Por fraqueza, às vezes, vamos aos clássicos. Para forrar o estômago antes de uma empreitada, viramo-nos para esses alimentos que dão consistência a tudo, unem as partes de um ser, dão-lhe juízo para lá de conforto, um certo vigor, e um embalo também, ou um certo tino. E nenhum dos nossos clássicos corporizou melhor essa força ao mesmo tempo culta e popular, veraz e constante como um provérbio, firme, próprio de um ser preservado em âmbar no museu da língua, nenhum foi mais assim do que Camilo, autor que nos contava como, certa vez, em sentindo cabeça e coração sem vida, “no estômago busquei uma alma nova”. Mas depois, como quem se excede empanturrando-se de uma crença nova que logo é dada como perdida, numa satisfação levada além da conta, parece até que “foge ao mundo a razão espavorida/ e por muito comer desci à cova”. Afinal, como dizia um outro clássico, esse em português do lado de lá do Atlântico, “escrever é igualzinho a comer mel de engenho com farinha” (João Cabral). E, por vezes, nas páginas que melhor se abastecem contra períodos difíceis, ou que são escritas atravessando-os, o que não falta é uma espantosa despensa, as reservas pouco menos que sumptuárias e que funcionam para quem passou mal, andou com o estômago nas mãos, como uma espécie de calmante. Leia-se uma passagem de Carlos de Oliveira, num dos textos recolhidos em “O Aprendiz de Feiticeiro”: “Muito se come por estas páginas e muito se pensa em comer. A enumeração dos alimentos é obsessiva: pão de rolão, pão alvo, pão seco, pão e linguiça, caldo com broa, pão cozido, perdiz guisada, galinha cozida, assada, frita e fritangada, caldeirões de migas, sopas, sopinhas de manteiga e açúcar, filhozes, vaca, açorda, lebre guisada, chouriço, bolo folhado, côdeas de pão de milho, lombo de porco, tripas guisadas, formigos de pão esfarelado com mel e ovos, castanhas, figos secos, favas cozidas em água e sal, favas ensopadas, favas com arroz, favas de todos os feitios, ovos, queijo, odres e cangirões de vinho, bilhas de azeite, nozes, passas de figos, amêndoas, rebuçados, arroz-doce, pêras verdes, tremoços, barranhas de mel, tulhas cheias de grão, sacos de farinha, sei lá mais o quê. Até coisas estranhas como chiribiques do mar e bolo refolhado.” Do mesmo modo que se extraíram já algumas das páginas mais admiráveis da literatura de exercícios de inventário, da contagem de existências, não faltam também escritores desses que assumem grandes cautelas, que escrevem pouco, como se o que anotassem tivesse de corresponder a coisas reais, cada linha ocupasse espaço no mundo, e houvesse o risco de atravancá-lo. Assim, há autores que escrevem ensaios, vacas, fábulas e moscas. Escrevem pouco, conscienciosamente. Carlos Oliveira era um deles. Desses espíritos que carregam nas veias o sentido das palavras, que com elas desenham formas que tremem como eixos e a cuja volta há um girar quente e arrebatado. Uma oficina não muito diferente de uma cozinha, que cumpre rituais e até se faz anunciar deixando um perfume no ar. Mas se a comida vai entrando nalguns enredos, se há escritores que não descuram esse quadro central da nossa existência, o editor e escritor Francisco José Viegas queixava-se, em tempos, de que se come pouco e mal na literatura portuguesa, e de que se bebe ainda pior. Quanto a esta segunda parte, temos dúvidas, pois não seria difícil considerar-se boa parte da poesia portuguesa contemporânea como uma antologia da sede, da decilitragem, desses desarrimos etílicos, paixões que devem cada vez menos à carne a sua conta, que sabem cada vez menos dos enlevos amantes, da forma como esses cresciam um para o outro, e se afundavam um no outro para, um no outro, como dizia Rilke, se vencerem. Há até demasiadas páginas que dá a sensação de estarem ensopadas, e que o leitor se vê obrigado a deixar que cozam para si bebedeiras das que ficam a um canto, balbuciando para os seus fantasmas, defendendo a garrafa até ao último gole, e sem vontade nenhuma de partilhar um copo. Mas, deixando as lendas da embriaguez de lado, tem alguma razão de ser a queixa do editor. “Percorremos centenas e centenas de páginas escritas pelos nossos mais reputados escritores sem deparar com um almocinho homérico ou um jantarinho opíparo.” E Viegas remata, afirmando que “falta vibração latina aos literatos lusos na hora de comer”.
