excedente de que nós vivemos, somos bons. Quando enfrentamos uma ameaça somos feras. E digo que somos feras porque são as feras que estão dotadas dos instintos que permitem a uma raça perseverar. E é a defesa animalesca, primordial, é o egoísmo que acorda nestas alturas. Porque, no fundo, o egoísmo é o grande motor dos grupos humanos em crise. E nós estamos a viver uma crise terrível. Pessoalmente, custa-me muito chegar a esta conclusão porque eu vivi de ideologia grande parte da minha vida. E a ideologia estrutura completamente um ser humano e fundamenta todas as suas reações, as suas palavras, as suas escolhas, e custa-me muito perder a ideologia. Mas eu quero ter a coragem de olhar e ver. E o que eu vejo é outra coisa. O que vejo com olhos nus, simples, só de olhar…
Então, sem os óculos escuros da ideologia, o que vê quando olha hoje?
O medo do outro. Um medo porque o outro é diferente. E todas aquelas questões que não nos atrevemos a discutir – como as grandes diferenças culturais, como o tratamento da mulher noutras civilizações, como o desejo de conquista -, existem, estão lá. E viu-se ao longo da história. E se acho que o homem não é o mesmo (nós não somos iguais aos meus gregos!), que o homem foi mudando… isso permanece. A civilização é uma camada muito fina e rebenta quando está diante de uma ameaça. E julgo que o primeiro passo para se trabalhar sobre isso é encarar as coisas como elas são. Ora, a maior parte dos ocidentais não quer sequer encarar as coisas na sua verdade. As pulsões, os medos, os pensamentos primitivos, que estão latentes em tudo isto.
Lembra-se do que foi que a levou a dar-se conta disto?
Estive uma vez com um dramaturgo esloveno, que tinha vivido aqueles episódios terríveis – lá está: os vizinhos que matam vizinhos… E porquê? Porque a ‘coisa’ acorda. E eu perguntava-lhe, com toda a minha ideologia humanitarista, como é que isso podia acontecer. E ele respondeu-me: ‘É muito simples. Tenho a minha família, quem a atacar morre. Não quero saber quem é, nem como se chama, nem a que pátria diz que pertence’. No fundo, estamos divididos em clãs, pequenas tribos, pequenas fações que acordam e começam a rugir. E o que é que penso depois de me atrever a olhar assim? Penso que depois de me despir de todos os pré-conceitos que fizeram a minha vida, e a vida de todos os – digamos – progressistas ocidentais, ao olhar para o mundo com olhos de hoje e não com o nosso antigo desejo, que oculta as coisa (ocultou sempre, e continua a ocultar), depois de ver exatamente o que se passa, então há que chamar pela outra coisa que faz parte do humano.
Que é…?
A grandiosidade, a capacidade humana de ultrapassar esse primeiro embate da sobrevivência e estender a mão ao outro. Muita gente está a fazê-lo, mas desarticuladamente… Recolhe-se os refugiados numa ilha grega e depois não se sabe o que fazer com eles. Mas também há crianças nas escolas na Alemanha… Porque a cultura de certos rapazes que chegaram é de desprezo pela mulher e de agressão se for preciso. Portanto, a resposta não é negar, não é fingir que não se passa, mas assumir: sim, isto acontece. Agora vamos pensar sobre isto e criar todo um trabalho. Um trabalho novo, e não uma solução antiga.
Vê-se que lhe custa ainda deixar o véu ideológico em nome deste novo olhar sobre o mundo.
Sim, eu ouço, olho, vejo e fico arrepiada. O meu corpo é um corpo de esquerda. Fisicamente estas coisas arrepiam-me, mas não quero que a minha cabeça seja tão instintiva como o meu corpo. Tenho ouvido muitos brasileiros, pessoas do povo, que apoiam o Bolsonaro e que se insurgem contra as pessoas de esquerda perguntando: ‘Se a maioria das pessoas votam nele não vos cabe aceitar a decisão da maioria? Não é isto a democracia?’. O mesmo se passa com o Trump. Se a democracia é a expressão da vontade de uma maioria, parece evidente que a maioria hoje não é a maioria progressista, que amou a democracia, que lutou pela democracia, e que elogiou as formas modernas de democracia, como a norte-americana.
