Como é que a TAP chegou a este estado?
A primeira coisa que é preciso explicar é que em 1992/93 houve uma transformação estrutural do transporte aéreo na Europa. E essa transformação ainda é ignorada em declarações pelo primeiro-ministro, pelo ministro das Infraestruturas, pela oposição e pela maior parte da opinião pública. E dou-lhe exemplos. A regulação internacional de transporte aéreo dos anos 40/50 do século passado foi feita em função das companhias aéreas estatizadas que operavam num sistema de soberania do Estado sobre o seu espaço aéreo, em que as rotas eram fixadas por acordos entre Estados, não havia concorrência entre elas – fazia parte do acordo – e os preços eram fixados por um oligopólio que era a IATA. Nessa altura, podia-se falar de companhias de bandeira, porque prestavam obrigações de serviço público, contavam com o auxilio do Estado, podiam nomear políticos para cargos técnicos e operar rotas deficitárias. Como companhia de bandeira entre 1975 e 1994, a TAP recebeu do Estado 2.429 milhões de euros (valores atualizados a 2020), ou seja, as companhias de bandeira eram caras. Beber esse modelo de negócio e depois vieram para a Europa. Hoje há quatro companhias e meia low-cost: EasyJet, Ryanair, Vueling, Norwegian – que teve problemas quando lançou o longo curso mas foi reestruturada e a parte europeia mantém-se – e a húngara Wizz que é hoje de capital internacional e que se juntou ao grupo. Todas estas companhias são criadas por empreendedores geniais, como O’Leary da Ryanair e Lundgren da EasyJet. Para ter uma ideia, a Ryanair transporta 142 milhões de passageiros.
Tinham obrigatoriamente que ser financiados pelo Estado?
Quando necessitavam, o Estado ponha lá dinheiro. No entanto, em 1992 foi criado o mercado único de transporte aéreo e em 1993 houve uma liberalização do transporte no espaço aéreo europeu, em tudo similar ao que houve em 1978, nos EUA com o Presidente Carter. O que é que isso representou? Deixou de haver companhias nacionais e passaram a existir transportadoras aéreas europeias que podiam operar em qualquer país livremente, assim como definir rotas, mas estavam sujeitas a regras de concorrência. Neste mercado, os auxílios do Estado como nós agora os vimos passam a ser estritamente regulados e a exigir sempre um plano de reestruturação.
Existe sempre uma contrapartida?
Exige sempre a imposição de um plano de reestruturação. Por isso é que Pedro Passos Coelho não queria este plano de reestruturação. E as obrigações de serviço público deixaram de ser das companhias para passarem a ser definidas por rotas. Em Portugal as únicas rotas onde há obrigação de serviço público é entre Bragança e Alvor e entre as ilhas mais pequenas dos Açores. A operação nessas rotas é sujeita a concurso internacional a nível europeu, mas é evidente que ninguém está interessado em vir explorar as linhas das ilhas dos Açores. Além disso, as novas transportadoras aéreas europeias atuam num dos mais competitivos mercados, onde há uma concorrência intensa e já não podem auxílio do Estado quando este quer. Quer isso dizer que, não se podem dar ao luxo de operar rotas estruturalmente deficitárias, nem de contratar políticos para funções técnicas. Não podemos esquecer que a regulação de 1940/50 estava feita para companhias estatais, já a regulação de 1992/93 não o diz explicitamente mas está feita para companhias privadas porque são as únicas que têm flexibilidade em se adaptarem às exigências do mercado muito competitivo e que exige alterações constantes. Com esta nova realidade, todas as companhias de bandeira europeias passaram por processos de adaptação muito penosos.
Penosos como?
Exigiu reestruturação, financiamento e privatização. E passaram por um processo de consolidação. Por exemplo, nos EUA, as quatro maiores companhias de hoje são fruto de um processo de consolidação e no mercado norte-americano a consolidação é violenta. As companhias desaparecem e a marca também. Atualmente, há três grupos: o International Airline Group (IAG), que resultou de uma primeira fusão da Iberia com a British Airways e acrescentou a Aer Lingus da Irlanda e a Vueling, uma low-cost espanhola. Recentemente adquiriram a Air Europa, uma companhia aérea privada espanhola com rotas para a América do Sul; depois, há o grupo Air France/KLM e a Lufthansa Group, que conta a Lufthansa, a SWISS, a Austrian e depois a low-cost Eurowings. Entretanto, o que aconteceu com a liberalização? Surgiram as novas companhias low-cost, criadas a partir do nada e inspiradas no modelo americano e tanto a Ryanair como a EasyJet foram no ano que fecha a 31 de março de 2019, e anualmente deve cortar 290 rotas não rentáveis e criar 300. A rota é aquilo que a companhia aérea oferece ao mercado, quando o Estado se mete nisso é como dizer, por exemplo, à Autoeuropa que tem de fazer descapotáveis.
