Terminou mais um mandato no Parlamento Europeu. Foi o último cargo que exerceu na política?
Em termos de cargos políticos quase posso garantir que esta é a altura de pôr um ponto final. Começa a haver uma geração, em todos os partidos, com políticos com valor e é natural que haja uma certa renovação. Isso não significa que não vá intervir fortemente como cidadão e militante do PS.
Como foi este regresso algo inesperado, em 2016, ao Parlamento Europeu?
Começou por ser inesperado não ter regressado logo no início do mandato e depois foi inesperado esse regresso. Como se lembrará, todas as sondagens apontavam para a minha eleição garantida. Não se esqueça que fui indicado para o Parlamento Europeu pelo António José Seguro. Tinha condições para ter um lugar melhor. Mas quando se é eleito a meio do mandato fica-se numa posição extremamente frágil, porque estão feitas as distribuições das comissões e quem for a seguir ou se conforma com um papel apagado ou tem de se aguentar com aquilo que sobrar.
Numa carta de despedida que enviou aos seus colegas no Parlamento Europeu escreve que a delegação portuguesa não lhe deu condições para um mandato mais produtivo. Houve má vontade em relação a si da parte do PS?
Houve depois uma má vontade em relação a mim, porque desde a primeira hora que manifestei a minha oposição a esta solução política. Fui substituir a Elisa Ferreira e, normalmente, quem vai substituir um deputado fica com as funções desse deputado. Depois pode negociar, mas herda as funções da pessoa que substituí. No meu caso, cheguei lá e estava tudo distribuído. Fiquei com coisas totalmente marginais. Tive um ano, dos três anos no Parlamento Europeu, em que não tinha nada para fazer.
Quem não é a favor da ‘geringonça’ é marginalizado dentro do PS?
Claramente. Tenho a certeza disso. Quem não é a favor é penalizado e quem não é a favor e o afirma publicamente não tem hipóteses nenhumas. Isso sucedeu comigo, mas não só. Vai verificar-se isso agora nas listas de deputados. As informações que me chegam do interior do partido em Braga, no Porto, em Setúbal é que está em curso uma autêntica purga em relação a toda aquela gente que podia constituir o mínimo de alternativa.
Mas dentro do PS não existe oposição a António Costa…
Devia ter sido apresentada uma alternativa no primeiro congresso em que o António Costa se candidatou para marcar o terreno. Foi isso que defendi na altura. Ninguém fez isso, a não ser uns pequeninos sem grande interesse. Tudo isso conduziu a este centralismo absoluto que hoje existe no PS. O partido hoje vive uma situação em que o poder está concentrado em sete ou oito pessoas. Se você tiver relações privilegiadas com essas pessoas, tem tudo. Estamos reduzidos a isso. Aquele partido que ajudei a fundar, que era um partido aberto, desapareceu.
Já era assim no tempo de José Sócrates ou não?
Era ligeiramente diferente. Isto começou nesse tempo. Apesar de tudo, José Sócrates tinha um maior respeito pela diversidade. Tenho há algum tempo algumas dificuldades com o Zé, de quem sou amigo pessoal… Não vou falar sobre os aspetos que estão a ser investigados, mas discordei de algumas políticas que desenvolvia. Recordo-me que estive no gabinete dele, onde ele me chamou para oferecer um lugar, no Porto, que não aceitei, e na altura pediu-me opinião sobre o PEC 3. Disse-lhe que aquilo era um exercício de ficção que rapidamente se ia transformar num PEC 4. Ele respondia-me sempre, e com alguma razão, que eu era um pessimista. Mas não senti nessa altura um ambiente tão centralizador e tão esmagador.
Ficou surpreendido com o processo judicial que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates?
Na dimensão sim, mas na essência não. Fui percebendo que havia pequenas coisas que não jogavam bem. Algumas eram mesmo pequenas coisas. O tipo de conversas que ouvia não me deixava tranquilo, mas confesso que nunca pensei que isto pudesse atingir esta dimensão. Se é que a tem.
