A História é nossa, minha e deles

Presidente Marcelo aproveita 25 de Abril para apelar à conciliação e ao fim das tentativas de radicalização e politização da História de Portugal, dos Descobrimentos à descolonização. 

A História é nossa, minha e deles

Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito Presidente pelo centro e ao centro, mas foi a pensar nos extremos que fez o seu discurso evocativo do 25 de Abril de 1974. No final, no Parlamento, recebeu aplausos de todos os partidos menos de um, e fora dele tem recebido mais elogios do que críticas. Todos concordam que foi um discurso muito bem escrito. Mas aqui termina o consenso.

«Marcelo Rebelo de Sousa percebeu a essência da autoridade do poder presidencial, num sistema em que o Presidente da República não tem poder, mas tem autoridade», disse ao Nascer do SOL o politólogo José Adelino Maltez.

«Foi um discurso de grande qualidade», afirmou outro politólogo, António Costa Pinto, e a mesma opinião é partilhada pelo historiador Fernando Rosas, para quem o discurso do Presidente da República foi «inteligente, bem escrito e relativamente inesperado» – ambos também em declarações a este jornal.

O Presidente da República «procurou meter-se na pele de uns e de outros», ou seja, da esquerda e da direita, considerou outro historiador, Jaime Nogueira Pinto, num recente debate com Fernando Rosas na TVI24. Rosas e Nogueira Pinto concordam que o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa é, de certa forma, um apelo ao fim do absurdo na interpretação da História ou da manipulação histórica, fatores de tensão na atualidade política portuguesa. Para Nogueira Pinto, a historiografia não inventa factos e a manipulação que se faz por estes dias evidencia uma «grande ignorância». Para Rosas, trata-se de manipulação política com propósitos claramente definidos.

«Marcelo Rebelo de Sousa, ao contrário de anteriores Presidentes, dado o seu estilo político de grande intervenção discursiva, não precisa de ritualizar em momentos-chave as grandes marcas do seu discurso político, porque ele comenta a vida política quase todos os dias», disse-nos António Costa Pinto. Para o politólogo e historiador, Marcelo, ao escolher este tema, tentou responder a alguns desafios, que têm que ver com o que tem marcado as sociedades ocidentais, na Europa e nas Américas, no que respeita a «políticas do passado», o que tem dividido muito as sociedades, radicalizando-as, e deu como exemplo o que se passou nos Estados Unidos da América, a herança do esclavagismo ou a dinâmica anti-Trump, que se manifestou através do derrube de estátuas de esclavagistas.

Nós por cá tivemos a vandalização da estátua do padre António Vieira, no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, onde na base foi escrito «descoloniza», a que se seguiu o repúdio do ato e um debate intenso sobre a visão «da escravidão seletiva dos povos africanos» de Vieira. O debate ainda pairava, bem como a polémica sobre os brasões dos jardins da Praça do Império, em frente aos Jerónimos, quando o deputado socialista Ascenso Simões propôs a destruição do Padrão dos Descobrimentos. Poucos a favor, quase todos contra, e o debate subiu de tom. Aconteceu em fevereiro, no mesmo mês em que morreu o luso-guineense, Marcelino da Mata, tenente-coronel do Exército português. Marcelo Rebelo de Sousa e o Governo prestaram-lhe homenagem enquanto a opinião pública se dividia entre o elogio ao herói e a condenação do vilão. A poeira do debate teimava em não assentar e eis que Vanusa Vera-Cruz Lima, a investigadora cabo-verdiana numa universidade norte-americana, identificou «passagens racistas» em Os Maias, de Eça de Queiroz. E mais uma vez, o apelo que foi também o do Presidente no discurso da sessão solene do 25 de Abril de 2021, de «olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado».

«No último ano, ano e meio, e mais ao nível das elites do que propriamente da sociedade, Portugal tem assistido a uma tentativa de radicalização e politização desses temas ‒ não é por acaso que o Chega vai para Guimarães fazer o início da sua campanha eleitoral», mencionou Costa Pinto. Mas a questão não se fica por aqui, pelo Chega. Para o politólogo, esta surge também porque «algum ativismo radical de extrema-esquerda tem associado muito a ideia de Portugal pedir desculpas perante o seu passado colonial», e Marcelo Rebelo de Sousa «tentou, com este discurso, responder a esta questão» ,  sendo que é um apelo difícil, este, para que não se veja o passado com os olhos do presente, reforçou.