Como é que a TAP se porta nisto?
Por acaso, até nem se portava mal nos anos 90. A empresa era nacionalizada, dava prejuízos, mas em 90/91, o presidente da altura, Monteiro Lemos, sentiu que vinha aí a liberalização em 92/93 e pensou que a TAP ‘assim não ia a sítio nenhum’. Tinha a confiança política de Ferreira de Amaral e avançou com as reformas antecipadas e outras medidas, começando assim a diminuir o pessoal. Mais tarde é substituído por Santos Martins, mas, como o ministro era o mesmo, levou a cabo um plano de reestruturação violentíssimo -–houve invasões de pista, polícia de choque no aeroporto – mas impuseram o plano porque sabiam que seria inevitável. Quando o Estado português pediu autorização para auxílio de Estado, em janeiro, já tinha o trabalho de casa feito. Quando a Comissão tomou a decisão, impôs poucas medidas de mitigação. Mas, nessa altura, houve cabeça para reconhecer uma coisa: a TAP não tinha massa crítica, mesmo reestruturada e financiada, para operar no mercado único de transporte aéreo. Portanto, a TAP teria de ser privatizada. O Governo comprometeu-se em começar a privatização em 1997, mas este acordo da Comissão traduziu-se, nomeadamente, por uma injeção de capital de cerca de 1.500 milhões de euros (de hoje) e de garantias bancárias no mesmo montante.
E em relação à saída de trabalhadores?
Saíram mais de três mil trabalhadores, a redução do pessoal foi superior a 30%. Nesse campo, a redução foi violentíssima. Mas, como essa reestruturação não tocou no que estava errado na TAP – que são os vícios acumulados ao longo da nacionalização –, em 2000 a TAP estava de novo à beira da insolvência. Fez a privatização, escolheu a Swissair, que, na altura, tinha um grande plano de expansão, e foi a Swissair que contratou Fernando Pinto para vir gerir a empresa, na perspetiva de que iria deter 37% do capital. Fernando Pinto é contratado em 2000, mas em janeiro de 2001, a Swissair abandonou o negócio porque ia abrir falência mas Jorge Coelho segurou Fernando Pinto. Mas apesar da reestruturação violenta, e de 30% de despedimentos, isso não foi suficiente, porque não tinha tocado no essencial. A reestruturação em curso insiste no mesmo erro. No entanto, apostou no modelo de hub que permite através de um aeroporto central fazer com que os passageiros esperem pouco tempo entre voos. Fernando Pinto conhecia o mercado brasileiro e o mercado brasileiro para a Europa, e o que é que fez? Pôs a TAP a voar de e para o Brasil e, a partir de Lisboa, tinha um hub a voar para a Europa, captando o tráfego intercontinental, sem o qual a TAP não era viável. Fernando Pinto evitou assim a insolvência, conseguiu negociar com Bruxelas e gerir a empresa. Aliás, nos primeiros relatórios e contas havia uma determinação que era remunerar o acionista, porque se o Estado investe então deve receber dividendos, mas, entretanto, essa determinação desapareceu. Em 2006 teve um projeto extremadamente ambicioso de modernizar a TAP e Paulo Campos, acionista do Estado, aprovou, só que no ano seguinte o projeto desapareceu porque Paulo Campos e José Sócrates mudaram de opinião porque iria mexer com o poder dos sindicatos. Várias pessoas em quem tenho confiança absoluta disseram-me que houve instruções no sentido de ‘comprem a paz social a qualquer preço’. Sabe o que isso custa? Fernando Pinto foi iludindo a necessidade de a TAP se reestruturar, financiar e privatizar. Há aqui uma coisa curiosa, qual é o primeiro dever do acionista? É financiar a empresa e o Estado português nem exerce essa função. O outro dever é reestruturar a empresa se ela está em dificuldade. O Estado português também não exerce essa função.