Uma justificação que merece desenvolvimento é essa que nos fala de um certo pudor que persistiu ao longo de décadas. Em tempos parecia mal comer nas páginas de literatura, mesmo nos versos, não era de bom tom, deixar manchas de algum molho ou de vinho, não era muito educado deixar migalhas ao leitor na toalha da mesa, e pratos por recolher, peças de fruta meio comidas, até porque o leitor muitas vezes abria um livro para esquecer o que lhe exigia o corpo, e, com o estômago colado às costas, arriscava-se a ficar do outro lado de um vidro, como quem espreita os comensais nos restaurantes e, sem se dar conta, mimetiza os seus gestos, abre a boca e fecha-a tentando que a imaginação engane a fome e mastigue algo mais que ar. Este era um cuidado que se pode ler, em tom acusatório, nuns versos de Bertolt Brecht: “Para quem tem uma boa posição social,/ falar de comida é coisa baixa./ É compreensível: eles já comeram.”
Depois há muitos géneros de fome, muitos registos entre as formas de jejuar, e alguns até afinam os sentidos, a falta aguça o apetite, de tal modo que as palavras vão servindo de alimento, ou de aproximação pelo menos. Como não pensar naquela cena de repasto do poema “De Tarde”, em que Cesário Verde nos leva ainda para o meio daquele pic-nic de burguesas, esse em que se comem talhadas de melão, damascos e pão-de-ló molhado em malvasia, e a cor vence nesse hipnotismo em que as letras mostram as pernas, e as figuras permanecem cheias de viço numa composição que vai além dos alimentos, e prova também o ramalhete rubro de papoulas que traz no decote uma certa dama. Mas não é bem das comezainas em letra de forma que vimos aqui tratar, não são os recursos nem a despensa das letras, e nem sequer aquela vertente gastronómica que permite arrancar páginas de romances que funcionam como ilustração de certas receitas tradicionais. E se não vamos preocupar-nos com os aspectos de confecção, também não estamos à procura de equivalências que encham o bandulho do espírito na impossibilidade de acalmar o estômago.
Hoje, se a literatura se mantém bastante fiel aos seus votos de “castidade gastronómica” (Viegas), talvez tenha sentido até a necessidade de os renovar, isto em face do contexto, à medida que em volta da comida se estabeleceu um culto de tal ordem que, num regime hiperbólico como o nosso, teria de derivar nalguma forma de pornografia. Assim, sem surpresa o termo entrou em circulação, o de pornografia alimentar, que designa essa forma de empratamento visual que nos dá caça, parece querer dar um nó nos sentidos, e atravessa a publicidade, as publicações nas redes sociais, os programas televisivos de culinária entre tantos outros formatos nesse assédio constante dos meios de comunicação subjugados à omnipresença das imagens. Isto cruza-se com aquele consumismo estético que se infiltrou em todos os aspectos da sociedade sináptica que nos envolve e que privilegia acima de todos os outros sentidos o visual. Dessa preponderância das imagens falava Susan Sontag num dos textos que integra a recolha “Ensaios sobre Fotografia”, publicada entre nós pela Quetzal, a editora de Francisco José Viegas. “A necessidade de ter a realidade confirmada e a experiência realçada por meio de fotografias é um consumismo estético no qual toda a gente está agora viciada”, diz-nos a escritora norte-americana, e acrescenta: “As sociedades industriais transformam cidadãos em viciados na imagem; é a forma mais irresistível de poluição mental.” Se Sontag reconhece que há, neste impulso, uma corrente que se define, em parte, por “pungentes anseios de beleza, de um desígnio a sondar sob a superfície, de uma redenção e celebração do corpo do mundo”, por outro lado, onde vamos para além desses “elementos do sentimento erótico”, encontramos pessoas capturadas por “uma compulsão de fotografar, de fazer da própria experiência uma forma de ver”. Assim, se hoje “ter uma experiência torna-se equivalente a tirar uma fotografia dela e participar num evento público torna-se cada vez mais equivalente a vê-lo na forma fotografada”, muitas vezes a alimentação parece também ela ter-se transformado num pretexto e até num inconveniente, e não faltam exemplos de actrizes e modelos esqueléticas fotografadas a mordiscar alimentos de alto teor calórico, como se brincassem com o fogo, ou mesmo, como se se permitissem incorrer nesse pecado, participando na glorificação de alimentos como um substituto para o sexo.
