‘A vida é muito maior que a poesia’

Acaba de publicar dois livros que mostram as diferentes facetas do seu percurso: poeta, crítico e professor. Ao SOL, António Carlos Cortez revela a definição de poesia que apresenta aos seus alunos, explica por que escreveu um livro ‘vigilante’ e diz que as aulas de Português se transformaram em ‘empinanço de gramática’.

Poeta, crítico literário e professor de Português há 17 anos, António Carlos Cortez acaba de editar dois livros: Jaguar (ed. D. Quixote), de poemas em prosa, e Voltar a Ler – Alguma crítica reunida (ed. Gradiva). O primeiro, que integra uma trilogia em que procura fazer «uma leitura da História, da guerra, da miséria humana, da promiscuidade, daquilo que é a humanidade no seu lado mais obscuro», celebra vinte anos de poesia. O segundo reúne textos publicados no Jornal de Letras, na Colóquio Letras e na revista Relâmpago. Conversámos sobre poesia, crítica literária e educação à sombra das árvores do estádio 1.º de Maio, lugar que o autor frequenta desde os cinco anos e onde já tem escrito ensaio, crítica e até «um ou outro poema».

Colocaste em epígrafe de Jaguar uma passagem de Baudelaire que diz: «Glorificar o culto das imagens (a minha grande, a minha única, a minha primitiva paixão)». Qual a importância da imagem nestes textos?

O Baudelaire diz isso e o Rimbaud diz que o poema em prosa é o lugar de deflagração da alquimia – da alquimia da linguagem, da alquimia das vogais. Eu também concebo a poesia um pouco assim, como uma espécie de flash, de momento em que – porque viveste, porque recordas o que viveste ou porque projetas o que não viveste – essa tensão produz imagens que podem dar ao leitor uma espécie de estremecimento. A poesia é a projeção de imagens mentais, e por isso é que há um diálogo tão interessante entre cinema e poesia. Um poema que tu consideres bom é aquele que te leva a projetar as tuas imagens a partir de um objeto verbal que te dá um sentimento qualquer que não sentirias nunca se não o tivesses lido.

Quando explicas aos teus alunos o que é poesia é isso que lhes dizes, ou procuras uma definição mais acessível?

Na minha experiência de professor procuro sempre ser rigoroso. E há definições de poesia que são extremamente rigorosas. O Ezra Pound diz que a literatura é a «linguagem carregada de sentido». Mas há outra definição, do David Mourão-Ferreira, que essa sim dou sempre aos meus alunos: «A poesia é, antes de mais, linguagem; mas linguagem animada pela emoção, intensificada pelo ritmo e transfigurada pela metáfora». É uma definição de poesia que me agrada muito e que acho que é escolarmente perfeita, seja para o nível secundário, seja para a universidade – nalguns cursos de poesia contemporânea que já tenho dado na faculdade é por aí que começo. Nesta área das letras muitas pessoas opinam, mas temos de saber do que estamos a falar quando estamos a fazer ciência. E quando estamos a estudar linguagem, e literatura em especial, é bom que saibamos qual é o objeto e definir o objeto para haver ciência.

O estudo da Literatura é uma ciência?

Sim, no sentido latino – scientia – o fazer de um saber. Não estudamos Literatura, nem Filosofia, nem História, nem Biologia, nem Física, nem Direito, sem saber do que estamos a falar. No caso das humanidades, isso é ainda mais importante. Quando falo de ciência é no sentido em que, perante um poema de Camões, de Rimbaud ou de Jorge de Sena, a chave para a interpretação dos textos passa pela compreensão da linguagem. Compreensão da estrutura da gramática, de como a frase poética é construída, e também perceber por que razão a metáfora, a imagem ou a sinestesia têm um enorme poder. Por outro lado, devemos enquadrar esse texto no contexto de época e no contexto da produção da obra do próprio autor. Quando os alunos têm isso, eles gostam de literatura.

Porque estamos a falar de analisar poesia, uma das coisas que recordo com poucas saudades das aulas de Português no liceu era dividirmos a métrica d’Os Lusíadas, andarmos a partir os versos sílaba a sílaba. Isso não pode estragar a relação do aluno com a poesia?

Depende. Não acho que seja mau. Camões é um poeta extraordinariamente plural, não há um, mas vários Camões – o Camões que escreve em decassílabo não é o Camões que escreve em redondilha maior ou menor.

Isso não são questões demasiado técnicas para alunos do secundário?

