Os efeitos da pandemia na economia portuguesa não deixam margem para dúvidas. O défice superou os 1.600 milhões de euros até abril e o Produto Interno Bruto (PIB) registou uma quebra de 2,3% nos três primeiros meses do ano face a igual período do ano anterior. Dois resultados que não deixaram os analistas contactados pelo SOL surpreendidos.
Mas vamos a números. A execução orçamental em contabilidade pública das administrações públicas (AP) registou até abril um défice de 1.651 milhões de euros, um agravamento de 341 milhões face ao período homólogo por via do menor crescimento da receita (5%) face ao da despesa (6,1%). «A execução até abril já evidencia os efeitos da pandemia na economia e nos serviços públicos na sequência das medidas de mitigação», disse o gabinete de Mário Centeno.
Assistiu-se a uma quebra de receita (-320 milhões de euros) com a prorrogação dos prazos de entrega das retenções na fonte de IRS, IVA e IRC (ainda sem quantificação da prorrogação das contribuições para a Segurança Social e suspensão das execuções fiscais). Já do lado da despesa registou-se um aumento de 345 milhões de euros, «principalmente associado às medidas de layoff (144 milhões de euros), aquisição de equipamentos na saúde (128 milhões de euros) e outros apoios suportados pela Segurança Social (54 milhões de euros)».
Eduardo Silva, analista da corretora XTB, admite que «é algo surpreendente pela dimensão considerando que os dados são até final de abril». No entanto, percebe os valores: «Claro que ao dar prioridade à saúde iremos sempre verificar os efeitos da pandemia na economia e serviços públicos, no entanto, isto não pode servir para limpar ineficiências governamentais como se varresse todos os problemas para debaixo de um grande ‘tapete’ que justifica tudo», acrescenta.
Já Francisco Alves, analista da corretora Infinox, refere que os valores já eram expectáveis. «Este resultado representa um crescimento de 26% no défice. Com a situação atual, é algo expectável tendo em conta a situação que Portugal se encontrava mesmo antes da pandemia», disse ao SOL.
O gabinete de Mário Centeno lembra ainda que a evolução da receita fiscal (+3,8%) é explicada pelo aumento da receita líquida do IRS (17,8%) associado à diminuição de reembolsos, mas que será corrigido nos meses seguintes. Os restantes impostos apresentaram quebras, reflexo do abrandamento económico (exceto o imposto do selo e outros impostos diretos).
A receita fiscal aumentou 485,9 milhões de euros até abril face ao período homólogo, para 13.147 milhões de euros, impulsionada pela diminuição dos reembolsos do IRS. «Este resultado transparece as medidas tomadas pelo Governo para o combate à pandemia, flexibilizando as retenções na fonte e o pagamento do IVA. Espera-se que estas medidas se mantenham até ao final do ano», explica o analista da Infinox.
As contribuições para a Segurança Social apresentaram um acréscimo de 4%, mantendo a tendência de desaceleração face aos meses pré-covid-19 (até fevereiro, a receita com contribuições crescia 7,4%).
Aumento da despesa do SNS
A despesa primária cresceu 7,6%, influenciada pelo crescimento da despesa do SNS em 12%, nomeadamente em despesas com pessoal (+6%). Já a despesa com salários dos funcionários públicos cresceu 4,5%, corrigida de efeitos pontuais. «Destaca-se o reforço de mais 8204 profissionais afetos ao SNS, um aumento homólogo de 6,3%». E o documento acrescenta: «O aumento das despesas com pessoal resulta ainda da conclusão do descongelamento das carreiras, destacando-se o aumento de 4,8% da despesa com salários dos professores».
Francisco Alves não tem dúvidas de que este aumento era esperado, «grande parte pelo peso do SNS, que aumentou bastante a sua despesa face ao vírus».
A opinião é partilhada por Eduardo Silva. «É justificável até certo ponto pela rápida intervenção do Governo para garantir as melhores condições de combate à pandemia e pela clara distorção internacional preços por exemplo de ventiladores e outros materiais», diz, mas refere que é preciso ter em conta um fator importante: «Importa manter sempre a ressalva que ajustes diretos ou outros contratos não devem ser utilizados com leviandade e cabe ao parlamento inferir se isso aconteceu ou não».
O gabinete de Mário Centeno diz ainda que aumentou a despesa da Segurança Social em 8,9%, dos quais cerca de 200 milhões de euros associados à covid-19, bem como a despesa com pensões (4,6%) e outras prestações sociais (8,8%), tais como a ação social (7,5%), a prestação social para a inclusão (31,6%) dirigida a pessoas com deficiência, subsídio por doença (15,4%) e abono de família (15,2%).
Investimento público cresce
O investimento público aumentou 78,6% na administração central e Segurança Social, excluindo PPP’s, refletindo a forte dinâmica de crescimento no âmbito do plano de investimentos Ferrovia 2020 e de outros investimentos estruturantes e ainda a aquisição de material médico para o combate à covid-19 destinado aos hospitais.
O analista da Infinox confessa que «não esperava um aumento tão grande». No entanto «podemos ver que alguma parte desse crescimento deve-se à aquisição de material médico para o combate à pandemia, o que torna mais explicável esse crescimento», lembra.