Em declarações ao i, o vitivinicultor e gastrónomo José Bento dos Santos notou que se até às décadas finais do século passado o grande tabu na sociedade era o sexo, desde então a alimentação começou a assumir também um peso semelhante, com a influência dos regimes dietéticos a funcionarem como orientações quase religiosas, correspondendo a mandamentos que são seguidos à regra por todos aqueles que, hoje, não apenas se preocupam com questões de sustentação, mas sobretudo com as questões de saúde e, sobretudo, com o objectivo de conquistar uma forma física digna de exibição nesse museu tão vasto e instável das redes sociais, que têm a toda a hora a decorrer um concurso de todos contra todos pela atenção da generalidade dos utilizadores. É uma experiência social em que, de algum modo, todos estamos envolvidos, capturados, imersos, e disso mesmo falava Guy Debord na sua impiedosa denúncia do capitalismo moderno, ao notar que a “alienação do espectador em proveito do objecto contemplado (que é o resultado da sua própria actividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo”. Assim, ninguém é estranho a essa forma de vulnerabilidade permanente, essa fantasmagoria que abrange tudo, como um resíduo que segregamos em conjunto, e que penetra a consciência como uma forma de culpa e recriminação, ao ponto de sermos já incapazes de consumir seja o que for sem consultar a embalagem, a informação nutricional, e a ponto de muitas pessoas ao longo do dia, mais do que ruminar em volta de questões existenciais com algum alcance, estarem ocupadas a calcular o saldo de calorias ingeridas, a avaliar a sua progressão numa escala qualquer e em direcção à plena forma física. O próprio desejo exprime-se cada vez mais através de restrições, e Bento dos Santos nota que se generalizou entre a população essa identidade constituída pelas interdições alimentares, as alergias, os alimentos que têm de ser merecidos, nomeadamente através do exercício físico e de estratégias para queimar calorias, que ocupam a função da penitência ou do auto-flagelo, semelhante às práticas de mortificação corporal. Assim, hoje busca-se a santidade através de uma dieta pietista, uma forma de se expurgar dos pecados do mundo, a qual só funciona se sujeita a constantes tentações, a este acosso da pornografia alimentar, imagens que, mais do que corpos em poses sexuais, provocam a imaginação no que toca à volúpia alimentar. Quem não come, muitas vezes priva-se para estar em condições de, em troca, poder ser fotografado, estar apto a prosseguir com essa oração diária que é continuar a riscar o calendário que se confunde hoje com o catálogo de selfies. Quem cede, por outro lado, não demora a ficar perdido para esse ideal de beleza que se confunde com a magreza e, portanto, com a imagem dos santos do nosso omnipresente altar, esses seres abnegados, que dão uma trinca na piza ou no mil-folhas mas depois alimentam-se a talos de couve.
“O mais lógico dos estetas do século XIX, Mallarmé, disse que tudo no mundo existe para acabar num livro. Hoje, tudo existe para acabar numa fotografia”, conclui Susan Sontag.
Num provocatório e mordaz texto publicado em 2019, nas redes sociais, a jornalista de cultura Joana Emídio Marques, apontava a persistência do tabu sexual em plataformas como o Facebook, “que censura e apaga mamilos e sexos”, ao mesmo tempo que se torna uma passadeira para o desfile de pratos de comida – “desde a vossa casa aos brunchs obrigatórios a quem quer sentir-se gente”. “À pornografia dos corpos, dizem-nos, devemos preferir a pornografia culinária. A TimeOut triunfa sem precisar de maminhas; basta-lhe pôr na capa umas bolas de Berlim, uns hambúrgueres e batatas fritas, vinho, gin colorido, e até já pôs os jornalistas a cozinharem em directo para as redes sociais. A nova geração gosta de dizer-se foodie mas jamais dirá que fode. Pois é. O puritanismo millenial instalou-se e dita o lema para os nossos dias: comam pequenos sujos, comam, que não há mais metafísica no mundo que uma bowl de granola com iogurte grego. Make food not love.”
E se no reverso de cada preceito existe uma norma inviolável, um acto interdito, fica claro que em volta da alimentação, da gastronomia e da cozinha existe hoje não apenas uma ética, um regime de valores, mas desenha-se um paraíso, um purgatório e um inferno, e também este conta com os seus nove círculos, três vales, dez fossos e quatro esferas, os quais se vão aprofundando à medida que os pecados em que incorre o comensal se vão agravando. Entre sugestões a candidatas a influencers que têm tentado de tudo, desde o comentário político ao erotismo pindérico das fotografias com poses sugestivas nas redes sociais, a jornalista sugere que talvez seja mais redentor uma selfie em que, em vez de exibir um decote pronunciado, se aprenda alguma coisa com a cena descrita por Cesário Verde no poema acima citado, mas elevando a parada, e, desta vez, em vez das talhadas de melão, damascos e pão-de-ló molhado em malvasia, talvez seja melhor “postar-se a comer bacon frito com feijão num brunch do café Amélia ou a morfar panquecas de beterraba com manteiga”.
A própria dieta tornou-se uma espécie de manifesto pessoal. Não é invulgar as actrizes e modelos serem questionadas sobre o seus regimes no que toca a alimentação e exercício, mas hoje há um vastíssimo elenco de persgonagens que não precisam de promover filmes, séries, telenovelas ou qualquer tipo de produto ficcional, pois o produto são elas mesmas, a ficção é as suas vidas, e aquilo que vendem são ideias de saúde, beleza, abordagens holísticas, mindfulness, terapias disto e daquilo, óleos essenciais, viagens a Bali, espiritualidades à la carte, dessas que têm promovido padres católicos a líderes de seitas de wellness, gurus da mente focada, campos elísios do entretenimento, da redenção, toda uma cultura dirigida a polidos fariseus, e, irradiando uma felicidade envernizada, todos oferecem conselhos, todos se tornam em autores motivacionais, e prodigalizam os seus serviços antes de estarem em condições de cobrar e ter as suas palestras lotadas.