Só se for por obrigação…
Exatamente. Mesmo Monteiro Lemos e Ferreira do Amaral aparentemente tomaram a iniciativa, mas por antecipação. Já com Fernando Pinto, José Sócrates nem queria ouvir falar na privatização, que acabou por ser imposta pela troika. Só que ninguém tinha a noção que a empresa não interessava a ninguém. Aliás, quando se fez a tentativa de privatizar, em 2012, houve as mais variadas declarações otimistas para criar a ilusão que a empresa era boa. Quando vem a privatização, em 2012, só apareceu um candidato de segunda linha: o Efromovich da Avianca, que não tinha capital e o Governo só chegou a essa conclusão em pleno Conselho de Ministros. Isto foi patético. E aí o Governo de Passos Coelho insistiu: ‘o Estado para recapitalizar a TAP tem de ter um plano que seja aprovado por Bruxelas e, como não temos dinheiro, vamos privatizar e o privado financia e reestrutura’. Nessa altura, António Pedro Vasconcelos e outros defendiam que a TAP não devia ser privatizada, mas esconderam sempre ao povo português que não privatizar iria ter um custo enorme para os contribuintes com um plano de reestruturação imposto por Bruxelas, como aquele que estamos a viver agora. Essa atitude foi desonesta.
Esconderam por não estarem a par ou foi propositado?
Isso acontece com muita gente, até com destaque para a atriz Catarina Martins, que tão bem representa a personagem de líder do BE e só diz disparates. As primeiras orientações da Comissão sobre Auxilio de Estado são de 1994, mas as últimas são de 2014. Até admito que seja chato ler, mas a comissária, em julho de 2012, publicou um folheto em inglês a explicar o que é pressuposto fazer num plano de reestruturação. Se a Comissão exigisse aquele plano, a TAP falia.
E a TAP foi mantendo um impasse…
A TAP foi agravando a sua situação e o Governo acabou por lançar a privatização. É aí que aparece Neeleman, detentor da companhia Azul. Fernando Pinto conhece-o e quando percebe que é preciso arranjar um parceiro fala com Neeleman, que desenha um negócio brilhante: consegue convencer os chineses do grupo HNA que estavam em grande expansão internacional a meter dinheiro na Azul para que esta privatizasse a TAP com duas condições: financiavam a TAP e criavam a TAP como hub de ligação da China com as Américas. Isto era um projeto que, em termos financeiros, era bom. Tudo corria às mil maravilhas até que o grupo HNA enfrentou problemas financeiros gravíssimos e os chineses desapareceram. Mas ainda antes de se afastarem, Neeleman chegou a dizer que os chineses queriam sete voos semanais para a China e usou uma expressão deliciosa: ‘É bom ter um tio rico’. Sabe quem agora é o novo tio rico da TAP? É o Estado português super endividado.
Mas a privatização acabou por ser revertida…
António Costa deve ter recebido informação sobre o negócio, quando decidiu reverter a privatização. No entanto, já ia em contracorrente face às companhias privadas e à competitividade do mercado único. E o Governo da ‘geringonça’ negoceia uma traquitana: David Neeleman e Humberto Pedrosa, que eram maioritários, passaram a deter 45%. Neeleman, a primeira coisa que disse é que ia romper, mas Humberto Pedrosa acalmou a situação e Diogo Lacerda Machado negociou um acordo que depois o Tribunal de Contas veio revelar que era ruinoso para o Estado e que tinha uma cláusula de uma ingenuidade que me espanta e quase de ilegalidade: a gestão era privada, o Estado aprovava o plano de negócio dos privados e controlava a administração. Em toda a sociedade anónima, a gestão responde perante a administração e a administração responde perante os acionistas. O Estado, a partir desse momento, assumiu a responsabilidade política pelo que se passa na TAP. Como correu mal, agora Pedro Nuno Santos culpa o Neeleman. Isto tudo é uma patetice, a gestão de uma sociedade anónima depende da administração e do acionista. Quando se fala de acionista Estado tem uma personificação e é este que leva a TAP ao desastre.
Uma situação que se foi arrastando…
O Neeleman não é um capitalista. É um empreendedor que arrasta financiamento. Quando fundou a Azul no Brasil fez um contrato em que ninguém o podia despedir. E em Portugal fez um contrato assim. Às vezes, parece que o Estado está a negociar com crianças. Em 2017, a TAP perde o financiador, Pedro Nuno Santos reconhece que a previsão de lucro da TAP em 2018 é inferior ao que estava previsto no plano estratégico em 2017 e que já tinha sido revisto. É extraordinário como é que um plano de 2017 falha logo no ano seguinte. Mas antes de Fernando Pinto sair, no final de 2016, ainda desenvolveu o plano RISE, que previa economias de 150 a 200 milhões de euros até 2020. Se esse plano tivesse sido implementado, não teria havido prejuízos como houve e, mais, denunciou o facto de a Groundforce estar a faturar à TAP 15% acima do mercado. Ora, numa faturação de 100 milhões de euros, isso representa 15 milhões, gostava de ter um cliente assim. E, nessa altura, quando o plano saiu estava a ser negociado o contrato da TAP com a Grounforce, mas os sindicatos de terra – que têm uma força muito grande – pressionaram o Governo para pressionar a TAP para não levantar ondas e é isso que faz.