O PS tem lidado bem com este caso?
Não. O PS atual é o PS do Sócrates. A infraestrutura do chamado socratismo, que obviamente não tem de ter nenhum envolvimento nas ilegalidades que possam existir, transferiu-se toda para o poder atual. Basta olhar para o Governo para perceber que muitos estiveram no Governo de José Sócrates.
António Costa devia ter escolhido outras pessoas?
Exatamente. Isto é espantoso. Não estou a dizer que o Vieira da Silva ou o Augusto Santos Silva tinham conhecimento de determinadas matérias, mas a política devia ter regras completamente diferentes e períodos de nojo. Não consigo entender, independentemente de alguns deles terem muitas qualidades, como é possível fazer esta transferência. Isso é uma das coisas que me inquieta e que me leva a tomar algumas posições que depois me causam desconforto no plano estritamente pessoal. Obviamente que se vier a provar-se que um primeiro-ministro de um Governo socialista cometeu enormíssimas ilegalidades nós não podemos deixar de fazer um juízo de valor moral sobre as pessoas que o acompanharam.
Há dirigentes do PS que já assumiram ter vergonha do comportamento de José Sócrates.
O PS não tem lidado bem com esta situação. Eu continuo solidário, porque há aqui um aspeto humano em relação ao José Sócrates que falhou. Houve demasiada crueldade nalgumas afirmações que foram feitas.
Algumas dessas pessoas tinham sido próximas do José Sócrates.
Exato. E agora dão a entender que não o conheciam de parte nenhuma. Acho que os partidos não podem ser máquinas de triturar pessoas. Devem ser espaços de solidariedade e devem ter barreiras. Não podemos esquecer que o José Sócrates foi secretário-geral do PS e foi o único que conseguiu maioria absoluta. Foi levado ao colo por toda a gente. A sorte do PS é que hoje estamos com um vazio enorme ao nível da oposição, porque tudo isto podia ser explorado. A própria comunicação social tem limitações. Há jornais de referência que estão completamente rendidos à agenda do primeiro-ministro. A comunicação social em Portugal tem vindo a ser progressivamente condicionada.
Não foi adepto da ‘geringonça’. Não se rendeu a esta solução política como aconteceu com muita gente no PS?
A ‘geringonça’ resolveu alguns problemas de curto e médio prazo, porque beneficiou da conjuntura internacional. Qualquer Governo ia atingir os mesmos resultados. Os resultados não se devem a esta solução política, mas sim a uma mudança que existiu ao nível da União Europeia. Não vejo na ‘geringonça’ nenhuma alteração de fundo.
As diferenças entre os partidos impedem essas reformas?
Sou um europeísta. Um apaixonado pela Europa. Não concebo como é possível depender de partidos que são abertamente antieuropeus. O Partido Comunista é um partido antieuropeu. Mas não previa que isto durasse quatro anos. É um mistério o que leva o PCP a manter-se na ‘geringonça’. No outro dia perguntei isso a um amigo, que pertence ao Comité Central, e ele riu-se. O PCP perdeu nas autarquias, nas europeias… O que leva o PCP a manter-se fiel a esta solução?
É uma solução que pode repetir-se na próxima legislatura?
Se me fizesse essa pergunta há um mês, se calhar, eu diria que não, mas mesmo esta semana li num jornal que o António Costa está disponível para assinar um acordo escrito. Não sei. O verdadeiro valor do António Costa, que no meu entender é um político médio, é ter uma enorme habilidade. Sabe jogar bem com isso. A qualidade das pessoas que se envolvem nos partidos diminuiu drasticamente. As pessoas não encontram motivação para entrar na vida política.
Perdeu essa motivação?