Em face disto, e voltando à alimentação, Joana Emídio Marques lança mais um espinho para esta floral equação: “Tendo em conta que a comida mata muito mais do que o sexo, pergunto-me que plano é esse que o grande capital tem para nós?” E para os escritores que estejam à caça de uma intriga verdadeiramente audaciosa e que confronte directamente as obsessões do nosso tempo, diz-nos que “está na hora de escrever uma nova distopia em que um ditador nos obriga a ingerir comida até à morte canalizando para a mastigação de carne toda a nossa líbido”.
Em tempos de tal modo incongruentes talvez só a sátira, nesse modelo híbrido que veste a crítica com a pele de ovelha do humor, cercando-nos como quem não quer a coisa, esteja em condições de desarmar a resposta epidérmica e ao nível mais literal que é activada sempre que o organismo se sente colocado sob a ameaça de um juízo menos empolgado, menos entusiástico face a este fenómeno da afirmação da comida como um dos regimes centrais da alta cultura nos nossos dias. Mas ainda antes de se forjar essa distopia selvagem, a qual não precisaria de fazer mais do que recolher uma série de testemunhos, recorrer à citação como fez Karl Kraus em “Os Últimos Dias da Humanidade”, como uma arma biológica, de sumptuosa e cáustica ironia, reproduzindo essa histeria que envolve actualmente a comida, deixando em muitos de nós um amargo de boca sempre que nos questionamos porque é que alguns dos nossos contactos nas redes sentem a urgência de partilhar o que comeram ao pequeno-almoço, almoço e jantar, o amargo de uma cultura que faz da satisfação de necessidades básicas outro motivo de ostentação. Se houve um fascismo que empurrou a Europa para a guerra no século passado, no actual regime de esvaziamento devido à aculturação de um poder que se dissemina através dos mandamentos da sociedade de consumo, algumas vozes críticas têm-se elevado contra este fenómeno do consumismo estético aplicado à alimentação. Em 2012, o ensaísta e crítico William Deresiewics, assinou um artigo de opinião no “The New York Times” em que discute esta questão, e diz que, por volta de 1994, quando identificou os primeiros indícios desta nova febre, ao dar-se conta de como muita gente parecia estar em êxtase por ter descoberto a rúcula e o que esta fazia pelas saladas e por alguns pratos, ou pelas vantagens de se comer brócolos orgânicos verdes e crus, tomou tudo isso como sinais animadores, supondo que o nosso renovado gosto pela comida se repercutiria, com o passar do tempo, numa maior consideração também pela arte.
Segundo a litania que então se vulgarizou, as pessoas estavam a redescobrir os sentidos, a reaprender o sabor e o prazer que este proporciona, a cultivar a capacidade de distinguir diferenças subtis e fazer juízos mais finos, que apenas começavam no paladar, mas que, logo, haveria de se estender a outros aspectos da nossa sensibilidade, a começar pelo lado sensual, sendo que o prazer da comida, como refere Maria Alzira Seixo no ensaio “Os Sabores da Literatura ou: como a gastronomia se apoia nos modos de dizer”, “na sabedoria das nações, é uma forma claramente alargada, e por vezes metafórica, da sensualidade”, estando também ligado à religião, como “uma componente de relação elevada e transcendente que acaba envolvendo corpo e espírito, se não em misticismo, pelo menos em implicação total do humano”. No que toca aos americanos em particular, William Deresiewics recorda-se de ter então chegado a pôr hipótese de este culto da alimentação pudesse significar uma tentativa de imitar a sofisticação do Velho Continente.
Os anos que se seguiram não demorariam a fazer pouco destas ilusões. E para este ensaísta, não só a comida não se bifurcou conduzindo por vias inesperadas à arte, mas suplantou-a. O movimento hoje conhecido como ‘foodism’ adquiriu, segundo ele, as características sociológicas de uma forma cultural. Antes de tudo, é cara, tem todas as marcas do privilégio. É um “distintivo” que assinala a pertença um clube reservado, a um regime de elevação social, “é um exemplo claro daquilo a que Thosterin Veblen, o grande crítico social da Idade do Ouro, chamava de consumo conspícuo”.
Deresiewics diz ainda que esta cultura se tornou um veículo de aspiração em termos de estatuto social e uma forma de competição, uma oportunidade sempre ao dispor para exibições de snobismo, de sobranceria e de agressão social. Afinal, quem nunca sentiu uma espécie de indisposição quando algum “amigo” nas redes sociais faz questão de exibir o banquete em que está prestes a ferrar o dente com um ânimo orgiástico? Há nestas manifestações, uma oportunidade nada discreta para um número crescente de pessoas se pavonearem, exibindo-se num regime de novo riquismo invasivo, porque explode nos ecrãs dos nossos telemóveis e computadores. Por outro lado, exceptuando alguns círculos onde a etiqueta manda respeitar outros códigos, um maior requinte e sofisticação nas penas que se exibe, já ninguém se interessa, como diz Deresiewics, se tu sabes quem é Mozart ou Leonardo, mas se queres dominar a conversa que decorre durante o brunch é bom que saibas a diferença entre ganache e cobertura.
