“A situação do jornalismo e da literatura, como da edição, são crises que vão a par”

Está há quatro décadas no meio da edição, tendo sido pau para toda a obra, e tem uma das visões mais informadas e críticas do setor. Vasco Rosa é hoje um dos raros homens de letras que se obstinam no resgate do espólio de alguns dos autores fundamentais do século XX.

Nas tantas promessas pós-apocalípticas que a ficção nos tem feito, o que raramente lhes falta, além dos cenários desolados, dos gangues motorizados que usam iscos humanos para montar emboscadas, é aquele tipo solitário que surge empoleirado num carrinho de supermercado, catrapiscando os quatro olhos, com uma lente rachada, tantas vezes perdido numas divagações e resmunguices, seja para si mesmo, seja para algum consorte imaginário que o atazana. Surge invariavelmente camuflado na paisagem, nuns trajes encardidos, colhendo o que possa servir-lhe de entre os destroços, desde cobertores, alguns víveres, o tabaco ou a pinga para ajudar a diluir memórias mais penosas. Mas também revistas, velhos jornais e livros. Não é difícil imaginar Vasco Rosa já nessa condição, nos nossos dias. E isto já antes da peste ter sido largada por aí. Só que o mais provável é que se o carrinho fosse o seu, a seleção de livros, depois de uns anos, obrigando-se a reter apenas o essencial, seria certamente o resultado de um fascinante exercício levado a cabo por um dos nossos mais caprichosos e esclarecidos leitores.

Aos 62 anos, não há pedra ou lata no meio editorial que ele tenha deixado de virar ou chutado. Mas desse percurso ele mesmo nos dará conta na entrevista que se segue. O importante agora, quando, sobre o ambiente geral de ruína que vinha já como efeito da própria abastança, está engatilhado por fim uma perspetiva de devastação iminente para o setor, é voltar aos princípios, e lembrar que a cultura é também olhar e ouvir os outros, e julgá-los, não pelo que dizem ou escrevem, mas pelo que fazem, que de sacripantas e sandeus anda o mundo cheio… Quando as filas da sopa já antes davam várias voltas em torno das instituições culturais, é importante avaliar o que foi sendo feito na edição portuguesa nas últimas décadas, e em que estado está hoje, até para se perceber que medidas são de facto urgentes e que propostas não passam de mero oportunismo e de emboscadas dos gangues que se habituaram a usar a defesa da cultura e os seus valores como mero isco para meter mais algum ao bolso.

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Como encaras a forma como tem sido defendida a aposta cultural na área do livro?

Sou muito crítico em relação a festivais literários e eventos afins porque, em geral, estão a pôr na primeira linha da Leitura e da Literatura autores vivos, atirando porta fora autores que já não podem apresentar-se publicamente, ou porque nunca o fariam ou porque já morreram. E em qualquer época a voz dos mortos é indispensável a qualquer país. Sem as suas obras fundadoras não se tem, sequer, uma vaga ideia do que possa ser a Literatura enquanto expressão humana milenar. Ora, hoje em dia esta roda dos festivais forçou um entendimento demasiado restritivo do que seja o panorama literário português, e nada mais parece existir além disso. Os prejuízos dessa violência e os prejuízos do logro do Plano Nacional de Leitura – incapaz de defender esse indispensável espetro alargado de leitura e de literatura – abrem as piores perspetivas para os anos que virão. E não estou a falar apenas do que isso significará em perda da tradição que nos legou o século XX, para não ir muito mais longe: a memória literária portuguesa está a ser trocada por esta esclerose, apagando-se, e a ligação dos leitores com os escritores portugueses fica reduzida a esta pobre escolha entre vivos, e vivos que se submetem a essa irresponsabilidade dos empórios comerciais. Isto é uma pequena forma de tirania. Os grandes grupos exercem uma pressão constante sobre os órgãos de imprensa, para que os seus livros sejam divulgados segundo diretrizes de marketing. Tudo isso contribui para a erosão do espaço literário e da vida cultural entendida globalmente.

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Face a esta pandemia, se a ministra da Cultura se lembrasse de ouvir pessoas que estão ligadas ao setor do livro e que não estão apenas interessadas em defender os seus interesses, em sacar algum, terias algum plano de emergência para o setor?

Se a Sra. ministra da Cultura me chamasse pessoalmente para me ouvir sobre a situação do livro, eu não iria, definitivamente, mas aceitaria falar num debate com muitos outros protagonistas desta atividade em que ela quisesse ouvir-nos. A hecatombe produzida pela pandemia pode ser um bom motivo para discutir uma crise que é antiga e tem sido sucessivamente mascarada, mas merece ser avaliada sobretudo com as perspetivas de uma nova geração de editores independentes ou assim chamados, que estão a fazer um belíssimo papel do meu ponto de vista. Dinossauros excelentíssimos que estão nisto há quarenta ou cinquenta anos são muito mais a parte do problema do que a da solução. São o comboio de mercadorias incapaz de travar antes da ponte que entretanto ruiu… Os grandes grupos editoriais operam com um pequeno exército de tradutores, revisores, paginadores que tratam como pequenos escravos modernos, sem repúdio ou escândalo de quem diretamente os contrata e dirige, e espero que esta grande crise seja uma ocasião de alterar essa indignidade. São profissões essenciais mas muito degradadas no seu devido valor remuneratório. As consequências vão ser duríssimas, devastadoras, e os pequenos editores muito criativos e atentos que já trabalhavam em regime estoico, escapando a esse garrote profissional dos grandes, e que foram capazes de fixar públicos fiéis e solidários em campanhas de pré-compra etc., podem sucumbir, é verdade, mas também podem recriar ou ajudar a recriar uma nova relação leitor-autor-editor, que do meu ponto de vista passa em boa parte por um comércio livreiro direto, que acabe quanto possível com as regras atuais da consignação em livrarias, que pagam só uma pequena percentagem, o fazem tarde e a más horas (ou mesmo nunca), devolvem livros como querem, etc.

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