E o Presidente tem disso consciência, ele próprio afirma que «este revisitar da História aconselha algumas precauções», sendo que a primeira é «não levarmos as consequências do olhar de hoje sobre os olhares de há oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois séculos, ao ponto de passarmos de um culto acrítico triunfalista, exclusivamente glorioso da nossa História, para uma demolição global e igualmente acrítica de toda ela, mesmo que a vários títulos é sublinhada noutras latitudes e longitudes». Alerta-nos, ainda, como precaução, para «aprendermos a olhar, em particular quanto ao passado mais imediato, com os olhos que não são os nossos, os do antigo colonizador, mas com os olhos dos antigos colonizados, tentando descobrir e compreender, tanto quanto nos seja possível, como eles nos foram vendo e julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se tornaram mais intensas e duradouras, e delas pode haver o correspondente e impressivo testemunho».

José Adelino Maltez não deixa de assinalar «a coragem» de Marcelo Rebelo de Sousa ao enfrentar a questão colonial e pós-colonial, colocando-se no lugar do português comum e procurando a «(des)crispação», contrariando a «polarização» da sociedade portuguesa. No entanto, refere, nada que elimine a «diversidade» e a «complexidade» de que somos feitos, sendo que construímos a nossa ideia de passado com base no que somos no presente.

Para o politólogo, o discurso conciliador e unificador de Marcelo vem numa linha de continuidade de discursos no mesmo tom e no mesmo sentido de anteriores Presidentes, desde o militar Eanes aos civis Soares, Sampaio ou Cavaco. Seja como for, Maltez considera Marcelo Rebelo de Sousa um dos políticos «mais inspirados» de Portugal.

Para Fernando Rosas, o Presidente fez uma condenação muito explícita à ditadura e ao império colonial, contra «uma nostalgia imperial» ao gosto de uma visão histórica «da cruz e da espada», que caiu bem à direita e à esquerda, mas nada bem à direita mais radical, considera o historiador, que, no entanto, não concorda com o «subtexto» do discurso: o de «uma História consensual» e de «reconciliação com o passado». Rosas faz um apelo um pouco no sentido contrário ao do Presidente, invocando uma interpretação da História plural, competitiva e, até, conflitual ou polémica. Costa Pinto opta pela expressão «o passado é poliédrico» e acrescenta outra ideia, a do fim do consenso lusotropicalista, o que se reflete nas tensões identitárias cada vez mais politicamente ativas na sociedade portuguesa.

É mais ou menos óbvio que o Presidente tentou pôr, com o seu discurso do 25 de Abril, algum freio num certo discurso ideológico, identitário da extrema-direita, considera Fernando Rosas. Por último, não deixou de notar que a ideia de uma «reconciliação com o passado» não é um conceito da historiografia, mas da moral e da política.

Porém, entre a História e a moral, Marcelo, o político, arriscou. «Esses Capitães de Abril não vieram de outras galáxias, nem de outras nações, nem surgiram num ápice naquela madrugada para fazerem História. Transportavam consigo já a sua história, as suas comissões em África, uma, duas, três, alguns quatro, anos seguidos nas nossas Forças Armadas, tendo de optar todos os dias entre cumprir ou questionar» e foram, pois, «estes homens, eles mesmos, não outros, os heróis naquela madrugada do 25 de Abril», disse o Presidente, no seu discurso de 25 de Abril de 2021, ele que «é filho de um governante na Ditadura e no Império, que viveu, na que apelida de sua segunda Pátria, o ocaso tardio inexorável desse Império, e viveu depois, como constituinte, o arranque do novo tempo democrático».

Começámos por dizer que Marcelo Rebelo de Sousa recebeu mais elogios do que críticas, mas não nos devemos iludir: não há consenso quanto ao seu discurso. No Parlamento, não foi aplaudido por André Ventura e, além dele, o historiador Manuel Loff, nas páginas do Público, num artigo de opinião, deixou claro que não estava disponível para «a unanimidade» em torno do discurso do Presidente, e explica porquê: «Pela minha parte, eu e muitos investigadores estamos disponíveis para ‘estudar o passado e nele dissecar tudo’. Mas ‘tudo’ é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, atos inaceitáveis à luz da moral e do direito (não apenas os de hoje mas também os do momento em que foram praticados), o Estado e a maioria da sociedade nunca quiseram assumir e não querem que se investigue. Era bom que o Presidente esclarecesse se ‘dissecar tudo’ abriria, afinal, essas discussões que ele entende não serem ‘prioritárias para os portugueses’, e que é ‘duvidoso que o sejam alguma vez’. Se assim fosse, teríamos de duvidar da sinceridade do discurso».