Quando começa a ter consciência política?
Muito cedo. A consciência política começou logo no Jardim Infantil Pestalozzi. Quando estava no ciclo preparatório e nos primeiros anos da escola secundária Gil Vicente, onde eu depois andei, meti-me logo nas eleições para as associações de estudantes e fazia coisas hoje assim um pouco exóticas, como por exemplo enfiava-me à tarde na biblioteca da escola e descobri o Anti-Dühring do Engels e fui ler aquilo com 12 ou 13 anos. A minha mãe, que tinha uma grande paciência e que achava graça aos meus interesses, percebeu que eu estava a derivar para o Partido Comunista. Então, levava-nos a mim e ao meu irmão à Feira do Livro e nós tínhamos um pequeno orçamento para comprar os livros que quiséssemos. O meu irmão comprava banda-desenhada – e fazia ele muito bem – e eu ia para a bancada do Avante comprar livros do PC. Um deles que me lembro de ter comprado e que li de ponta a ponta foi O Partido com Paredes de Vidro do Álvaro Cunhal e aí sublinhei tudo.
Como é que os seus pais encaravam essa sua precocidade política?
Em primeiro lugar pôs-se logo o problema do nosso tempo que era a Religião e Moral, porque aquilo era facultativo. E a minha mãe veio ter comigo e disse-me assim: «O pai gostava que tu frequentasses as aulas de religião e moral» e eu disse «então, se o pai gostava que eu frequentasse, eu vou frequentar as aulas de religião e moral». Convém esclarecer que o meu pai antes tinha sido padre e com a autorização papal tinha sido reduzido ao Estado laical. Aliás, o Soares estava sempre a dizer: «Nós dois, filhos de padre…». Então fui para a Religião e Moral, onde basicamente tínhamos que cantar salmos e eu fazia playback. E a Maria Rueff, que era minha colega de carteira, via que eu fazia playback e denunciava-me ao padre: «Padre Alcobia, o Sérgio está a fazer playback». Depois eles também tinham uma grande paciência. Eu só não entrei para a JCP porque os meus pais me sugeriram que esperasse mais um aninho ou dois para ver se queria mesmo. Eu achei que era um compromisso razoável.
Depois de ter lido o Cunhal queria entrar para a JCP?
Queria. Estávamos nos anos ainda do Bloco Central. Seria profundamente anormal que um jovem idealista com aquela idade apoiasse o Governo do Bloco Central. Os meus pais disseram-me assim: «Não queres esperar mais um ano ou dois? Depois se quiseres entrar, entras». Eu tinha uma proximidade com o Partido Comunista nessa altura, com outros amigos, porque não era propriamente uma ave rara. Imensa gente interessava-se pela política naquele tempo. Depois a minha interação com o PC foi sempre muito pouco interessante. Uma pessoa com a formação do Pestalozzi, com aquele culto da liberdade, não conseguia entender-se com o PC.
Nessa altura tinha uma vida normal? Isto é, não era um nerd só agarrado à política?
Não, tinha uma vida normal. Tinha as minhas namoradas, tinha as outras coisas que eu gostava na vida.
Apanhava as suas bebedeiras?
Sim.
Quando entrou para a associação de estudantes?
Foi aos 15 anos. E aí entrei para o Movimento de Estudantes Contra a Lei de Acesso (MECLA) e era um dos dirigentes.
Foi um dos que mostrou o rabo à ministra?
Não. Na altura já era um bocado libertário e fui para essa manifestação com um cartaz que dizia ‘Viva Zapata’.
Vítor Constâncio é o responsável por ter entrado no PS?
Não, aquilo que na altura mais me impressionou foi um documento de Vítor Constâncio chamado O socialismo e o futuro. Eu não o conhecia de lado nenhum. Ele explicava que o socialismo democrático não tinha uma crise de valores, tinha uma crise de instrumentos.
Mas tinha vida para além da política?
Gostava muito da noite, passava a vida no Frágil.
Quando chega à liderança da JS, o que pensava que ia fazer?
A minha teoria era que nós não podíamos ser uma organização ditada pela nossa circunstância etária, ou seja, somos jovens e estamos aqui com autonomia política. Então comecei a tentar que a JS se constituísse como uma espécie de consciência crítica de esquerda. Ou seja, o PS tem que lidar com as realidades impostas pela governação e com compromissos que nós muitas vezes consideramos que não são aceitáveis e, portanto, nós funcionaríamos como uma consciência crítica. Convém esclarecer que naquela altura praticamente não existia a JS. Só existiam a JCP e a JSD, que eram as duas grandes organizações de juventude. A JS era um estado de espírito.
Acha que dinamizou a JS?
Eu cheguei à liderança da JS com 21 anos e saí com 26. Pelo meio a JS cresceu geometricamente. Não duplicou, não triplicou, cresceu ainda mais. Por causa da despenalização da interrupção da gravidez e das uniões de facto entre homossexuais. Foi a primeira vez que um político se referia à existência de um fenómeno chamado casais homossexuais.
Uniões de facto. Não defendia casamento?