Mas as questões técnicas importam muito. Se derem aquilo de forma estéril…

Contar sílabas nunca é uma tarefa muito fecunda…

Não se deve contar sílabas por contar sílabas. Deve-se fazer perceber aos leitores, por exemplo, que a medida nova, o decassílabo, tem uma determinada história na poesia ocidental. O soneto – que foi inventado por um poeta que era matemático, Giacomo Lentini – tem uma forma decassilábica porque, entre outras coisas, obriga a um refrear da expansão lírica e a uma espécie de forma matemática, em que na primeira quadra temos uma tese, na segunda uma antítese e no terceto final temos a síntese. Lembro-me de uma coisa que o Vasco Graça Moura um dia me perguntou, na feira do livro de Braga, em 2006. Estava o Gastão Cruz, a Lídia Jorge, o Nuno Júdice, eu era o mais novinho ali. E o Vasco [Graça Moura], que tinha lido algumas coisas minhas, pergunta-me com alguma ironia: ‘Ouça lá. Você que estuda estas coisas, qual é para si o verso mais esplendoroso da poesia portuguesa?’. Pus-me a pensar, assim à queima-roupa é difícil.

Foste apanhado desprevenido.

E lembrei-me do Cesário Verde:

‘Nas nossas ruas, ao anoitecer,

há tal soturnidade, há tal melancolia,

que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

despertam-me um desejo absurdo de sofrer.’

E ele: ‘É um grande verso, sim senhor. Mas aquele verso, com aquela imagem’. E eu: ‘Ó Vasco, agora assim não sei… Camões?’. ‘Ah! Camões’.

Como quem diz ‘já estamos a chegar a algum sítio’…

E ele então disse o que para ele era o verso mais perfeito, por causa das sibilantes e da melopeia musical. ‘Eclipse nesse passo o sol padeça’, do soneto ‘O dia em que nasci morra e pereça’. É de facto um belo verso. Se eu contar as sílabas métricas e a isso juntar a questão das sibilantes e das imagens… lá está. Acho que contar sílabas métricas por contar não interessa para nada. Mas estudar os ritmos e os metros em poetas é muito interessante, porque tem a ver com teoria musical, tem a ver com matemática, tem a ver com escolas literárias. Por que razão os poetas do dolce stil nuovo vão adotar o decassílabo e rejeitam todos a redondilha menor e os ritmos populares? Os italianos fizeram isso, os franceses também – nós não. Os portugueses fazem conviver estas duas formas: uma já moderna e os ritmos populares. Aí estou com o Gastão Cruz, que num ensaio sobre Camões diz que hoje, à distância, não vê que tivessem sido prejudiciais as lições de contagem de sílabas métricas. Diz que é uma coisa que se deve saber.

Mas lá está, o Gastão Cruz é poeta. Parece-me uma questão mais técnica, para especialistas do ofício. Na escola, ao ficares uma hora inteira a partir versos em sílabas, estás a prescindir de ensinar outras coisas. Sobre a vida ou a época de Camões, por exemplo…

Estás a colocar a tónica num aspeto interessante, que é se as aulas devem ser sobre os textos ou sobre a vida do autor.

Não temos de ser exclusivos, ou temos?

As duas coisas podem conviver. No estudo de um texto, importa saber fazer a análise formal, das sílabas métricas, do esquema rimático, do tipo de estrofe. É impossível compreender Antero de Quental sem perceber que a forma é também conteúdo. Agora, nos pratos da balança, é bom que as duas coisas se equilibrem. Devo falar de ideias, enquadrar o texto na filosofia da época… Uma vez perguntei aos meus alunos: ‘Por que razão Camões é o poeta do deslizamento?’.

Do deslizamento?

Eles também ficaram surpreendidos, mesmo na faculdade. Segundo a Rita Marnoto, grande especialista em Camões, há figuras de retórica que são chamadas ‘do deslizamento’: a antítese, o oximoro e o paradoxo. E Camões é precisamente o poeta do paradoxo, do oximoro e da antítese: ‘Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente’ – todo o poema joga nesta oscilação de sentidos. Acho que se pode estudar o poema assim, fazendo com que o leitor pressinta que há um mistério qualquer que ficará sempre indecifrável – isso é que é bom na literatura, não sei se há chave para tudo, e é bom que não haja, mas deve haver qualquer coisa de investigativo, vamo-nos aproximando, vamos apalpando.

Falaste de mistério e misterioso é um adjetivo que eu aplicaria a este animal que é o jaguar. Qual a origem do teu fascínio pelo jaguar, por que aparece ele no título deste livro?