De resto, não deixa de ser sintomático que isto se possa ler no mais recente livro de um poeta que há não muito tempo soube ser uma espécie de oráculo para tempos de devastação: “Em boa verdade, os filetes de pescada e o vinho verde tinto da Casa Nanda são tão irrefutavelmente poéticos como um soneto de Camilo Pessanha”. Isto é a última desconsideração pela poesia de um poeta que, assumidamente, perdeu o acesso à coisa, e não podendo senão comtemplá-la de fora, entretêm-se com insultos. O ex nesta história é Manuel de Freitas, que não terá tido, em tempos, dúvidas em inscrever-se entre os continuadores de Cesário Verde (e Cesário, ficamos a saber nas páginas deste seu último livro é o nome que deu a um dos gatos que tem cativo da sua mansidão doméstica; a outra gata chama-se Daisy, talvez em homenagem àquela do soneto de Álvaro de Campos, esse que acaba com um ressoante “raios partam a vida e quem lá ande”). Não terá dúvidas em homenagear Cesário, mesmo que esse distintivo remeta logo que possível para a linhagem que se inicia com Baudelaire e um spleen que preferirá sempre passear-se por Paris. E não é bem ilustrativo este conceito de equivalência entre um poema de Pessanha, aquele que respeitou acima de todos o mandamento de Eliot de que a principal tarefa do poeta é escrever pouco, e isto dito por um crítico e (em tempos) poeta que foi tão significativo na definição de um código de usos e consumos cuja exibição não só era aceitável mas conjugava o verbo existir nos diferentes tempos e modos dessa pose que tanto se arrepia com os consumos de massas, e que, hoje, não hesita em fazer do seus livros uma espécie de catálogo de quisições numa mercearia gourmet, colocando a um mesmo nivel compositores de música erudita, pintores, whiskys velhos, vinhos de reserva ou não, um espumante aqui, umas nozes ali, restaurantes recomendáveis, pratos como massa de polvo… É o que resta a quem sente que o papel que, nos nossos dias, aquilo a que uma sensibilidade artística fatalmente nos condena é a actuar como o porteiro de um clube exclusivista, revalidando os títulos de uns, impedindo a passagem a outros, impondo uma lista de quem merece entrar neste ou naquele olimpo artificial.
É fácil de entender que, para uma geração imersa na cultura de massas, em que os consumos se tornaram o meio mais fácil de aferir sobre a sofisticação dos nossos espíritos, Deresiewics reconhece que é fácil olhar para a comida como algo que engloba a criatividade, o comércio e as opções políticas, mas também a saúde, e, por esta razão, a comida tornou-se a peça central, e adquiriu uma importância religiosa, e que volta a ser o eixo de uma urdidura de novos preceitos.
“Tal como a arte, a comida é também uma paixão genuína que as pessoas gostam de partilhar com os amigos. Muitos arregaçam as mangas e entram nela como amadores – e a figura do chef de fim-semana é hoje tão comum como o pintor dos domingos.” E à medida que todos experimentam essa espécie de pintura por números que é a culinária ao alcance de quem tem os meios para tratar a comida como mais do que uma necessidade, como algo de recreativo e prazeroso, é normal que surja um culto e até uma idolatria pelos profissionais, havendo hoje tantos chefs venerados como génios ou até autênticos líderes espirituais.
Mas uma cultura com esta capacidade de irradiação só é possível a partir do momento em que há toda um aparato mediático que a sustenta e força esses paralelos constantes com o mundo da arte. E a literatura é das primeiras a vergar-se e a admitir a vizinhança dessas formas de promoção e crítica, com os jornais e as revistas a irem atrás destas tendências, cultivando uma série de subgéneros que em poucos anos instituem esse frenesi como um peça fulcral da vida em sociedade, amarrando-a às componentes tradicionais, ao regime popular e aos usos criativos de um povo para se servir dos recursos à sua disposição para elevar o que começa por ser um regime de sobrevivência e que, com um certo desafogo e alguma dose de fantasia, se alça à conquista das sensações e do prazer que uma garfada ou um gole podem provocar. E se é certo que é na fuga a uma certa ortodoxia, como lembra Maria Alzira Seixo, que uma gastronomia atinge esses laivos artísticos, convocando a imaginação criadora que se manifesta, por vezes, no requinte da excepção, se é certo também que “a actividade gastronómica sempre se caracterizou por um forte alcance cultural, não raro ligado a raízes históricas, ambientais e patrimoniais”, também é evidente que a partir do momento em que se perde o vínculo da alimentação com a ideia de satisfação de uma necessidade básica, esta resvala para uma forma de esteticismo, uma religião hedonista, e nisto, arranca as suas raízes e entrega-se a delírios de privilégio e degrada-se como qualquer forma de alienação.