E cria-se um efeito bola de neve?
Fernando Pinto não era um homem de cortar custos. Está provado historicamente que a rentabilidade de uma companhia aérea joga-se sobretudo no controlo e no corte de custos, mas na TAP nunca houve essa uma cultura. Quando Fernando Pinto a quis implementar em 2006, Paulo Campos ‘deu um chuto’ e quando quis voltar a implementar em 2016, Neeleman desautorizou-o e nomeou Antonoaldo Neves para o seu cargo. Foi um erro de casting tremendo. Se em 2017 já havia drama por falta de financiador, em 2018 já se via o que ia acontecer, porque os resultados iriam ser muito maus. Na altura de boa gestão, em que o acionista Estado ainda era Pedro Marques, devia-se ter assumido que era necessário reestruturar a TAP, mas isso implicaria, entre outras coisas, destruir o poder dos sindicatos e toda a teia de benefícios, etc. que se acumularam desde a nacionalização.
E o resultado está à vista…
O Governo português tem menos consideração pelos contribuintes, do que os capitalistas têm pelos acionistas em bolsa. Os únicos números que a TAP publicou foi quando teve de fazer um empréstimo acionista. Pedro Marques não faz nada, Pedro Nunes Santos entra em fevereiro de 2019 e ignora os problemas reais da empresa, a reestruturação, e vem para o público português, expressão que ele usa, com a questão dos prémios de gestão. Não informando que os prémios de gestão por objetivos são absolutamente correntes em grandes empresas e são objetivos pessoais.
Mas sem sentido quando uma empresa apresenta prejuízos…
É por isso que foram cortados em 50%. Mas esses prémios estavam no contrato. A administração não sabia? De uma maneira ou de outra, esse tema tinha de chegar à administração. Pedro Nuno Santos só veio cá para fora com essa história porque era populista. E dava-lhe votos na sua afirmação no PS. Foi a lógica de um candidato a líder do PS, mas aí fez uma coisa tremenda pelas consequências que ainda tem hoje e próximo futuro: com as suas declarações, desestabilizou a estrutura acionista, desautorizou o presidente do conselho de administração, porque teoricamente compete ao chairman gerir as tensões entre os acionistas e fragilizou a gestão. Isto tudo em junho de 2019, dois anos depois, o que é que acontece? O Estado está a ser gerido pelo ministro Pedro Nuno Santos, não há administração e todos percebem que a comissão executiva anda às ordens do ministro. Conclusão, Pedro Nuno Santos cria uma destabilização que se arrasta até hoje e que se vai continuar a arrastar porque já disse que só depois da decisão da Comissão é que nomeia a administração e gestão.
E os mandatos já terminaram…
Já. Apesar de não conhecer pessoalmente Ramiro Sequeira, tenho respeito pelo seu trabalho porque passou pelo crivo da Vueling e se passou é porque é bom, o problema é que gere uma TAP que é dominada pelo ministro. Pedro Nuno Santos desestabiliza, quando o que devia fazer era um plano de reestruturação que já vinha a ser imposto pela ausência de financiador e pelos maus resultados que se agravaram em 2019. No final desse ano, a TAP apresentou um prejuízo grave e não estava reestruturada, nem capitalizada e ainda estava só com 50% do Estado. Foi por isso que a Comissão Europeia disse que a TAP não iria ser financiada ao abrigo da linha covid porque os seus problemas são antes da covid. E, como tal, entendeu que deve ser alvo de um programa de emergência e de reestruturação. Bruxelas não dorme e é quem vai defendendo o contribuinte português. Estávamos nisso quando se agoniza a tensão com Neeleman, que entretanto põe a sua parte à venda. Quando Pedro Nuno Santos vê que a TAP vai precisar de dinheiro e como só raciocina em termos de lógica política – tem aquela declaração que ‘a partir de agora a música é outra’ – vem António Costa com a célebre frase no Parlamento ‘Haja o que houver, a TAP continuará a voar com as cores de Portugal e continuará a cumprir missões absolutamente essenciais como assegurar a continuidade territorial, a relação com a nossa diáspora e os serviços de interesse público que presta no Continente e na ligação com as duas Regiões Autónomas’. Para já, não presta serviços de interesse público das regiões autónomas porque essas obrigações já tinham sido suprimidas.