E como responde a estes fenómenos?
Pela minha parte, só tenho um coelho na cartola: a palavra. Porque é muito pelo empobrecimento da palavra e pelo uso perverso da palavra que estas coisas estão a acontecer. O que começou a democracia, a dos gregos, foi o amor à palavra. Nós hoje estamos a perder completamente as palavras. Esta democracia, que vota em figuras autoritárias, em busca de segurança, em busca daquilo que falta a quem vive nas favelas, parece incompreensível para nós, os aristocratas da democracia, para quem esses desejos há muito foram satisfeitos. E este desencontro passa também por um desconhecimento da dura realidade que uma maioria enfrenta todos os dias.
Este tempo desafia-nos mais do que outros?
Primeiro provoca em nós uma perplexidade aterradora. Esse foi o meu primeiro estado, há poucos anos. A sensação de que não percebia nada do que se estava a passar. Não conseguia nem pensar sobre as coisas. Acho que era pior nessa altura. Porque depois há que dar um golpe de rins, ter a coragem de pensar sobre as coisas. O primeiro passo é des-pensar. Dar-se conta de que os instrumentos, os termos do pensamento que usámos até aqui, não servem mais. E a coragem é precisa antes de tudo para destruir o nosso próprio vigamento interior e construí-lo de raiz. Esvaziar as nossas convicções e partir das observações que estamos a fazer hoje. Talvez não estejamos preparados para isso do mesmo modo que não evoluímos o suficiente para estarmos à altura de – não é dominar a tecnologia que, felizmente, por enquanto ainda dominamos – acompanhar os avanços tecnológicos.
Quais são os sintomas desta disfunção entre o homem e a nova realidade?
O nosso corpo não mudou muito nos últimos séculos. Estamos um pouco mais altos do que éramos na Idade Média. Os polegares ainda não se alongaram apesar do muito uso que lhes damos. O corpo não diminuiu, apesar de as pessoas já não andarem. Eis outro sintoma da decadência: as pessoas comem, comem, comem, depois enfiam-se no ginásio a fingir que andam… Separaram-se completamente da geografia, vão para o ginásio em vez de andarem. O que é uma coisa absurda, um sinal de decadência absoluta… Mas face às exigências a que os nossos cérebros estão sujeitos, já deviam ter aumentado, e o nosso corpo diminuído, como consequência do uso que lhe damos. O corpo devia já ter atrofiado, porque as pessoas passam o tempo sentadas, ligadas a terminais… O nosso sistema afetivo também não evoluiu. Não posso ter mais amigos do que aqueles que as minhas capacidades afetivas me autorizam a ter. Quando alguém me vem dizer que tem 500 amigos, eu pergunto-lhe pelos nomes deles. E se a pessoa fica espantada, digo que eu sei de cor o nome dos meus amigos. Tenho capacidade para integrar o meu grupo de amigos. Portanto, isso não são amigos, são terminais. E depois lá está a perversão das palavras… Podiam chamar outra coisa, mas não, chamam amigos. Talvez daqui a quatro ou cinco gerações o corpo humano tenha já conseguido adaptar-se a esta nova realidade, mas por agora é-nos muito custoso. E vê-se a angústia das pessoas, porque estão a ser esticadas como nas torturas medievais. Estão a ser puxadas a uma dimensão que não corresponde à das suas capacidades.
Parece-lhe que as novas tecnologias deixaram já de nos servir e somos nós que somos escravizados por elas?
Fiquei entusiasmadíssima quando se deu a Primavera Árabe. Achei que era o mundo a mudar por obra e graça da internet. Era o desejo a impor-se à razão. Era a famosa aldeia global, era o contacto entre as pessoas de todo o mundo, um mundo de deuses ao nosso alcance, pela possibilidade de nos deslocarmos sem implicar um transporte físico… Mas viu-se no que deu. Porquê? Porque não há proporção entre essas possibilidades e a massa humana. Não há equivalência. Os tempos são diferentes e é impossível que o encontro seja harmonioso.