Para isso aponta o jornalista gastronómico Ricardo Dias Felner, que foi em tempos director da Time Out, que reconhece que os excessos passaram a caracterizar esta cultura que, de um lado tem os foodies, pessoas que, em muitos casos se deixam agenciar, e se servem da sua influência nas redes sociais para promover certos produtos, e do outro tem os produtores, as marcas, empresas e restaurantes que, em troca de serviços de divulgação, oferecem umas borlas e ajudam a cimentar a reputação desses influencers mais cooperantes. Estabelece-se, assim, uma trama de cumplicidades em que se torna muito difícil descortinar entre o coro que se produz o que representa verdadeiramente uma demanda em busca de sabores e sensações que produzem uma revelação estimulando o palato e os sentidos capazes de formar em fila atrás dele ou mesmo de aguentar numa formação em círculo essa “avalanche de sensações” que Felner diz ser “a magia da comida”. Para este crítico gastronómico que tem recusado várias propostas para escrever favoravelmente sobre este produto ou aquele restaurante, e que tem tentado assim manter a carteira profissional e viver do jornalismo “enquanto for possível sobreviver disto”, aquilo que depois de décadas continua a ser arrebatador para ele nas experiências que tem com a comida é a forma como, mesmo tendo por hábito comer tanto em restaurantes de fine-dining como em boas tascas, e sendo frequente ter excelentes refeições de degustação, continuam a ser raros esses momentos em que se dá uma revelação, em que um prato o leva a um estado alterado, remetendo para alguma memória, algo de mais profundo, a ponto de um dia mau poder de súbito ser virado do avesso e fazer o seu estado de espírito florir, quase por engano, como num poema de Pessanha floriram as rosas bravas no Inverno. “Tal como uma música ou um quadro”, diz Felner, “já me aconteceu sentar-me ao almoço, estar a meio de um dia mal encaminhado, e de repente tudo muda com uma garfada”. Por isso, mesmo se é crítico de tantos excessos no mundo gastronómico, tantas invenções disparatadas, tantas aproximações forçadas à arte, e até tentativas de aproximar certos pratos como quadros famosos, de estetizar excessivamente a cozinha, Felner diz não ser “completamente avesso à ideia de que a cozinha pode ser praticada como uma arte”. Admite que algumas das sensações que teve à mesa não as consegue distanciar do enlevo que lhe provocaram obras de ate canónicas, e admite que a boca já lhe deu arrepios, sensações espirituais. De resto, lembra que mesmo a ideia da arte é algo difícil de fixar, sendo que, até ao século XIX o que havia eram ofícios, a pintura era encarada como um ofício e não se assumia arrogantemente como um género artístico como tantas vezes acontece nos nossos dias. E frisa ainda que, em recção a esse excesso de estetização e mesmo à tendência para intelectualizar a cozinha, hoje, muitos chefs preferem ser chamados de cozinheiros, assinalando esse vínculo aos mestres de ofício, à artesania desta actividade.
Seja como for, seja reforçando a componente popular e regional, essa história da evolução dos sabores de que um povo foi sendo capaz para enganar ou se vingar das dificuldades, seja firmando algum assentamento fora do mapa das possibilidades ao alcance da maioria, cruzando alguma fronteira no campo da cozinha erudita, José Bento dos Santos lembra a importância das especiarias que os portugueses foram buscar ao Oriente e como isso mudou a nossa cozinha, lembra que há factores económicos que, hoje, se sobrepõem às considerações limitadoras de uma tentativa de explicar um fenómeno vastíssimo, que conta com adaptações e novidades muitas vezes ridículas, mas que também vai alcançando marcos artísticos. Assim, para este gastrónomo que está à frente dos vinhos da Quinta do Monte d’Oiro, sendo embora raros, não há como negar o estatuto de artistas a esses cozinheiros que põem os seus dotes ao serviço da gastronomia, pesquisando, explorando sabores, que depois tantos outros copiam e adaptam, servindo novos pratos a um público insaciável e ansioso por novidade, mas que muitas vezes tem dificuldade em perceber as diferenças quando elas são mais subtis e realmente produzem sensações extraordinárias. “Há pessoas incapazes de distinguir um frango de aviário de um frango de Bresse, que custa 20 ou 30 vezes mais, mas que é uma estirpe incomparável – frangos alimentados a milho e que passam toda a sua vida em liberdade. Do mesmo modo, nem toda a gente pode comprar um Rothko e o número daqueles que podem apreciar um é ainda menor, mas ainda bem que os quadros existem”, diz Bento dos Santos.
Depois há todo um outro lado que desenha o quadro especulativo, e Ricardo Dias Felner reconhece que neste século a comida se tornou tema das políticas de turismo, sendo a este respeito paradigmático o caso do Peru, país que nunca teve uma gastronomia ou uma tradição culinária por aí além, mas que através de uma aposta de sucessivos governos no turismo palatal se tornou uma referência da cozinha mundial. No que toca a Portugal, Felner diz que nos últimos anos, finalmente, o governo começou a perceber as regras do jogo, e tem apostado em trazer jornalistas e críticos gastronómicos influentes para comerem por cá e levarem notícias da nossa cozinha a esse admirável mundo novo em que uma colher na boca pode fazer mais pelo viajante do que uma montanha onde, quando neva, dá a sensação que Deus esteve a barbear-se.