Na altura, nem me ocorria essa possibilidade. Não existia como possibilidade, nem como ideia. Não tinha imaginação para tanto. Isto era tão diferente. Toda a gente sabia que existiam homossexuais, mas era uma coisa da qual não se falava e na vida pública era um tema não existente. Na questão do aborto o Partido Socialista estava em peso com a JS e nós também tínhamos uma grande influência na Assembleia da República, uma vez que chegámos a ter 15 deputados. Era uma coisa histórica para a JS, porque a JSD tinha muitos deputados. Antes a JS só tinha o seu secretário-geral, António José Seguro, como deputado. E, na altura, o secretário-geral do Partido Socialista, António Guterres, distancia-se e diz que é contra a despenalização da interrupção da gravidez e anuncia até, na véspera do referendo, que vai votar contra. Antes disso, já tínhamos perdido uma votação na Assembleia por um voto. Foi uma coisa dramática. O Raul Rego foi, já muito idoso, na sua cadeira de rodas ao plenário para votar e perdemos por um voto. No ano seguinte, mudámos a lei, tirámos as doze semanas e passámos para dez semanas de período de interrupção da gravidez, fizemos a votação e passou. No próprio dia em que a votação é adotada pela Assembleia da República, a lei é aprovada e o primeiro-ministro António Guterres e o líder da oposição Marcelo Rebelo de Sousa acordam na realização de um referendo nacional de uma lei aprovada na AR.
Acha que o retrato que se tem de si corresponde minimamente à realidade?
As pessoas mais novas têm sido muito expostas a uma acusação que me tem sido feita, totalmente absurda, de que eu hoje seria um representante da ala direita do PS. As pessoas mais velhas sabem perfeitamente que não é esse o meu trajeto. Não sou a ala direita do PS, justamente porque eu travei esses grandes combates numa época em que a liderança do PS era profundamente conservadora. Havia uma avaliação errada do eleitorado. Achava-se que o eleitorado era muito mais conservador do que efetivamente era. Portanto, achava-se que aprovar estas propostas iria criar uma fratura entre o PS e em largos setores da sociedade que não estavam ainda preparados para este tipo de transformações. Foi uma opinião que se revelou profundamente errada e foi a posição ultraconservadora da direção do partido nessa altura – lembro-me que o PS não tomou uma posição sobre o aborto. Havia uns tempos de antena ridículos que era «Partido Socialista: hoje falam os defensores a favor da despenalização. Partido Socialista: hoje falam os deputados contra a despenalização». Era assim que isto funcionava.
Isto foi em 1997?
Foi. Depois a Helena Roseta criou o Movimento Sim pela Tolerância que era uma coisa que saí do PS e que entrava em vários setores da sociedade que ali tinham oportunidade de criar um movimento social a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez. É nessas reuniões que se produz a aproximação entre os partidos de extrema-esquerda que vão dar origem ao BE. O BE nasce do profundo ressentimento político que certos setores na esquerda, historicamente eleitores do Partido Socialista, que não querem continuar a dar o seu voto depois do trauma do aborto, mas também das uniões de facto. Quem criou o Bloco de Esquerda foi o Guterres. O Bloco de Esquerda nasce por causa do conservadorismo da direção do Guterres.
O BE aparece como uma coisa nova e arejada, que já não vem carregada de toda aquela tanga cavernícola do esquerdismo maoista, já não são apenas herdeiros dos anos 70.
Mas não tem um trotskista à frente?
Sim, mas aparece como uma coisa inovadora, com uma nova imagem, com tipos da Política XXI e vai buscar muitos votos ao PS.
Apesar dessa sua paixão política por um país melhor, digamos assim, era uma pessoa que se divertia, saia à noite e não se enquadrava no «Ah vou aqui porque é o sítio de esquerda ou de direita».
Claro! Eu passava a vida no Frágil, depois passava a vida na Kapital. Hoje, quando ouço gente do Bloco de Esquerda a dizer coisas do género «não tenho amigos de direita», isto para mim é uma coisa tão incompreensível e aberrante que eu fico com uma enorme suspeição em relação a essas pessoas. Sempre tive amigos de direita, bem como naturalmente amigos de esquerda, a ideia de as divisões políticas contaminarem a amizade, assenta numa ideia maniqueísta de bem e de mal. Pois, eu tenho os meus amigos e recruto-os todos do lado do bem, eu não tenho amigos que venham do lado do mal. Ora, estes não são os meus lados mentais, nunca foram.
Depende do que é o bem e o mal.
Claro, para eles o bem evidentemente que são eles, não é? A esquerda é o bem, a direita é o mal. Ora, não há compromisso possível entre o bem e o mal. O mal é para ser combatido pelos galhardos guerreiros do bem. As forças da luz contra as forças da treva.
É corrido por António Guterres para o Parlamento Europeu?
Não sou propriamente corrido. Eu queria ir. Já estava farto, era muito novo e já estava demasiado penalizado pelas coisas que me tinham acontecido.
Quais?
Por exemplo, a dada altura fez-se uma reunião em S. Bento, que parecia uma cimeira entre o Governo e a JS, para tratar dos temas controversos. No fim houve uma conferência de imprensa nos jardins de S. Bento e pela JS falo eu e pelo Governo fala António Costa, que era o secretário de Estados dos Assuntos Parlamentares. Até me lembro de uma notícia do Expresso que dizia: «Sérgio Sousa Pinto já é tratado como um dignitário estrangeiro». Então uma das coisas que se acordam é um grupo de trabalho para mexer e rever a legislação aplicável às uniões de facto sem discriminação dos casais em razão da sua orientação sexual. Esse grupo de trabalho era composto por mim, pelo Fernando Rocha Andrade que era dirigente da JS e assessor do António Costa, pelo José Magalhães do lado da bancada do PS e pelo João Amaral do lado da bancada do PC. O PC tinha afastado a Odete Santos que era muito conservadora e não gostava nada das propostas sobre uniões de facto de homossexuais. Quando tínhamos finalmente uma lei que tinha o apoio do PC – e, portanto, significava que tinha maioria para ser aprovada –, estava eu sentado com o António Costa no gabinete dele – nessa manhã aquilo ia ser debatido na primeira comissão – e ele recebe uma chamada do Guterres a dizer que nós somos todos um bando de irresponsáveis e que assim mais valia que ficássemos nós com a responsabilidade de governar o país porque ele ia-se embora. Fomos obrigados a retirar a proposta e foi inventada uma desculpa esfarrapada de que a proposta era retirada porque existia a expectativa de que ela concitasse um apoio alargado que abrangesse a direita e uma vez que a direita era contra, nós retirávamos a proposta.