Este livro começou a ser escrito em 2015 no México, quando estive no encontro de poetas do mundo latino. Tinha lido alguns poetas mexicanos numa antologia onde estavam o Octavio Paz, o Vicente Huidobro, o José Emilio Pacheco. Alguns textos falava-se do jaguar e na feira que lá havia comprei um livro sobre o simbolismo do jaguar. Nesse livro explicava-se que o jaguar é um animal poderosíssimo no panteão dos deuses das antigas civilizações pré-colombianas. Entre os Teotihuacán era o deus da iluminação, é o animal, à semelhança de Caronte, que guia os homens para o outro mundo, é o intermediário entre os infernos e o céu, é o intérprete da história. Além de ser uma palavra que eu considero belíssima do ponto de vista fonético, tem todo esse simbolismo. É um animal dos pântanos, mas também um animal solar, há até o sol jaguar, e está relacionado com essa ideia de poder vital, de enigma e de mistério que a vida encerra. Alguns dizem que no final da vida é possível haver uma compreensão do percurso feito e o jaguar é esse deus que nos transporta, quem sabe, para essa iluminação final.

Vou agora ler uma passagem. «As cidades irão morrer em breve. Faltará água aos solos». Ou ainda: «Quando em 2022 os aviões da última explosão trouxerem o selo final à humanidade». Há aqui um ambiente de Apocalipse. Este é um livro pessimista?

Há uma dimensão profética neste livro que o Jorge Vaz de Carvalho, que foi quem o apresentou, soube ver muito bem. Na atual circunstância em que vivemos, direi que é um livro vigilante. Acho que vivemos tempos perigosos em que estão no poder figuras medíocres. E nós sabemos onde é que essas figuras medíocres conduziram a História. Estão sempre ao serviço dos grandes interesses económicos, estão sempre ao serviço dos falcões de guerra, do complexo industrial militar. O livro é uma leitura deste tempo.

É por isso que há uma referência ao Vietname?

Sim. Isso é uma obsessão antiga minha.

Que vem de onde?

Vem do impacto que me causou ter ouvido, desde muito miúdo, música dos anos 60, como os Doors e os Jefferson Airplane. Li O Coração das Trevas [de Joseph Conrad] e mais tarde vi o Apocalypse Now, tudo isso, com oito, nove, dez, onze, doze anos. O Vietname é a mãe de todas as guerras e a primeira guerra televisionada. Há imagens do napalm a ser despejado sobre aldeias. Os meus livros têm muito que ver com isso – documentários que vejo, leituras que faço.

Noutra passagem dizes que «a poesia é a expressão máxima da literatura». Escrever poesia requer um estado de espírito especial?

Voltamos às imagens. Requer a deflagração de uma imagem que te provoque alguma coisa. O Ramos Rosa passou os últimos anos na casa Faria Mantero, em Belém, e eu ia lá com frequência, sobretudo aos sábados de manhã. Uma vez telefonou-me para eu lá ir, e vou encontrá-lo no meio das árvores. Estava calado, a olhar para um pássaro. E disse-me que aquele pássaro e aquela árvore iam com certeza originar um poema. Há imagens que fazem circular qualquer coisa dentro de ti. O poeta vai trabalhar a linguagem e projetar no papel em branco qualquer coisa que viu ou experimentou.

Coisas do quotidiano, algo que se apanhou de uma leitura?

Tudo pode ser motivo para poesia. A poesia fala de coisas banais, fala do real, não fala do abstrato. A questão é como fala. Não o vai fazer de forma corriqueira, vai transfigurar isso. Quanto ao estado de espírito, o Pessoa diz: ‘Toda a paisagem é um estado de alma’. E o contrário também é verdade – todo o estado de alma é uma paisagem.

Os pintores de antigamente usavam nuvens – mais leves ou mais carregadas – para transmitir um estado de espírito…

Isso é um código, é uma chave para a interpretação do quadro.

Então o poeta tem essa imagem, esse momento de iluminação, por assim dizer…

Atenção, não é Rimbaud quem quer – não sou, nem quero ser, nem acredito nisso. Iluminação é uma palavra forte. O Herberto Helder sim, teria iluminações. Ou o Cesariny, ou o Eugénio de Andrade. Eu falo de uma coisa diferente. Há um facto necessário para haver poesia: é a solidão. É preciso estar só. A poesia não se compadece da velocidade da vida familiar ou da vida quotidiana. E há momentos em que é bom estar só. Pode ser que nesses momentos aconteça alguma coisa.

E há alguma fase do dia que seja mais propícia?

Não. O que é frequente em mim, uma espécie de ritmo interior, é escrever no verão. Escrevo muito no verão. Venho para aqui para o estádio 1.º de Maio [em Alvalade, Lisboa], frequento isto desde os meus cinco anos. Este sítio onde estamos a conversar é um sítio onde posso escrever ensaio, crítica, e pode acontecer escrever um ou outro poema. Mas o texto depois precisa de ser trabalhado – aí já é outra coisa, é o ofício.

Falaste de poesia, de crítica e tens outra atividade que é o ensino. São ritmos, respirações diferentes, ou está tudo ligado?