O antigo director da Time Out diz que, embora possa vir a afirmar-se como uma potência gastronómica, Portugal ainda corre atrás do prejuízo, e “os espanhóis têm uma pata em cima de nós, porque os estrangeiros confundem as duas cozinhas”. Se isto leva à desvalorização das diferenças e dos aspectos em que a nossa gastronomia é única, Felner refere que muitos portugueses têm contribuído para esta confusão, e, lá fora, não hesitam em promover os seus restaurantes como oferecendo pratos de “cozinha ibérica”.
Não é fácil dirimir o conflito e as confusões que sinalizam o momento em que a actividade gastronómica se assumiu como um dos elementos centrais do espectáculo que absorve hoje as nossas sociedades, multiplicando os prémios, os programas de televisão, e as figuras messiânicas que fazem da cozinha e da alimentação uma panaceia. Em grande medida, a gastronomia corporiza idealmente, como nota Deresiewics, a ideia de “um ecletismo de mentalidade global”. Assim, como palco para a enunciação de muitos dos aspectos mais sedutores da globalização, para o ensaísta norte-americano, “tal como o esteticismo, a religião da arte, herdou a posição do cristianismo entre as classes progressistas na viragem para o século XX, também o foodism tomou o lugar do esteticismo na viragem para o século XXI”. “E hoje, já não lemos o Evangelho segundo Joyce ou Proust, mas segundo Michael Pollam e Alice Waters”, diz-nos Deresiewics.
E isto marca não apenas a proeminência da actividade gastronómica, mas deixa claro uma secundarização de outros ofícios e artes, e desde logo a tendência para, em vez de encontrarmos hoje nos romances páginas com descrições tão copiosas como deleitosas de soberbos repastos, o que tende a acontecer é que surge toda uma literatura de memórias, livros de viagens centrados em explorações gastronómicas, e estas não só rivalizam como passam a perna a géneros mais ousados do ponto de vista literário. Se é certo que, como nos diz Camilo Castelo Branco, o estômago pode servir como pólo de atracção vital quando outros falham, perdem a sua gravidade e pregnância, o risco é que essa fuga seja um modo de fugir ao mundo com “a razão espavorida”, e pode acontecer que “por muito comer” acabemos por descer à cova. E isto, é claro, em muito mais sentidos do que o literal. De qualquer modo, não há como apagar as tantas lições que o estômago pode ensinar até ao coração, e como nos diz Alzira Seixo, é sinal de lucidez reconhecer como este “se apraz num hino aos prazeres materiais assentes na salubridade simples e nas satisfações imediatas, que não deixam de actuar em profundidade” e nos dão até uma via muito directa para se experimentar o verdadeiro sentido de viver.
E nem se perde muito, num tempo em que a sensualidade anda tão por baixo, que se aprenda alguma coisa, até literariamente, numa proximidade mais debruçada sobre o mundo, e não apenas sugerindo este ou aquele prato, escolhendo este vinho da carta, mas apreciando a paixão quando ela mais se confunde com uma necessidade, já que às vezes até o gosto de ver alguém comer desperta em nós uma razão simples e que andava afadigada. A fome, afinal, é um sinal dessa força que liga, transforma as coisas na relação sensível que equilibra o mundo, e do mesmo modo como os dentes rasgam, como se apronta a saliva, quase ressalta, fazem-se ruídos, migalhas, e há uns modos enfáticos, por vezes mesmo uma sofreguidão, assim se mistura a comida com o corpo, e fica um pouco indistinta a fronteira entre sensação e ser.
“Por outro lado, num reverso que não é avesso mas reciprocidade”, diz Alzira Seixo, há características historicamente ligadas ao Modernismo e em que a gastronomia soube valer-se da palavra “para se explicitar a si própria, em termos que implicam um saber que apela para a ‘literariedade’, isto é, para a insistência no ‘sabor’ literário”. Neste seu estudo, a académica e crítica literária, deixa claro como basta às vezes a poesia concreta de empratar numa frase as designações comuns dos alimentos para, entre elipses de bom corte, nos fazer vir água à boca, e deixar a cabine do nosso juízo sujeita a uma inundação de sensações deixando à tona as memórias e impressões mais diversas, e fazendo mais por nós do que tantos e tão insossos poemas que, realmente, teriam dificuldade em competir com um simples perna de frango de aviário.