Portanto, estávamos num verdadeiro pântano.
Estávamos nesta situação. Depois de ter sido sabotada a despenalização do aborto, foram sabotadas as uniões de facto dos casais homossexuais. Então eu disse: «Aqui não estou a fazer nada, quero ir para o Parlamento Europeu». O Guterres seguramente entendeu isso como uma bênção.
E aí? Além da política, o que fez no Parlamento Europeu?
Casei-me com uma sueca. Tornei-me amigo de Mário Soares, nós já nos conhecíamos mas é aí que a nossa relação se transforma verdadeiramente numa relação de amizade.
Além de ter casado frequentou duas escolas de arte?
A dada altura, no segundo mandato, quando já não estava lá o Mário Soares, a minha presença no Parlamento Europeu deixa de ser um desafio que me estimulasse muito. Comecei a pensar se não devia ponderar – sempre com o Soares a dizer-me que nem pensasse nisso – se não devia afastar-me da política. Primeiro inscrevi-me numa coisa chamada Cours de Promotion Sociale, que era um curso de artes gráficas feito no Instituto Saint-Luc, que era a escola onde o Hergé tinha dado aulas de banda desenhada. Então à noite tinha aquele curso. Era eu, uns tipos desempregados, um polícia, enfim… Passei uns anos nesse curso à noite, era uma coisa pós-laboral, digamos assim. Um dia, por graça, candidatei-me ao instituto La Cambre, a escola de belas artes mais credenciada e nem sabia que era um sítio onde era difícil entrar. Mas o que é certo é que entrei.
Entrou com que argumentos?
Fizemos duas conversas de cultura geral e entrei com 98%.
O que era a cultura geral?
Era falar sobre arte. Sobretudo eram umas grandes discussões sobre a validade da arte contemporânea. Depois passei uma semana a desenhar lá na escola com os outros candidatos todos. Ao fim dessa semana, olharam para os desenhos, fizeram as entrevistas de cultura geral e entrei. Aquilo era tão difícil de entrar que não havia um único belga no curso de desenho. Eram checos, japoneses, muitos franceses que estavam em fuga do ensino artístico em França.
Estavam em fuga porquê?
Por causa da desestruturação total do ensino artístico. A arte conceptual teve esse efeito no ensino artístico. Então não se ensinava nada. Lembro-me de uma vez ter perguntado a um professor quais eram os tons clássicos, as tintas, para se fazer o tom da pele. Ele dizia-me «isso não interessa nada». Um dia depois passou-me um papelinho, como se fosse um segredo alquímico a dizer terra de Siena, magenta não sei quê…
Isso já foi há alguns anos, mas continua igual?
Acho que sim. O mundo da arte vive um período de crise. Mas não nos podemos alongar muito sobre este tema se não somos imediatamente acusados de reacionários e de não perceber as grandes belezas que se expõem nos museus de arte contemporânea. Tinha um colega cuja atividade consistia misteriosamente em pintar de preto as paredes do ateliê e prosseguiu ao longo de todo o ano letivo neste seu propósito. Esse era o projeto dele, porque aquilo tinha por trás toda uma reflexão, enfim, que estava condensada e tratando-se de arte conceptual o que importa é a concretização da ideia. Havia outro que tinha feito uma casa de banho, porque havia um dia que em vez de aulas íamos discutir o trabalho de curso de todos com o professor.
Depois volta para Portugal. Qual acha que foi o contributo que deixou no Parlamento Europeu?
Nessa altura, José Sócrates convida-me para ser secretário de Estado dos Assuntos Europeus e eu disse-lhe: «Fico muito lisonjeado pelo convite, mas eu agora estou numa fase feliz da minha vida. Estou a fazer coisas interessantes. Estou no Parlamento Europeu e estou metido nuns cursos de arte». Depois o meu pai ficou doente e eu decidi regressar a Portugal. Também queria uma coisa que para mim era muito importante na altura, queria que os meus filhos fossem portugueses.
Nessa altura, quantos filhos tinha?
Dois.
Entretanto tem o convite de Sócrates e recusa dizendo que estava muito feliz lá.
Exato, porque eu achava que não ia retomar a atividade política. Estava todo contente.
A ideia que as pessoas têm de um eurodeputado é de uma figura que não faz um caracol, que ganha muitíssimo bem e trabalha pouquíssimas horas.
Não, eu tinha um trabalho que adorava. Era presidente da delegação para as relações entre o Parlamento e os países da Mercosul, de modo que tinha que viajar muito para os países da América Latina. Falei na constituição do Parlamento dos países da Mercosul, que achei um piadão porque, ao contrário do Parlamento Europeu onde as pessoas estão organizadas pelas famílias políticas, lá organizavam-se pelos países com as bandeirinhas, como se fossem diplomatas e não políticos. Fiz coisas muito interessantes e gratificantes.
Que histórias é que se lembra com personagens da Mercosul? Lidou com quem?