Está tudo ligado. Tivemos e temos professores que foram críticos, críticos que foram poetas, poetas que foram professores. O Gastão Cruz foi professor do secundário durante trinta e tal anos. O Jorge de Sena era professor.

Neste livro de crítica, Voltar a Ler, fiquei com a impressão de que os textos são sempre elogiosos para com os autores. Isso tem que ver com um olhar mais benevolente que diriges à obra dos outros?

Aquilo a que chamas benevolência eu chamo adesão. O que me interessa é fazer a análise da obra e dos textos, e dar chaves de leitura a quem lê. Não escrevo crítica para matar autores, não escrevo crítica para fazer o elogio mútuo. Escrevo crítica porque gosto de escrever sobre poesia e de analisar o passado e os meus contemporâneos. Quando não gosto de um determinado livro, não escrevo sobre ele.

Mas não é saudável que haja crítica negativa até para os autores crescerem?

Acho que sim. Fiz uma ou outra. O problema é que estamos num país de gente tão insegura que as pessoas levam uma crítica como um ataque pessoal. E há maneiras e maneiras de dizer. A crítica caceteira não é crítica. É tentar atrair qualquer coisa. A crítica é um ato ético.

Mas havia grandes críticos que às vezes eram muito duros.

O Jorge de Sena. Era implacável. Mas é preciso saber-se ser implacável. E uma coisa é ser implacável na análise e outra é a crítica de maledicência sobre os autores. Isso não acrescenta nada.

Às vezes não te apetece dizer mal de alguma coisa que leste?

Não. Não me apetece mesmo. Nunca estive nessas lutas e ando aqui há vinte anos.

Não há rivalidades?

É natural que haja. Mas daí a fazermos crítica literária para beneficiar uma determinada clique em detrimentos de outros, isso eu não faço. E por outro lado vi quem fizesse muito isso e esses…

Desacreditam-se?

Desacreditam-se. A maledicência não leva a lado nenhum. Tudo somado, passados anos, podemos perguntar: ‘Acrescentou o quê?’. Não fica nada. Mesmo do nosso trabalho o que fica é muito pouco. A vida é muito maior que a poesia.

Pertences ao júri de vários prémios. Tens ideia de quantos são?

Tenho pertencido a uns quantos. Isto vem por convite, não sei.

Há quem ache que esses prémios funcionam um circuito fechado, quer dos jurados, quer dos autores, quase como atribuíssem os prémios uns aos outros. Esta crítica faz sentido?

Não acho que faça sentido. O que tenho visto é que os jurados circulam, há até a preocupação de chamar gente nova. Aqueles de fora que têm a impressão de que os prémios são sempre para os mesmos se calhar têm de pôr outros óculos, de alterar a perspetiva. Não é verdade que sejam sempre para os mesmos, e acho que isso parte de um preconceito bem português, da invejazinha nacional, que mais uma vez não leva a lado nenhum.

E os prémios ainda têm algum significado ou estão a perder o peso que tinham?

A questão não é se os prémios estão a perder peso, mas qual é de facto o peso do meio cultural. Seria interessante ver até que ponto os prémios, sobretudo no romance, legitimam autores que de alguma maneira estão ao serviço de uma determinada ideia que o poder político tem do que deve ser a cultura.

E o prémio pode também ter um resultado perverso de estragar o autor?

Se o autor se deslumbrar pode. No meu caso, o prémio Teixeira de Pascoaes, que me foi atribuído, visou uma antologia que contemplava 16 anos de trabalho. Para mim foi bom, porque até tinha contas a pagar. Mas não fico deslumbrado – e acho que a maioria dos autores também não.

Temos a ideia de que os jovens leem cada vez menos e são muito ignorantes. Apercebes-te disso nas tuas aulas?

Sim, é verdade. Isso acontece porque – e vou dizê-lo com todas as letras – a qualidade geral dos professores em Portugal é má. É a verdade. Há aqui um conflito. É que ensinar é uma coisa e avaliar é outra, e os professores hoje são avaliadores.

Porque é que isso acontece? Porque se estabelecem metas e os professores precisam de atingir aqueles objetivos?

Sim, e porque há uma conceção instrumental e tecnicista do ensino. Fui aluno do Artur Anselmo, que era um professor de mão cheia. Saíamos de cada aula com a noção clara de que estávamos mais ricos. Esse tipo de aula perdeu-se.

E vês alguma saída?

O regresso ao livro. Na formação de professores de Português deve-se dar a conhecer edições antigas, coleções que fizeram história, cadeiras de História, história das mentalidades, filosofia, sociologia literária. Sem isso as aulas de Português são só decoranço de gramática. E os alunos, claro, não podem gostar.