Na entrevista que deu em 2015 a João Céu e Silva [DN], referindo-se à crise económica, ele pergunta se os deuses nos falharam, e a Hélia diz que há muito os deuses abandonaram o nosso convívio e que esta é uma crise 200% humana.
Provoquei certa vez um grande escândalo – e isto porque acontece às vezes que aquilo que quero dizer não é entendido. Primeiro porque sou muito irónica, sou muito inglesa na forma de falar, e os portugueses não reagem bem à ironia. Outras vezes porque me parece que falo de outro mundo, outro universo de pensamento. A verdade é que detesto a polémica, detesto quando as vozes se levantam, detesto provocar discussões… Faço as coisas de boa-fé e acreditando na ideia que estou a expor. Mas deu um escândalo terrível uma comunicação que fiz sobre o D. Quixote em que defendi que ele enlouqueceu por causa dos textos e deixou de olhar para o mundo objetivamente porque tinha um texto a dominar o seu olhar sobre o mundo. Levo especialmente a mal aquele capítulo em que ele mata um rebanho de ovelhas porque na ideia dele são infiéis, são mouros. Ele vê tudo sob a influência dos seus textos de cavalaria, não é? E quando mata as ovelhas, senti-me implicada afetivamente (risos).
E o que desencadeou em si essa cena?
Levou-me a concluir que se trata de uma situação em que há um texto que cega o homem. E tudo o que ele faz é determinado por um texto. O texto sobrepõe-se à sua razão, à sua capacidade de ver e à consideração que ele pudesse ter pelo real. Daí extrapolei que o mal da humanidade é estar cega por textos, pelos grandes textos religiosos. É ler um texto como um valor absoluto, como correspondendo em absoluto à realidade. E o texto, que não passa de uma obra escrita por alguém, torna-se uma sombra que nos cai sobre o olhar e o pensamento toldando a nossa compreensão da realidade.
E porque é que os deuses já não fazem parte da equação?
Quando digo que os deuses se retiraram, isso aconteceu, em primeiro lugar, para dar lugar ao monoteísmo. Foi uma passagem muito flagrante, com aqueles imperadores romanos cristãos a destruírem todas as marcas da antiguidade clássica. A deitar abaixo, a incendiar, a aniquilar tudo. Esse foi o primeiro passo, foi o passo que levou a que uma pluralidade encantadora de textos produzidos pelos humanos fossem proscritos. E o monoteísmo dali em diante passa a ser o quê? Uma história da luta pelo território. As grandes histórias religiosas que hoje se disputam são lutas pelo território. Foi então que toda aquela pluralidade se viu destruída a favor de uma unicidade do olhar, de um texto único, que determinou tudo durante séculos e séculos. A arte, a literatura, tudo estava submetido àquele texto único e continua submetida a outros textos que procuram imperar, como é o dos muçulmanos, o dos judeus… e lá continuam eles a matar em nome da fé. Alucinados pela leitura dos seus textos.
E o cristianismo?
No Ocidente lá conseguimos, com muita dor, depois de sujeitos a perseguições, a experiências de horror absoluto, ir-nos libertando desse terrorismo do texto. E quando começávamos a respirar um pouco, e a respeitar a religião cristã como uma opção individual – com todo o direito de existir contando que não se torne uma religião de Estado nem um poder sobre os outros -, quando começávamos a respirar fundo, o que é que nos aparece? A ameaça de outros monoteísmos. Aquilo a que os sociólogos chamam sociedades não-contemporâneas. A nossa Idade Média é aquilo que vemos agora nos fundamentalistas islâmicos. E isto a ponto de os trajes serem realmente idênticos. É uma coisa extraordinária! As nossas freiras até há bem pouco tempo vestiam-se com aquele traje, tão semelhante na forma como se tapa o corpo feminino aos trajes muçulmanos que permitem ter a cara descoberta.