Lidei com presidentes. Lembro-me que uma vez um deputado do PPE foi expulso da Venezuela porque disse para lá umas coisas sobre o Hugo Chávez que eles não gostaram. Então pegaram no fulano, fizeram-lhe a mala e puseram-no no aeroporto e nós tínhamos previsto uma visita justamente à Venezuela, que estava no seu processo de adesão à Mercosul, e eu cancelei a visita e disse: «Depois de ter sido tratado assim um colega nosso, não existem condições políticas para irmos». Curiosamente, foi a primeira vez na minha vida em que me aconteceu que a esquerda não me acompanhou e a direita da comissão do Mercosul – que eram quase todos espanhóis – achou que era uma posição digna por parte do presidente da comissão e disseram: «Não vamos visitar um país que expulsa, que escurraça como se fosse um animal um membro desta casa».
Nessa altura, já tinha essas guerras. Era da esquerda, da esquerda de Guterres, mas hoje é considerado da direita do PS de Costa.
O meu problema não era um problema ideológico.
Aí já teve muitas desilusões quando os deputados do Parlamento Europeu não concordam com a sua decisão quando o deputado é expulso da Venezuela por causa das opiniões acerca de Hugo Chávez.
Já no Brasil tinha tido problemas semelhantes. Cheguei a ir com o Mário Soares, outras vezes fui sozinho, a uma coisa que existia na altura que era o Fórum Social Mundial, em Portalegre. E fui a um comício do Chávez lá, no qual ele faz um discurso de três ou quatro horas e o tema era: «Antes de mim já houve alguém que foi incompreendido, antes de mim já houve alguém que sofreu». Isto não acabava e havia uma grande expectativa em saber quem é que era o desgraçado que tinha sido este Hugo Chávez do passado, que tinha vivido tantas desgraças. Era Jesus Cristo.
Em termos políticos, conhece Mário Soares no Parlamento Europeu que é o seu grande guru espiritual ou pelo menos conhecido como tal.
Nós tínhamos interesses comuns, quando não estávamos a falar de política falávamos de outras coisas. Muitas vezes reuníamos e ele dizia assim: «Vamos conspirar». Era o que ele dizia sempre.
E falavam de que outras coisas? Falavam de mulheres?
Falávamos de mulheres, sim claro. Mas falávamos de jardins. Ele gostava muito dos seus dois jardins de Nafarros. Uma vez estava todo satisfeito porque tinha uma sequoia gigante que já tinha uns rebentos, já tinha novas pequenas sequoias e então ele vazou uma para eu levar para o meu jardim de Fontanelas. Coitada, o meu jardim não prestava para nada e a sequoia morreu. Uma vez dizia-me assim: «Está a ver este cacto?» e no meio do nada aparecia um cacto colossal e eu «sim, isto é um senhor cacto»» ele «este cacto trouxe eu do México. O Ribeiro Telles quando projetou o jardim queria tirar daqui o cacto, mas eu não deixei».
E politicamente, como é que se identificava com ele? Acha que ele era o grande defensor da liberdade de pensamento?
Ele era um defensor radical da liberdade. Achava que onde não existe liberdade não existe nada e que tudo era instrumental em relação à liberdade. Nós precisamos de justiça e de igualdade, porque a pobreza também é uma prisão e, portanto, no fim está sempre a liberdade.
Soares para o comum dos mortais foi um homem que lutou, como já disse, contra o projeto político-militar do PCP. Hoje manifesta-se muito contra este projeto ou não?
Bem, hoje em dia já não existe um projeto político-militar do PCP. Com o fim da União Soviética aqueles que imaginavam e alegavam que o PCP era o representante em Portugal de uma potência, esse discurso deixou de fazer sentido, porque essa potência ruiu. Mas é curioso que o PCP ainda hoje se sente ofendido quando se diz PC e faz sempre questão que se diga PCP, para salientar que eles não são marionetas de uma entidade externa, são portugueses. Isso é uma herança desses tempos. A ideia de se ter posto o socialismo na gaveta era uma coisa que perturbava Soares. Eu dizia-lhe que nós fomos o primeiro Partido Socialista do sul da Europa a chegar ao poder. Nós fomos os primeiros socialistas a lidar com as realidades da governação, com a dureza, a lidar com as coisas como elas são e não viver no mundo da fantasia. As decisões foram duras, foram feitos acordos com o Fundo Monetário Internacional, e eu explicava-lhe que esse Mário Soares foi o homem que salvou o socialismo democrático de uma ganga ideológica emprestada, uma ganga que não servia o país. Era o meu discurso e achava que ele não tinha de ser julgado pelo socialismo na gaveta. O socialismo que ele pôs na gaveta merece permanecer na gaveta, era só entulho.
O que significa esse entulho?
As nacionalizações, a clã gestão, as ilusões cooperativistas, uma série de soluções que na altura tinham um grande prestígio junto da nossa inteligência mas que ruíam como fantasias impraticáveis diante dos problemas reais e das dificuldades reais da governação.
Qual é a diferença para os dias de hoje?
Nunca achei que a constituição de uma solução do tipo da ‘geringonça’ pusesse em causa as grandes decisões estratégicas e consensuais do país. A União Europeia, a NATO, nada disso estava em causa. Aqueles que temiam que isso pudesse ser comprometido também não conheciam o António Costa. Mas, ainda assim, o PS para sobreviver nestas condições de minoria e a necessidade de reconstruir anualmente condições políticas para aprovação dos orçamentos está em demasiados aspetos refém dessas mundividências caducas. São elas próprias um obstáculo, um travão, a reformas que podem verdadeiramente mudar o país e a vida das pessoas. Um país mais próspero, com uma economia mais dinâmica, mais livre, mais liberta da tutela do Estado.