Mostra ignorância por parte de António Costa?
O primeiro-ministro, quando faz essa declaração, em maio de 2020, mostra uma ignorância total do mercado único. O Estado não pode dar essas ordens à TAP porque a empresa tem de ser rentável. E é aí que Pedro Nuno Santos consegue o seu sonho: afastar David Neeleman, mas por azar é o único que sabia de transporte aéreo, apesar de também ter cometido erros. Conclusão: os políticos não intervieram como deviam ter feito, mas aí sem dúvida que a responsabilidade é dos privados. Agora Pedro Nuno Santos dizer que já sabia que a TAP era mal gerida não faz sentido. Se sabia isso então por que não tomou essa decisão em junho de 2019? Não tenho nada de pessoal contra Pedro Nuno Santos, agora tenho que responsabilizar o ministro que personifica o acionista Estado e que destabilizou a TAP nos últimos dois anos e a levou ao desastre em curso. Em 2020, vem a pandemia e Pedro Nuno Santos vem dizer que é preciso dinheiro e que os privados não vão acompanhar e, por isso, o Estado vai ter de injetar e fica com a parte de Neeleman. Aí só há uma coisa em que tem razão: a TAP devia ser reestruturada ao abrigo dos planos de emergência e reestruturada sob as orientações da Comissão de 2014, mas depois desse trabalho concluído devia ser apoiada pela linha covid. O que está a acontecer em 2021.
É um argumento que não convence Bruxelas…
Não sei como vão fazer, mas sei que há um erro que vamos pagar muito caro. O plano de reestruturação parte do princípio que a empresa está mal por causa da pandemia e ignora o mal que vem de trás e que passa pela excessiva influência sindical, pela necessidade de reestruturar a Groundforce e pela necessidade de consolidar a TAP, etc. Isto significa que vamos pagar para vender a TAP por muito pouco dinheiro. O plano de Pedro Nuno Santos não responde a isto e a prova que não responde é que em todas as companhias aéreas, onde houve reestruturações a sério assistimos a greves violentíssimas com os sindicatos. Na TAP não houve. E também não nos podemos esquecer que deixaram de existir companhias de bandeira, apesar de Pedro Nuno Santos ter dito num comunicado ‘que não será por acaso que nenhum país europeu deixou a sua companhia de bandeira ir à falência. Num país periférico no quadro europeu, mas central na ligação aos continentes americano e africano, uma companhia aérea de bandeira é fundamental’. A título de exemplo, British Arways, Iberia e AerLingus são companhias operacionais e marcas que o mercado conhece – as decisões estratégicas são do IAG, cotado em bolsa. Outro erro é dizer que a TAP garante o hub, quando a verdade é o contrário.
Como assim?
A sobrevivência da TAP depende da captação do tráfego intercontinental entre Europa e Américas mais África pelo hub de Lisboa, mas enfrenta agora um problema: não há condições sanitárias e de confiança para que haja europeus em massa para ir para os EUA e para o Brasil, nem para estes virem para Europa. A TAP está neste momento a viver sem o tráfego intercontinental, do qual depende. E o hub, para ter sucesso na Europa, precisa de ter linhas europeias da TAP que o alimentem. A empresa tem de se focar no hub de Lisboa e na rentabilidade das rotas europeias – e se não são rentáveis não as opera – e despede mais pessoal. Isto não é centralismo politico, é exigência do mercado e condição da sobrevivência da TAP. A Liberalização de 1993 exclui, como vimos, rotas de alegada coesão territorial. Veja o exemplo da SAS, cotada em bolsa, com 25% do capital dos Estados da Suécia e da Dinamarca. Logo no primeiro trimestre de 2020 já tinha decidido despedir cinco mil pessoas, no segundo semestre já tinha despedido mais de quatro mil. A TAP com financiamento do Estado e com gestão política não fez nada. As primeiras medidas de corte de custos foram suaves e só foram aplicadas em março de 2021. A TAP andou a queimar tesouraria em 2020 e em 2021, simplesmente porque tem um tio rico e não respeita os interesses dos contribuintes. Se a TAP fosse cotada em bolsa já não podia fazer isso. E entretanto aparece a ideia da TAP Express.