Ainda em relação ao investimento público, Francisco Alves refere que «a referência ao crescimento do investimento no âmbito do plano de investimentos Ferrovia 2020 e de outros investimentos estruturantes e ainda a aquisição de material médico para o combate à covid-19 destinado aos hospitais, justifica o aumento». Por isso, garante «não surpreende um aumento, mas sim a dimensão que irá ser alvo de análise certamente para garantir que não existiram abusos».
O que se pode esperar dos próximos meses?
Eduardo Silva não tem dúvidas e garante que, o futuro não será risonho, pelo menos a curto prazo: «Vai piorar e agora estamos todos curiosos para entender se o Governo vai usar a crise sanitária para limpar as contas, o papel da oposição será importante para garantir o escrutínio necessário perante estes e os próximos dados», diz. Já Francisco Alves prevê uma recuperação: «Espera-se uma ligeira recuperação, no entanto, sempre dependente da evolução do vírus», perspetiva.
PIB em queda
E se os dados atuais não são animadores quanto ao défice, o mesmo pode dizer-se em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), que registou uma quebra de 2,3% nos primeiros três meses do ano, face a igual período do ano anterior. Já quando comparado com o quarto trimestre do ano passado, o PIB registou uma diminuição de 3,8% em termos reais em cadeia. A primeira estimativa do Instituto Nacional de Estatística (INE) é assim revista em baixa: a primeira estimativa apontava para uma queda de 2,4% em termos homólogos e de 3,9% em cadeia.
Ao SOL, André Pires explica que «o facto de os dados usados para o cálculo do PIB serem referentes aos três primeiros meses do ano não permitem avaliar toda a extensão do impacto económico da pandemia no PIB português». até porque, recorda «o pico da pandemia foi em março, pelo que os dados envolvem um mês de janeiro relativamente normal e excluem o mês de abril, também muito afetado pelas restrições impostas pelo Governo».
Questionado sobre se não eram esperados números mais drásticos, Nuno Caetano, analista da Infinox, diz que não, uma vez que os dados são referentes aos primeiros três meses do ano. «Os efeitos só se começaram a sentir no final do mês de março, e por isso, será no 2.º trimestre do ano que haverá um agravamento dos números face ao período homólogo do ano de 2019», defende.
O gabinete estatístico revela que o contributo da procura externa líquida para a variação homóloga do PIB passou de positivo no quarto semestre a negativo, «observando-se uma diminuição mais intensa das exportações de bens e serviços (-4,9%) que a observada nas importações de bens e serviços (-2,0%). A procura interna apresentou um contributo negativo pela primeira vez desde o 3.º trimestre de 2013, em resultado da diminuição do consumo privado e do Investimento», explica.
O analista da XTB lembra que o futuro dependerá muito também da ação do Governo. «A recuperação económica dependerá das medidas de incentivo ao investimento que o Governo aplicar e à forma como os fundos de resgate forem geridos», destacando ainda o tecido empresarial português, predominantemente formado por PMEs, que «sofreu fortemente com a paralisação económica, e poderá levar muito tempo até que restabeleça os níveis pré-covid, uma vez que não têm os mesmos recursos financeiros e acesso a crédito que as grandes empresas. Para além disso, o investimento externo poderá mostrar-se cauteloso, pelo menos, este ano e o próximo».
Para o analista, as consequências esperadas para a economia se os números continuarem a baixar são «a diminuição das exportações de bens e serviços, a procura interna a apresentar um contributo negativo em resultado da diminuição do consumo privado e do investimento, e por consequência um aumento de dívida tanto do estado como das empresas. O aumento da taxa de desemprego e de impostos diretos ou indiretos, farão também parte da consequências esperadas», alerta.
André Pires defende ainda que «uma forma de apoio ao investimento e recuperação económica seriam cortes nos impostos. No entanto, a contração do PIB pode, pelo contrário, incentivar o Governo a aumentos de impostos, o que agravaria a situação económica».
Já em relação às despesas de consumo final das famílias residentes, foi registada uma diminuição homóloga de 1,1% em volume, após o crescimento de 2% no trimestre anterior. As despesas em bens duradouros apresentaram também uma acentuada redução (-5,3%), após um aumento de 2,1% no 4.º trimestre, refletindo principalmente uma queda das aquisições de veículos automóveis.
Também o emprego para o conjunto dos ramos de atividade da economia, ajustado de sazonalidade, registou uma quebra de 0,5% em termos homólogos.
O investimento externo também registou uma diminuição de 2,5%. Para Nuno Caetano, a recuperação será um «processo gradual, visto que o momento económico que atravessamos é transversal a todo o mundo, e, por consequência, o abrandamento do investimento externo poderá também tardar a voltar a números registados até março».
No entanto, aos poucos o país vai voltando à normalidade, o que é um bom indicador. «O regresso à normalidade é, sem dúvida, um passo bastante positivo». No entanto, «quanto à normalidade da economia, tudo dependerá dos incentivos que forem colocados à disposição das empresas, visto que há setores que foram substancialmente afetados, e mesmo com o desconfinamento gradual dificilmente conseguirão para já apresentar uma performance na sua atividade semelhante aos tempos pré-vírus», defende Nuno Caetano.