Acha que os seus filhos vão ter uma vida melhor se continuarmos com esta ‘geringonça’?
Faço parte de uma geração que tinha 20 e poucos anos quando Guterres anunciou que no espaço de uma geração venceríamos o atraso em relação aos países mais desenvolvidos da Europa. Essa promessa, que na altura não parecia e não era demagógica porque parecia que estava ao nosso alcance, não aconteceu. E recuso-me que não se analisem as causas profundas desse fracasso.
Temos a guerra Mário Soares vs. Salgado Zenha. Não é o Salgado Zenha do PS neste momento?
Tem piada. O Mário Soares era uma pessoa solar, otimista, nada o perturbava durante muito tempo. Por exemplo, íamos a um jantar onde ele tinha que fazer um discurso e ele estava cansado e o discurso saía muito mal. Ele chegava ao fim e dizia «isto hoje não saiu grande coisa, pois não?» e eu dizia «pois, também acho que não». Mas ele nunca mais pensava nisso, se fosse eu torturava-me ali, nunca mais me libertava daquilo. E o Soares dizia-me assim «Sérgio, você parece que transporta o peso do mundo, você faz-me lembrar o Salgado Zenha». Mas, em primeiro lugar, acho uma grande ousadia estar a comparar-me ao Salgado Zenha porque eu tenho-lhe uma certa veneração. Em segundo lugar, o Salgado Zenha estava à frente de um grupo poderoso no Partido Socialista. O Soares teve que recuperar o partido em condições muitíssimo difíceis com o seu grande amigo António Campos. Nada disso tem que ver com o que se passa hoje. Não me ocorria contestar a liderança de António Costa.
Mas não se sente um general sem tropas? Já disse que hoje em dia a política não é feita de personalidades, mas é feita de grupos.
Não sei se a política é feita por grupos, mas a política hoje é feita sem personalidades, que é uma péssima notícia para a democracia.
Não se sente muito solitário?
Às vezes sinto-me um resíduo de uma época transata.
Como é o seu dia na AR? O pessoal do BE e do PCP falam-lhe bem? Quem são os seus amigos no Parlamento?
Tenho imensos amigos do PCP. Dou-me muito bem com os deputados do PCP. É um partido de grande sentido institucional, de grande correção. Nunca se espera da parte do PCP nenhum gesto baixo, é um partido fiável.
Acha que eles são democratas?
Eles jogam um jogo democrático e têm um sentido institucional. Eu voto muitas vezes ao lado do PCP e contra o meu partido, ainda agora sobre o código de ética digital votei ao lado do PCP e contra o meu partido.
Acha que o PCP não é de extrema-esquerda?
O PCP é evidentemente de extrema-esquerda, mas é um partido complexo. Chamar ao PCP um partido de extrema-esquerda é algo que eles não gostariam, porque eles acham que era o esquerdismo a doença do comunismo. Eles achariam que extrema-esquerda é o Bloco e não o PCP. É um partido que joga com lealdade o jogo democrático. E eu já não peço muito mais.
E o Bloco de Esquerda?
O Bloco é um caso à parte. Acho que é o partido que representa uma certa burguesia urbana, que tem uma base de apoio muito diferente da do Partido Comunista. O PCP tem um verdadeiro entrosamento junto de setores fortemente penalizados no nosso país. Somos um país pobre e, em larga medida, bastante atrasado. Acho normal que esses perdedores sistémicos, esses portugueses castigados da vida, tenham um partido que lhes dê voz. Percebo perfeitamente a existência do PCP e da sua força. O Bloco parece uma coisa mais urbana e, de certo modo, frívola. São pessoas transformistas, volta e meia dizem que são sociais-democratas, quando é evidente que não o são.
Gostava de viver num país governado pelo Bloco de Esquerda?
Não. Para já porque viveria num país economicamente depauperado e miserável. É um partido que ainda acredita na condução estratégica da economia pelo Estado, ainda acredita na nacionalização por setores. Acho que viveria num país empobrecido que mais tarde engendraria uma nomenclatura privilegiada e em nome das melhores intenções, atacaria as liberdades públicas e individuais. Não quereria viver nesse país, mas esse risco não existe, digo eu.
Numa entrevista que deu a Maria João Avillez, disses que em 1974/75 não se podia dizer a palavra empresários. Hoje em dia estamos a caminhar numa cidade em que não se pode dizer a palavra pai e mãe. O que acha disto? Não acha que há semelhanças entre o PREC e o que estamos a viver agora?
Acho que são fenómenos bastante diferenciados. Hoje em dia há um pensamento reduzido a partir de certos setores das Ciências Sociais em universidades, como uma espécie de madraças que são os centros irradiadores dessa limpeza da História, da vida e da linguagem. Todos aqueles que têm uma cultura socialista libertária, que é o meu caso, são adversários naturais dessa reformidade. Porque no dia em que a mundividência que eles querem generalizar se impuser, eles controlarão a narrativa sobre o passado e, a partir daí, terão todos os instrumentos para controlar o futuro. É o grande aviso do Orwell: «Se estás no presente e quiseres controlar o futuro, primeiro tens que controlar o passado».
Nomeadamente com as questões de género.
Sou um feminista, sou a favor da emancipação das mulheres. Tenho que começar por dizer isto, porque posso parecer um cavernícola que é defensor da sociedade patriarcal que é o rótulo que eles gostavam de me atribuir.
Foi o grande mentor da despenalização do aborto.
