por Ana Maria Simões
Por estes dias, Marcelo Rebelo de Sousa olhou-se ao espelho e só se viu Presidente da República. O constitucionalista tinha desaparecido. E o Presidente que se mirou no espelho estava esquecido daquele discurso de Janeiro de 2021, proferido em noite de reeleição, quando assegurou «solidariedade institucional total» com o Governo.
O Presidente gosta de agradar ao maior número possível de pessoas, sente-se liberto de quaisquer constrangimentos partidários, pela função e por feitio, e gosta de se ver como gerador de consensos – especialmente quando o Governo teima em não o fazer.
Desta vez quase conseguiu o pleno, da esquerda à direita, do Bloco ao Chega, do CDS e da IL ao PCP, sendo o sorriso mais discretamente rasgado o do PSD de Rui Rio. No quase está o diabo do detalhe de o Governo ser contra a aprovação de «medidas de apoio social urgentes» que aumentam a despesa e põem em causa a execução do Orçamento Geral do Estado ou, pelo menos, a maneira como o tencionava gerir.
Percebe-se, no entanto, que tudo isto não é tanto uma questão de contas: é mais de faz de conta. O Governo quis testar o Presidente – e o Presidente respondeu com um teste geral ao Governo e à Oposição: um dois em um. E a Oposição dramatizou. E o Governo não gostou.
E a meio da semana, «mesmo garantido que não há conflito ou divergência com o Presidente», o Governo decidiu pedir a fiscalização (sucessiva) dos diplomas que insiste que são inconstitucionais (ver página 22).
O primeiro-ministro foi dizendo que contava com o veto do Presidente aos três diplomas que propõem uma série de apoios sociais tidos como urgentes, aprovados pelos partidos da Oposição no parlamento – com a abstenção, num, e os votos contra, em dois, da bancada socialista –, mas que estavam fora das contas para o ano corrente. A despesa extra, ainda assim, poderá ser acomodada no orçamento – margem que o Presidente aproveitou.
O primeiro-ministro ainda foi dizendo, que se os diplomas fossem promulgados, o Governo iria recorrer ao Tribunal Constitucional. O que é pouco mais do que inútil, para além de afrontar o Presidente. Mas o primeiro-ministro decidiu fazê-lo. Agora está nas mãos dos juízes do Palácio Ratton, que têm prazos próprios e quase flexíveis.
Numa primeira fase, à criatividade jurídica de Marcelo, Costa respondeu com a reconhecida habilidade política. Mas, depois, decidiu ir mais longe.
Os constitucionalistas – na esmagadora maioria, a avaliar pelas declarações públicas, contra o Presidente – a defesa da Constituição e da norma-travão. Os economistas – quase todos a favor do Presidente – a defesa dos diplomas, porque os apoios sociais são emergenciais, não faz sentido o Governo poupar numa altura destas, mesmo sabendo que sem aumento das receitas haverá um agravamento da dívida.
Os politólogos, com as suas elaboradas reflexões sobre segundos mandatos presidenciais, e os jornalistas e outros especialistas fizeram a análise do alcance dos estragos provocados pela promulgação dos três diplomas aprovados na Assembleia da República por todos menos pelo partido do Governo.
O debate animou a semana, vários foram os planos de abordagem, digamos assim, de onde não escapou a sentença de morte decretada à lei-travão e, com isso, a ingovernabilidade por executivos minoritários.
O Presidente diz várias coisas no texto de promulgação – ou, como pretendem não menos ilustres da ciência do Direito – faz «algumas piruetas jurídicas». Faz notar, por exemplo, «que só ao Governo é constitucionalmente permitido aumentar a despesa ou diminuir a receita» e «que a Assembleia da República não desfigura o Orçamento que ela própria aprovou». A pirueta de Marcelo está nisto: aprova os diplomas, mas desaprova que os deputados os tenham proposto. E deixa uma escapatória ao Governo: «Os diplomas podem ser aplicados na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente».
O Presidente antevê a possibilidade de «o Governo poder suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade dos diplomas agora promulgados», mas acrescenta que lhe cabe «sensibilizar» o Governo para o «diálogo com as oposições e tornando evidente às oposições que ninguém ganharia com o afrontamento sistemático».
E a tudo isto o antigo aluno de Marcelo que é hoje primeiro-ministro chamou «algo bastante inovador» na ciência jurídica.
Ana Gomes teria feito o mesmo
A socialista Ana Gomes, a segunda mais votada nas presidenciais de Janeiro de 2021, em declarações ao Nascer do SOL, deixou muito claro que teria feito exatamente o mesmo que o Presidente reeleito: optaria por promulgar os três diplomas que consagram medidas suplementares urgentes de apoio social. «A minha posição seria coincidente com a do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa», disse Ana Gomes. «Em tempos de uma crise sem precedentes, não compreendo que o Governo possa menorizar a importância destes apoios», acrescentou. E Admite que justificaria a promulgação de maneira diferente da que fez Marcelo. Mas «o resultado teria sido o mesmo».
A diplomata e antiga eurodeputada do PS partilhou que «não compreende a atuação do partido do Governo», mais: «Não compreendo como um Governo minoritário se esquece disso mesmo e se comporta como um Governo que tem a maioria sem negociar com as forças da Oposição». De certa forma, e para Ana Gomes, o Governo de António Costa, a queixar-se de alguma coisa, só pode queixar-se da sua própria «arrogância». Porque, diz Ana Gomes, «um Governo que não tem uma maioria não se pode dar-se ao luxo de não negociar», para mais neste tempo de «tremenda crise social em que vivemos».