Não tenho, hoje, nenhuma motivação para militar ativamente no Partido Socialista. Tenho motivação para ser militante, pagar as quotas, mas não tenho motivação para ir àquele cerimonial das reuniões em que se escolhe aquilo que já se sabe que está escolhido. Tenho, por exemplo, dúvidas sobre a forma como funcionam as organizações de juventude. Em Portugal, as juventudes partidárias têm um poder diabólico. Dentro do PS estão a nomear tudo e mais alguma coisa. A lista de deputados está encharcada de jovens que nunca fizeram nada na vida. Assessores, adjuntos… vai tudo recrutar à Juventude Socialista. Mas também me choca, por exemplo, que o PS tenha escolhido o Pedro Silva Pereira para vice-presidente do Parlamento Europeu.
Não devia ter entrado na lista?
Não é por falta de qualidade do Silva Pereira. Tem qualidades políticas, mas quando se juntam indícios, diretos ou indiretos, de que há ali um problema a melhor maneira que a pessoa tem para resolver essa situação é afastar-se. O Silva Pereira tem a esposa arguida no processo Marquês e não desmentiu algumas coisas que lhe são atribuídas sobre a utilização de benefícios através do José Sócrates em Paris. Quer ele, quer o filho. Está numa situação delicada e o PS devia ter ponderado devidamente esta situação.
Voltando à ‘geringonça’. Continua a ser completamente contra uma aliança com o PCP e o BE?
Fui dos primeiros, dentro do Partido Socialista, a defender uma aliança com o PCP a nível das autarquias. Sou completamente favorável. A nível nacional é que não faz sentido, porque os projetos são muito diferentes.
A melhor solução seria o PS conseguir a maioria absoluta?
O PS pode conseguir ficar relativamente perto, mas não vai conseguir a maioria absoluta. A melhor solução, se não for possível a maioria absoluta, seria o PS governar sozinho com apoios no Parlamento à direita e à esquerda. Não haver propriamente a formalização de um acordo.
Seria favorável a uma coligação com Rui Rio?
Essa é uma das coisas que me tem criado dificuldades dentro do PS. Sou defensor do Bloco Central. Há muitos anos. Tenho a mania de defender coisas que ninguém defende.
Esteve ao lado de António José Seguro nas últimas eleições internas. O que acha que levou os socialistas a escolherem António Costa?
O António José Seguro daria um excelente primeiro-ministro. Tenho uma enorme admiração pelo Seguro, mas sou capaz de reconhecer que ele falhou em determinados momentos. Eu era, por exemplo, completamente favorável a que o Seguro aceitasse o acordo com o Presidente da República para antecipar as eleições e fazer um documento em que reconhecíamos a necessidade daquela política. Em troca disso iríamos ter eleições antecipadas que provavelmente o Seguro ganharia facilmente. Era favorável a isso e acho que o Seguro também era.
O que impediu esse acordo de salvação nacional?
Houve uma operação interna dentro do Partido Socialista em que o Mário Soares foi envolvido. O Mário Soares tinha excelentes relações com o António José Seguro, mas foi vendida ao Mário Soares a ideia de que o Seguro estava a vender o PS ao Cavaco. Aqui é que faltou o killer instinct do António José Seguro. Cada pessoa faz aquilo que é capaz de fazer e este processo foi muito complicado.
O António Costa defendeu que devia ser expulso do PS por ter chamado cigana à ex-deputada Luísa Salgueiro. Ele disse, nessa altura, que o Manuel dos Santos é uma vergonha para o PS. Foi aberto algum processo disciplinar contra si?
Essas declarações do António Costa foram proferidas há 752 dias. Há 752 dias. Isso está relacionado com um episódio grotesco. Havia uma disputa no Porto para escolher o candidato à Câmara de Matosinhos e o candidato que ganhou foi afastado para avançar a atual presidente da Câmara de Matosinhos. E nós, no nosso grupo de amigos, costumamos tratá-la por ciganita, porque ela tem um aspeto bonito e eu fiz um tweet a dizer: ‘fulano de tal, dita a cigana, defendeu em Lisboa uma coisa e veio para o Porto defender outra’.
Arrependeu-se de ter escrito esse comentário?