Sim, mas passaram muitos anos. As gerações mais novas já não têm a noção desse lastro. Eu às vezes sinto que gozo de uma liberdade que está protegida pelo meu passado, por aquilo que fiz, pelos combates que travei e até pelas derrotas que tive. Mas para as gerações mais novas nada disso é real, essas coisas já desapareceram na voragem do tempo. Eu não tenho grandes objeções às catalogações, a mim o que me preocupa é que elas sirvam um propósito mais vasto que é de segmentar a sociedade em tribos. É isso que eu não quero que aconteça, é isso que eu combato. Eu sou um socialista e travo a minha luta cidadã e política ao lado de brancos, negros, homossexuais, transexuais, de todos os que se quiserem juntar. Nós todos somos fundamentalmente cidadãos da República, portanto, a nossa grande tribo é uma tribo cidadã e é uma tribo portuguesa. Não aceito essa divisão que só explora narrativas falsas sobre o passado e todos os dias inventaria novos contingentes de ofendidos e de maltratados a reclamarem ressarcimento. Eu olho para mim e olho para ti e digo o seguinte: «Sabe-se lá se nós somos descendentes de esclavagistas ou de escravos, sendo nós portugueses o mais provável é sermos descendentes de ambos». Por que é que estamos a importar um debate que fará pouco sentido nos Estados Unidos e aqui nenhum?
Deitar abaixo o Padrão dos Descobrimentos?
Não passa pela cabeça de ninguém.
Não acha que esta história do Mamadou Ba e de personagens como ele, que são os próprios fomentadores do racismo?
Há uma frase de um intelectual brasileiro que eu gosto muito, do Millôr Fernandes, e ele diz assim: «Desconfio muito dos idealistas que têm alguma coisa a ganhar com o seu ideal».
Também já disse que o preocupa que os jovens socialistas tenham um grande fascínio pelo BE. No seu partido há um que é notoriamente amigo do BE, que é Pedro Nuno Santos. O que é que acha que é necessário fazer para que os jovens socialistas não ficarem enamorados pelo Bloco de Esquerda e terem uma visão mais aberta de liberdade?
Para já, acho que esses jovens socialistas, não serão certamente todos, que têm um enamoramento pelo Bloco de Esquerda e que estão intelectualmente subjugados pelo BE não tem exatamente a ver com o Pedro Nuno Santos. Acho que o Pedro Nuno Santos está a lidar com a espinhosa tarefa de governar e isso de certeza que também tem agido sobre ele. Portanto, não são a mesma realidade. Esta prostração diante do Bloco de Esquerda como o partido mais puro e verdadeiramente de esquerda tem a ver com uma narrativa falsa que tem sido alimentada nos últimos anos, segundo a qual o PS teve uma história de posicionamento ambíguo e que só com o aparecimento da geringonça é que se transformou num partido de esquerda. E é esta teoria, que é uma aldrabice e uma falsidade, que é preciso desmontar. A necessidade de aprovar orçamentos todos os anos e de garantir o apoio do BE tem impedido o PS de fazer uma coisa que durante toda a vida fez que é dar combate ideológico aos discursos totalitários que são produzidos à sua esquerda. O PS calou-se e quando abre a boca é para estender a mão e para, por exemplo, inocentar todos estes partidos do seu lastro histórico, do que eles trazem e representam. Eles bem podem dizer que são sociais-democratas, mas não são. Eles são os herdeiros dos regimes mais criminosos, ineptos e fracassados que a História conheceu.
No debate do Estado da Nação, quem é que decide quem é que do PS fala?
Não sei. Presumo que seja a direção da bancada.
Nunca lhes ocorreu darem-lhe voz num debate do Estado da Nação?
As minhas funções no Parlamento, que são absorventes, têm fundamentalmente a ver com a Comissão dos Negócios Estrangeiros.
Já escreveu várias vezes que os deputados antigamente não eram funcionários do líder. Se tivesse oportunidade de ter falado no debate do Estado da Nação, o que diria ao país que achasse que era importante?
Acho que o debate político entre o Partido Socialista e os demais partidos deve ser protagonizado do lado do PS por aquelas pessoas que se sentem mais confortáveis a defender as soluções que têm vindo a ser encontradas, algumas das quais merecem a minha discordância.
Mas não acha que seria normal num partido fundado por Mário Soares que houvesse mais abertura para personagens como você dizerem de sua justiça?
O PS é o único partido onde uma pessoa com as minhas características é viável, porque o PS é um grande partido nacional, aberto e pluralista. E onde todos nos sentimos na nossa casa. É uma grande casa comum onde todos cabemos.
Vive só da política ou tem outros interesses económicos que lhe permitem ser tão livre?
Os meus interesses económicos são estar no espaço público e na comunicação social, são esses os meus rendimentos fora da política.
Não acha estranho que ao pé de Pacheco Pereira hoje em dia é uma pessoa de direita e Pacheco Pereira é uma pessoa de esquerda? Não acha isso insólito?
Nunca tinha pensado nisso. Mas não me apetece estar aqui a tecer considerações sobre a última encarnação do Pacheco Pereira. O primeiro Pacheco Pereira que eu conheci já nem sequer era do clube da esquerda liberal, era o grande ideólogo do cavaquismo. Habituei-me a ver o Pacheco Pereira como um homem com um pensamento efetivamente de centro-direita. E acho muito bem que o Pacheco Pereira mude porque essa é a trajetória normal das pessoas inteligentes, estão expostas à mudança. Só os obtusos é que do berço à cova repetem sempre os mesmos refrães.
Então qual foi a sua grande mudança?