Quanto à tão evocada lei-travão, Ana Gomes considera um argumento inadequado quando se vive uma crise sem precedentes. Mais incompreensível «é que se discutam esses valores quando se continua a dar milhões e milhões ao Novo Banco/Lone Star». Ana Gomes opta por não alimentar «teses conspiratórias», como o risco da ingovernabilidade do país por governos minoritários, e considera do «mais elementar bom senso» que «o primeiro-ministro António Costa e o Governo, não alimentem, também eles, a ideia de uma crise política». Prefere pensar que o Governo vai aprender com aquilo a que chama «uma lição»: «Os tempos são outros, um governo que não tem uma maioria, não se pode dar ao luxo de não negociar».
Ana Gomes não vê qualquer crise entre Belém e São Bento: «Tudo isto não passará de um episódio, por agora não mais do que um episódio». Depois das eleições autárquicas, «logo se verá».
‘Não foi a 1.ª, nem será a última’
«Não foi uma vez, nem duas, que o Presidente da República fez isto», disse ao Nascer do SOL, por seu lado, o socialista Fernando Rocha Andrade, professor de Direito Fiscal, para quem é evidente que o Presidente da República pôs em causa as condições de governabilidade de um Governo minoritário. Para o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do Governo de Costa, Marcelo Rebelo de Sousa esqueceu o constitucionalista e foi só Presidente da República.
O Governo de António Costa, no documento enviado para Belém, nos dias que antecederam a promulgação dos três diplomas pelo Presidente, dizia que «as normas aprovadas em coligações negativas são inconstitucionais e implicam um grave precedente de desvirtuamento do orçamento em vigor».
Rocha Andrade não gosta da ideia de uma «coligação negativa», prefere a ideia de que se trata «uma coligação positiva», ou seja, um conjunto de partidos uniram-se para aprovarem uma determinada medida. O que o inquieta é o que considera a «questão sistemática». A saber: ignorada a lei-travão, um mecanismo previsto constitucionalmente, o Presidente da República põe em causa uma norma essencial da «preservação do equilíbrio entre o Governo e o Parlamento». Interfere nele com ele.
Segundo Rocha Andrade, é a terceira vez que o Presidente ignora no seu jogo político o que é «a peça fundamental do equilíbrio de poderes entre o Parlamento e o Governo» – e não é possível a governos minoritários sobreviverem sem esta «peça de equilíbrio».
Os atos do Presidente da República, sinalizados desta forma, não devem ser ignorados, vai avisando Rocha Andrade.
‘O erro foi do Governo’
Para o jornalista e comentador político Raúl Vaz, o Presidente não podia ter feito de outro modo e quem pensou o contrário errou, cometeu um inexplicável erro de avaliação. E quem errou foi, essencialmente, o Governo. Até porque, diz, «há aqui outro erro de base, que é não se perceber que Marcelo Rebelo de Sousa é, acima de tudo, o Presidente». «Marcelo Rebelo de Sousa é um político, e esse é o primeiro patamar do seu processo de decisão», acrescenta.
Raúl Vaz considera relativamente absurdo qualquer cenário de crise política. E vai mais longe: enquanto durar a pandemia, e a pandemia não termina amanhã ou no final do ano, os seus efeitos serão mais duradouros, não lhe parece que o Presidente da República e o primeiro-ministro, especialmente o primeiro-ministro, tenham a ‘veleidade’ de gerar uma crise política, porque, para haver uma crise política, é necessário que haja alguém que a entenda. Por agora, e na sua opinião, a crise política está, no mínimo, adiada.
Raúl Vaz reforça que o Presidente tinha dado indícios claros, ao longo dos últimos meses, e em especial nas últimas semanas, de que era urgente mais apoios sociais. Quando os diplomas do Parlamento chegaram a Belém, era difícil pensar em outra coisa que diferente da promulgação.
Fará o Presidente um segundo mandato claramente distinto do primeiro na sua relação com o Governo? Raúl Vaz considera que não, até porque a questão não é tanto que o Presidente esteja no seu segundo mandato, mas, antes, que está a fazer um segundo mandato em pandemia, e isso não é comparável com outras situações vividas na história recente do país. Além do mais, «fez um favor ao Governo», porque «os apoios sociais urgentes são mesmo necessários».
Neste arremedo de conflito, quem mais errou foi o Governo, reforça, até porque «não se pressiona publicamente o Presidente da República».
Em dezembro do ano passado, a politóloga Marina Costa Lobo, em artigo publicado no Expresso, escrevia: «À superfície, vemos que a popularidade de Marcelo leva a que os inquiridos desejem que o (futuro) Presidente intervenha mais. Além disso, mais à direita, os eleitores queriam que Marcelo tivesse feito oposição ao Governo de Costa».
Por estes dias, Marcelo não respondeu só aos desejos da direita, mas também aos da esquerda.
Mesmo que as relações entre São Bento e Belém sejam outras durante o segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, ainda é cedo para falar em crise no relacionamento do Presidente com o primeiro-ministro. Também é prematuro falar em crise política, porque, como diz Raúl Vaz, «para haver crise política é preciso que haja quem a entenda». Ou talvez não. António Costa parece crer (ou querer) que há quem a entenda.