É boa ou má ideia?
Querem fazer da TAP Express uma companhia low-cost, porque os custos da Portugália são mais baixos. Ficaria acima das ultra low-cost Ryanair e Swiss, mas abaixo da Vueling e da easyJet. O CEO da easyJet já veio admitir, o que até há pouco tempo era segredo, é que não iria concorrer com a Ryanair e com a Swiss, mas com as full service que estão com problemas financeiros e de adaptação. Esta ideia é um erro, Pedro Nuno Santos deixou de falar nisso, mas fazia parte do plano de reestruturação.
O que espera da decisão da Comissão Europeia?
Sobre a Comissão Europeia não especulo, mas normalmente quando se aplica um plano de reestruturação e se recebe uma ajuda do Estado há um esforço que é exigido à companhia e esta tem de pagar uma boa parte com receitas novas para mitigar as consequências da distorção da concorrência. No caso da TAP Express, não vejo como a Comissão admita que o Estado financie a expansão da TAP para aumentar a concorrência. E depois admiram-se que O’Leary faça o que faz. A Ryanair apresentou queixa no Tribunal Europeu de Justiça contra uma série de ajudas do Estado, perdeu já algumas, mas, no caso de Portugal, a decisão do Tribunal de Justiça é muito importante porque diz que a Comissão deu 1.200 milhões de euros, mas a decisão não está suficientemente justificada e dá dois meses para o fazer. Se o Tribunal achar que a justificação não chega quer dizer que a decisão é nula e representa a falência da TAP. Mas isto é para levar a sério, andam a dizer que ‘a curto prazo não acontece nada’.
A recente zaragata entre o ministro e a Ryanair – Susana Peralta denuncia o essencial no Público: ‘o tom bélico de um comunicado do Ministério que compromete a nossa reputação coletiva com a mesma determinação com que compromete os nossos parcos euros na TAP é com todos e todas nós’. O ministro, o acionista Estado expõe um nacionalismo bacoco e retrógrado que ignora a concorrência no mercado europeu do transporte aéreo, no qual a TAP opera.
E sem esquecer a importância da TAP para o turismo…
Em 2019, as companhias estrangeiras em Faro representaram 96,9% dos passageiros (INE). A TAP teve uma quota de mercado de 3,8%. Se a TAP desaparecer o que é o Algarve perde? No Porto, onde o crescimento do aeroporto é um caso de sucesso internacional, entre 2013 e 2019, o tráfego cresceu 5,2 milhões de passageiros, dos quais 4,7 eram de companhias estrangeiras, isto mostra que a TAP contribui com 450 mil, ou seja, não contribuiu para esse crescimento (INE). Em Lisboa, a TAP representa 25% dos turistas não residentes, mas tem importância qualitativa no caso do Brasil e dos EUA, mas está longe de ser aquela que é defendida pelo Governo. É estimativa pessoal, conjugando números da TAP e do INE. A contribuição da TAP para a Economia do país deve ser avaliada por escola de Economia de primeira linha. É inaceitável que os rudimentares números agitados pelo ministro justifiquem 3.700 milhões de euros em companhia de futuro tão incerto como o da TAP. Inaceitável.
Por fim, como vê o futuro da TAP?
Ignoro a influência que a próxima decisão da Comissão Europeia terá sobre o futuro. Mas vejo o futuro da TAP com muita apreensão pela situação interna da empresa e a concorrência no mercado. No que depende de Portugal, o Governo tem de reavaliar o handicap de 92% de capital do Estado em empresa que opera sob regulação europeia concebida para a flexibilidade de empresas privadas. A opção estratégica de privatizar condiciona tudo. Por outro lado, urge restabelecer a normalidade na administração e gestão executiva com gente competente que conheça o mercado. E formalizar um contrato de administração e outro de gestão, sem palavreado e com objetivos. Por fim, o mais importante, os factos confirmam que Pedro Nuno Santos não é qualificado para exercer a função de acionista Estado em companhia aérea como a TAP (Copiei o novo título). Deve ser substituído. Mesmo com decisões acertadas, a TAP poderá não ser competitiva nas rotas europeias que alimentam o hub de Lisboa e nas intercontinentais para Brasil e EUA. Nada pode distrair a TAP desta prioridade (coesão territorial e similares). Os acionistas, gestores e trabalhadores vão ter de ter de implementar a reestruturação da TAP que o atual plano ignora. Os erros estruturais que a alegada reestruturação em curso ignora são como um cancro silencioso.