Para ilustrar esta noção de que, sendo embora a alimentação um acto primacialmente instintivo, logo se torna numa actividade estética – “pelo menos nesta espécie de ‘partitura’ musical que aqui a condiciona, ou de poema, com o qual, na ideia, vamos saborear os alimentos” – em que através das palavras é possível saborear já um “transfiguradíssimo repasto”, cita algumas designações de pratos, extraídas de ementas de vários restaurantes. Eis alguns exemplos:
“Das nossas lezírias, as enguias assadas em crosta e fritas de escabeche, alho novo e tomates marinados juntos numa alhada/ Um grande achado… abrótea arrepiada e assada em crosta de pastel de bacalhau, cenoura no forno e sopinha de agriões mouros/ Da antiga Lisboa esta lembrança… perdiz de peitos feitos com as britadas e sardinhas anchovadas assadas, maçã bravo de Esmolfe no forno com milhos e tomilho/ Toiro das lides numa festa brava com Alternativa Farpas, farturas, prego, ovo a cavalo e flores…as pedrinhas de sal a rematar”… Nestas ementas, Alzira Seixo releva não só preocupações de estrutura, elaboração verbal, como alianças imaginativas e oníricas ou de cariz poético (“ovo a cavalo e flores”, por exemplo), assim como ironia e gracejo conotativos: “juntos numa alhada” ou a “perdiz de peitos feitos”), implicando objectivos de requintadada e divertida transfiguração. E dá muitos outros exemplos no seu espantoso ensaio, obrigando-nos a ter em atenção o engenhoso recurso “a designações de índole poética, a primeira das quais algo surrealizante, e as outras trabalhando na linguagem a enumeração, os diminutivos, a metáfora (‘raízes esquecidas’), as transposições e, muito bem concebida, a aliança entre o lugar de proveniência da espécie, ou do hábito culinário, com a expressão contemplativa (na ‘maré’, no ‘passeio algarvio’, na ‘levada’) e o humor (‘a pera bêbeda’), entre vários outros traços curiosos”. Eis mais uma leva exemplos:
“Num arraial, um piano com duas notas do mar as sardinhas como os ossos no piano de porco assadas, migas soltas de favinhas, alfádega, broa de milho e piso de pimento/ Hoje o clássico bife do beijinho…Estufado lentamente em borras de vintage e engaço, gratin com abrunhos secos e chips de raízes esquecidas/ Um sarrabulho? E grande! Fritada de coelho de olho preto em marinada de sorça, seu arroz como uma cabidela em ouriço de castanhas/ Piscar de olhos a despertar a maresia… Cavalinha do Cabo Espichel assada, uma de camarão uma de amora e outra de amêijoa boa e seu xarém de hortelã da ribeira/ Um embalo ao sabor da maré Sapateira e camarões num recheio a lembrar um croquete num lombo de corvina do estuário e caldo à fragateira/ Num passeio algarvio uma brisa senti… Salmonete de Quarteira no forno com flor de sal sumagre, figo fresco e presunto em sopa de tomate chuchu/ A bêbeda do costume … Pêra Rocha entorpecida e assada no abafo de vinagre de mel, caroço de queijo cabra Granja numa trouxa”…
E se, com todo este vigor, toda esta audácia expressiva e ousadia na forma como exprime os seus valores simbólicos e, valendo-se das estratégias de marketing, chega a envergonhar tanta da poesia que hoje se escreve pelos recursos de que se serve, Deresiewics insiste que a comida não é uma arte, e não o é porque se limita a dirigir-se aos nossos sentidos, mas não vai mais longe do que isso. O resto somos nós a atribuir-lhe poderes e derivas que estão em nós. Para este ensaísta aquilo que lhe falta é precisamente o que a gastronomia sabiamente vai buscar às outras artes, ou seja, a capacidade narrativa e representacional. Por mais ênfase que se ponha nuns filetes de pescada e num vinho verde tinto, no prazer sublime que estes proporcionam, nem estes organizam nem, por si, expressam emoções, e são incomparáveis com qualquer poema de Camilo Pessanha ou até de Manuel de Freitas. E é natural que possamos preferir os filetes ao poema que os exalta, mas se essa preferência pode dizer alguma coisa sobre a qualidade do poema, não permite inferir qualquer equivalência. A nossa preferência não torna equivalentes nem confunde coisas de natureza distinta. Mas é certo que, no caos que se gerou no seio da arte, boa parte da crítica perdeu todo o discernimento, especialmente quando “há uma tendência crescente para usar a poesia como ornamento do poder económico” e até para “falar de um poema como de um objecto apropriável, algo que se pode receber sem que o objecto recebido ponha em causa o sujeito que recebe” (Silvina Rodrigues Lopes), mas o que é incontornável é que, ao contrário de um poema, “uma maçã não nos conta história nenhuma, mesmo que nós possamos contar uma história sobre ela”, esclarece Deresiewics, que vê o risco de confundirmos o nosso palato com as nossas almas. Do mesmo modo que “um caril não é uma ideia, mesmo que a sua criação possa resultar numa”. “As refeições podem evocar emoções”, defende o norte-americano, “mas apenas de forma rudimentar e generalista, e apenas dentro de um campo bastante limitado – conforto, deleite, talvez nostalgia, mas não raiva, ou tristeza, ou milhares de outras coisas. A comida é altamente desenvolvida como um sistema de sensações, mas é extremamente pobre como um sistema de símbolos. Quando Proust escreve sobre a madalena está a fazer arte, mas a madalena em si mesma não é arte.”