A grande mudança que me terá marcado foi a experiência de viver no estrangeiro. Isso marca as pessoas. Ver o que é ser classe média na Bélgica e o que é ser classe média em Portugal, não tem nada a ver. Os preços na Europa estão mais ou menos alinhados. No que toca a certos bens duradouros, como as casas e os automóveis, aqui são mais caros que na Europa, coisa que as pessoas às vezes não têm noção. Os salários aqui são uma fração dos salários europeus. A carga fiscal elevada e o esforço fiscal é o maior da Europa. É evidente que quando falamos da classe média belga e da classe média portuguesa não estamos a falar do mesmo tipo de pessoas.
O que acha que é preciso para mudar esse cenário e para termos um crescimento económico para que os seus filhos possam ter uma vida melhor?
A nossa geração já não vai a tempo de mudar isso. Nós exportaremos os nossos filhos para que eles possam ter vidas económicas autónomas, responsáveis, com o mínimo de prosperidade. A grande tragédia da classe média hoje é ser exportadora dos seus filhos para o norte da Europa. Como acontece, aliás, nos Estados Unidos. Tu nasces no Arkansas, mas és um grande advogado, evidentemente não vais ficar a exercer no Arkansas, vais para Nova Iorque, ou para Los Angeles ou Chicago, ou para um sítio qualquer. Não ficas é no Arkansas.
Por que acha que os filhos da classe média não ficam em Portugal?
Não podem. Então como é que uma pessoa que sai da faculdade vai ganhar 700 euros depois de não sei quantos anos em que esteve a estudar? Aliás, há sinais preocupantes de que muita gente começa a imaginar erradamente de que não vale a pena tirar um curso superior. Isso é um erro, isso é uma tragédia. Mas nós não podemos persistir nisso.
O que acha da crise cubana?
Cuba atravessa um momento difícil relacionado com a diminuição do turismo, o que é interessante porque revela as grandes constantes históricas, as linhas de permanência. A Cuba turística de hoje tem imensas semelhanças com a Cuba turística do Batista. Não se pode pedir às pessoas de uma certa geração que viveram com idealismo, esperança e generosidade a revolução cubana que agora façam uma avaliação objetiva e correta da tragédia de um país submetida a uma ditadura. Lembro-me de uma coisa que Soares disse a respeito do Fidel Castro: ‘A História não o absolverá’.
Acha? Numa recente manifestação em Lisboa vários manifestantes tinham uma t-shirt com a figura doeChe Guevara.
Não tenho nada contra o ícone de Che Guevara. Aliás, até tenho uma belíssima serigrafia do Vespeira do Che Guevara na sala e que me foi oferecida num aniversário pelo António Costa. Portanto, também tenho o meu Che Guevara.
Acha que foi um democrata?
Claro que não. Foi um idealista do seu tempo só que há certas coisas que se podem perdoar ao Che Guevara de 1950 e tal e que já não se podem perdoar em 2011 a estes Che Guevaras de pacotilha.
Como se torna o guru da direita?
Mas não sou o guru da direita. Como não há direita dou muito nas vistas. É uma evidência que nós não podemos ter um Estado social-democrata semelhante aos nórdicos ou àquele que eu conheço melhor que é o sueco, quando o nosso produto com a mesma produção é entre metade e um terço do sueco. Não há volta a dar a isto. Só enganando as pessoas, cada vez mais procurando proporcionar serviços que não existem condições objetivas para financiar e aspirando cada vez mais implacavelmente os recursos de uma sociedade que não os produz. Não são só os recursos das empresas, são também as poupanças das famílias, os rendimentos das famílias. Nós vivemos num estado total de irresponsabilidade, porque nós já sabemos que a classe média portuguesa vive para chegar melhor ou pior ao fim do mês, tem uma carga fiscal enorme, a única poupança que faz são os descontos para a Segurança Social, para pagar o carro e a prestação da casa. Nós estamos privados de uma série de decisões da nossa vida, não temos realmente possibilidade de tomar decisões em relação à nossa própria poupança. A poupança é virtualmente inexistente. É uma sociedade que beneficia da escola pública, do Sistema Nacional de Saúde, e quando chegar ao fim da sua trajetória profissional beneficia da Segurança Social sem poupanças que se vejam.
Acha que vamos ter direito a reforma?
Estou muito preocupado com isso. Como muita gente da minha geração estou perfeitamente ciente que não vou chegar à idade da reforma com grandes poupanças. Não é um problema meu, acho que é um drama geracional. Se, como diz a Comissão Europeia, as nossas reformas andarem por metade daquilo que é a média dos nossos vencimentos, então nós vamos viver de quê? São os nossos filhos que estão lá fora que vão mandar remessas. Então o melhor é termos muitos filhos, como na Idade Média, se são eles que provêm à sobrevivência dos pais, enquanto não morrem.
Tem estado envolvido em váriasa polémicas. Por exemplo, houve uma grande polémica com o Daniel Oliveira. Recebe muitas críticas nas redes sociais depois daquela sua intervenção. O que acha da esquerda caviar?
Gosto muito do Daniel Oliveira. Deve ser das pessoas que conheço há mais anos, porque era eu presidente da associação de estudantes da Gil Vicente e o Daniel Oliveira era um jovem estagiário, julgo eu, do Diário de Lisboa. Trabalhava para o famoso suplemento A Mosca e a primeira entrevista que dei na vida foi ao Daniel Oliveira que eu conheço desde os meus 16 anos. Portanto, gosto muito do Daniel Oliveira. Sobre ele só posso dizer o seguinte: tenho sincera simpatia pelo Daniel Oliveira.
Penso que escreveu há uns tempos sobre o Guterres ter prescindido dos batedores. O que acha desta polémica dos excessos de velocidade dos ministros.