Devo dizer que não medi as consequências. Isso foi muito debatido nas redes sociais, que eu não dominava suficientemente, e na sequência disso aparece ele a fazer essa declaração na abertura do telejornal para todo o país. É uma atitude canalha. Não lhe estou a chamar canalha. É uma atitude canalha, porque não se diz isso de um fundador do partido sobretudo sem falar com a pessoa e perceber o contexto em que isto surgiu.
Não chegou a falar com António Costa sobre isso?
Nós não temos boas relações há trinta anos. Escrevi-lhe uma carta educada, bem escrita, a dizer: ‘Vamos esclarecer isto olhos nos olhos’. Ele respondeu-me com insultos.
Mas não foi alvo de um processo disciplinar?
Numa primeira fase, ao fim de seis meses, uma colega sua [jornalista] interrogou o presidente da distrital do Porto sobre o que se passava e a resposta foi que esse assunto estava encerrado. Mas o Secretariado Nacional do PS, mais de um ano depois, discutiu este caso e encarregaram um dos seus membros, que por acaso tinha sido meu chefe de gabinete e aceitou esse papel miserável, para reativar o processo. Para a ironia ser ainda maior esse chefe de gabinete, José Manuel Mesquita, é de origem africana. Como vê há aqui um racismo bestial, porque escolhi para meu chefe de gabinete um tipo de raça africana com quem me dei maravilhosamente. Ele mandou-me uma mensagem, muito atrapalhado, a dizer que tinha de pegar naquele assunto, mas nessa altura não se passou mais nada.
O processo está encerrado?
Não sei. Há uns meses recebi uma carta da federação [do Porto] a dizer para aparecer lá, porque tinha um processo e tinha de ser ouvido.
Foi lá ser ouvido?
Não. Não fui lá. Houve três ou quatro cartas com trocas de opiniões, expliquei que não era racista, mas isso está parado. Passaram 752 dias e presumo que um indivíduo não pode ser expulso ao fim de 752 dias. Julgo que prescreveu. Se me expulsassem ia para o Tribunal Constitucional e isso seria uma derrota brutal para o PS. Eu acho que o politicamente correto é o pior que está a acontecer à nossa sociedade.
Não esperava uma reação tão violenta do António Costa?
O meu caso tem um antecedente. A reação do Costa surge porque dois meses antes eu tinha desfeito um ‘negócio’ do Costa com a Câmara do Porto. O António Costa e o PS/Porto preparavam-se para permitir que o Rui Moreira se candidatasse sozinho à Câmara sem o PS ter um candidato próprio. O Partido Socialista ficava com dois ou três lugares. Aquilo depois caiu, mas o Costa nunca me perdoou isso. Só que aí não podia saltar contra mim, porque estaria a validar a minha tese.
Acha que esses dois casos estão ligados?
Como lhe digo, há 30 anos que ando à porrada com o António Costa e conheço-o muito bem. Ele aproveitou isso e de um momento para o outro tinha milhares de pessoas a disparar contra mim. Obviamente que aquilo foi organizado.
Falou com a Luísa Salgueiro depois daquilo que escreveu nas redes sociais sobre ela?
Nunca mais falei com ela, mas tenho a informação de que estava lá no processo uma declaração da Luísa Salgueiro a dizer que não se considerava ofendida e que não devia haver nenhum procedimento contra mim.
Também teve um guerra com o Sérgio Conceição [treinador do Futebol Clube do Porto] por causa de lhe ter chamado aldrabão…
Não fiz nenhuma declaração sobre o Sérgio Conceição. Comentei no Facebook várias declarações que algumas pessoas fizeram sobre ele. Isso foi na sequência dele não ter cumprimentado o miúdo. O que eu fiz foram comentários, mas houve um gajo do PS, da federação do Porto, que pegou nisso tudo e fez uma notícia para ‘vender’ ao Record. Meteu aquilo tudo com alguma lógica e parecia que era uma declaração. Mas o mundo do futebol é terrível. Até ameaças de morte recebi.