Vê o risco de sermos puxados de volta para esse passado obscurantista?
Tudo isto deriva de um enlouquecimento pelo texto. Tudo isto é humano. O que se forma é um vazio, e isso está patente nos movimentos new age, e nas diversíssimas derivações religiosas. Provavelmente, o homem não consegue viver só no plano da objetividade, nem das ilações científicas, que são tão pobres ainda. Ainda estamos no início do conhecimento científico. O homem não pode viver sem isso, e mesmo que o tenha substituído pela ideologia – e é evidente como o comunismo era uma religião, o fascismo era uma religião, e tudo isso deu os resultados que deu… Portanto, estas religiões não transcendentalistas não deram bom resultado. O que se vê é como essa aspiração se transforma em algo caricato. Esta coisa dos fãs e da celebridade, destes cultos laicos que têm ganho cada vez maior expressão. Tudo isso é humano e eu costumo parafrasear a célebre frase de Terêncio – «Nada do que é humano me é estranho» – mas tomando-a do avesso: «Tudo o que é humano me é estranho». Porque acho que ninguém entende realmente o ser humano.
E o que pode salvar-nos desse desejo de perdição?
Qualquer coisa de extraordinário, e que nos vem dos gregos: a capacidade de criação. Há qualquer coisa em nós que nos permite criar. Isso também está a ficar estiolado, justamente pela vulgarização. Porque hoje se confundem as coisas e a exigência é considerada elitista.
Depois de ter recebido o Prémio Camões, disse que achava que havia outros autores mais merecedores do prémio por terem carreiras literárias mais firmes. Também disse que, por não se obrigar a escrever, por não fazer outra coisa senão seguir a sua intuição e a inspiração que lhe surge, não se sentia merecedora de grandes honras. Há, no entanto, um ponto a partir do qual hoje a literatura e o espaço da criação parecem ter sido capturados por uma espécie de indústria criativa. Não lhe parece que a criação foi tomada pela lógica do negócio, negando assim a escrita como uma ocupação ociosa?
Não falo do que faço como um trabalho. O meu trabalho foi o de professora. E a minha carreira, muito modesta, foi como professora. A questão da projeção pessoal existiu sempre, foi sempre objeto de debate, inclusivamente junto dos antigos. Qual era o melhor escritor?, se era o inspirado ou se era o que se sentava todos os dias à mesa para trabalhar com afinco? Mas algo que temos de encarar de frente é o facto de o indivíduo querer exercer algum poder. Assim como o grupo quer poder, o indivíduo quer poder. E o poder ou é económico ou é social. E dentro deste inclui-se o prestígio. A maior parte dos criadores são pessoas vaidosas, pessoas que dão excessiva importância ao reconhecimento, à recepção crítica das suas obras. Não diria que é uma perversão, mas leva por vezes a comportamentos muito deselegantes. E claro, há as más línguas… Imagino mais do que sei, porque não frequento os meios, mas se dou um passinho para junto de alguém logo dou o passinho em sentido contrário porque aquela conversa não é sobre literatura. É sobre estrelas das críticas ou sobre traduções no estrangeiro… Sei que isso é bastante obsessivo nos criadores em geral, mas não tenho uma posição arrogante de o censurar ou considerar que o contrário é eticamente mais digno. Não faz mal que os escritores aceitem condições da parte das editoras que a mim me parecem absolutamente insuportáveis, violentíssimas… A mim parece-me uma escravização absoluta, mas as pessoas aceitam porque querem. Não há uma arma sobre a mesa, não há chantagem. O que não suporto é que se queixem disso. Se o fazem é porque entendem que há algum benefício que retiram desse dizer que sim às exigências editoriais: vende-se mais, é-se mais conhecido… É uma troca negocial e o que me ofende é que, depois, em segredo se queixem. Porque aí há aquela palavra extraordinária que as pessoas têm tanto medo de usar. A palavra ‘não’. É só dizer não.