Os dois assuntos têm uma certa conexão que não me tinha ocorrido. O primeiro-ministro no exercício das suas funções evidentemente não usa batedores para sua conveniência pessoal, usa batedores porque as suas obrigações impõem que ele tenha batedores, não só por questões de segurança mas porque as obrigações dele se não são suficientemente relevantes para ter batedores que o impeçam de perder tempo no trânsito, então não existem nenhumas funções especialmente relevantes. É um homem que tem a maior responsabilidade. O primeiro-ministro e o Presidente da República são as pessoas com maior responsabilidade deste país por definição. Em relação à história dos excessos de velocidade dos ministros, é preciso reconhecer que à semelhança dos carros de bombeiros, da Polícia, que estão em serviço oficial, há circunstâncias evidentemente em que os governantes em serviço da República têm de poder violar os limites de velocidade. É a própria gravidade das suas funções que lhes impõe isso. Eles não fazem isso por razões frívolas, é um serviço da República, impõe essa necessidade. Fiquei espantado com as justificações apresentadas pelos ministros em causa, que me parecem também elas capitulacionistas, quer dizer, agora já não fazem pedagogia sobre as coisas, agora vão andar todos provavelmente a 120 km/h a engonhar com grande vantagem para a República e para Portugal, mas não interessa.
Quando Guterres quis acabar com os batedores, o que disse?
Isso fazia parte daquela maluquice da altura que era a dessacralização do poder. Num sistema democrático o poder é por definição dessacralizado, porque ninguém exerce poder em razão do direito divino. Guterres não era primeiro-ministro pela graça de Deus. Portanto, numa República que é o governo dos homens comuns a dessacralização já não existe, o que é preciso é que haja alguma sacralização associada à valorização dos símbolos dos grandes magistrados da República, que são expressão da vontade popular. Se queremos acabar com isso tudo o que é que sobra? Que autoridade sobeja aos governantes depois de se desmunirem de todos os seus símbolos de poder e autoridade?
E o que pensa do vídeo que circulou de Paulo Rangel embriagado?
A história do Paulo Rangel julgo que não poderia acontecer numa época em que não existiam redes sociais. Havia um filtro de decência que era imposto pela imprensa séria. Hoje em dia com as redes sociais qualquer megera filma um homem na sua vida privada, político ou não político, e procura reduzi-lo àquelas imagens. No dia em que homens como o Paulo Rangel decidirem que a política não justifica a sua vida, o seu tempo e a sua entrega, a República fica pior. Essas pessoas vão acabar por se fartarem disto, porque o preço a pagar é demasiado. Podemos voltar à eterna questão: por que é que não existem personalidades na política? Ninguém está para se sujeitar a isto, nem a muitas outras coisas. Criamos um sistema tão castigador daqueles que dedicam a vida à causa pública. Em breve, as pessoas disponíveis para pagar esse preço são pessoas tão estranhas e diferentes de nós, que temos todas as razões para ter medo delas.
Foi aprovado recentemente no Parlamento que os deputados e os detentores de cargos públicos têm que declarar se são membros da maçonaria. O que acha disso?
Sou contra isso e votei contra com toda a convicção ao lado do meu partido. E não sou maçon.
O que acha das comissões parlamentares e do papel que têm tido na Justiça portuguesa?
Têm contribuído para que o país perceba o que é uma parte muito significativa do nosso capitalismo, que não é capitalismo nenhum. É um regime de concubinato, testa-de-ferro e impunidade. Não está ao serviço da economia nacional, não está ao serviço do crescimento, não está ao serviço do emprego, não está ao serviço de nada. É uma comandita de negociantes e acho que essa tomada de consciência para aqueles que, como eu, consideram que Portugal precisa de um setor privado saudável, próspero, dinâmico e competitivo, primeiro temos que enterrar esta coisa.
O que acha do facto de quase tudo o que está em discussão estar relacionado com um período em que o PS estava à frente do Governo?
Muitos dos casos que têm vindo agora a público coincidem com esse período, mas é preciso ter uma grande inocência para imaginar que o país antes era diferente. Esperemos nós que já o seja agora.
Acha que algum dia pode ser candidato à liderança do PS?
Estou absolutamente convencido que a minha liberdade na política portuguesa deve muito ao facto de eu não me determinar por ambições dessa natureza. No dia em que estiver dominado por uma ambição legítima de liderança, a minha liberdade será diminuída. Terei em consideração uma série de cálculos a que hoje sou insensível, mas acho que a liderança do Partido Socialista, como a liderança de qualquer partido, é algo para pessoas saudáveis, é determinada pelas circunstâncias do momento. Qual é a pessoa que está em melhores condições de servir? Essa é a grande questão. É muito mais importante saber quem é que tem a ambição de ocupar um determinado lugar em certo momento. São as circunstâncias que vão decidir isso.
Imagine que existia uma vaga de fundo na sociedade para se candidatar a líder do PS, aceitaria ou não?
Até hoje só tenho visto vagas de fundo muito bem organizadas. Eu acho é que o Soares é que alentava essa esperança.
E vai desiludi-lo?
Uma vez disse ao Soares quando estávamos no Parlamento Europeu que eu devia voltar a Portugal para concluir o meu estágio de advocacia e o Soares dizia: «Mas você não percebe que está aqui a fazer um estágio muito mais importante?» e eu «mas para quê Sr. Dr.?», «para secretário-geral do Partido Socialista». Acho que a decisão de fazermos um livro em conjunto que, como é evidente foi dele, porque eu não teria o atrevimento de sugerir que o fizéssemos, já fazia parte desse seu desejo. Mas uma coisa são os desejos, outra coisa são as realidades.