Com o ânimo de um inveterado desmancha-prazeres num ambiente amorfo em que, do ensaiado coro de pedintes que tomou conta das artes e das letras não se pode esperar nada que não passe “pelo filtro deformante do humor, o humor que redunda obviamente numa espécie de vazio, arrastando atrás de si uma mudez trágica”, Michel Houellebecq surge-nos em “Intervenções” a atirar vasos ao chão, urinar nos arranjos de flores, engolir o peixe-palhaço do aquário, entre outras travessuras de criança vândala. É uma colecção de comentários mais ou menos desenvolvidos sobre temas candentes, a que se juntam desaforos, ajustes de contas, algumas reflexões intempestivas e inusitadas, havendo passagens que dá vontade de emoldurar seguidas de outras que, de tão vulgares, nos fazem pensar que de repente caímos nas caixas de comentário dos jornais, e estamos a ver o chefe de opereta dos grunhos a distribuir o panfleto do dia. Mas há um aspecto em que Houellebecq raramente compromete: no estilo. E aqui é preciso entendê-lo segundo a apreciação de Schopenhauer quando diz que “a primeira – e praticamente a única – condição de um bom estilo é ter qualquer coisa para dizer”. É o autor de “Extensão do domínio da luta” quem gosta de a sacar como se se tratasse de um revólver, isto sempre que lhe falam de literatura. E deve reconhecer-se que, mesmo quando o que tem para dizer não é particularmente original, Houellebecq não tem por hábito turvar as aguas nem atirar terra sobre elas para as obscurecer e assim sugerir profundidade. A sua escrita é sempre translúcida. De resto, ele costuma ter a seu favor essa capacidade de desarme que passa por servir apartes bastante afiados: “Por exemplo, durante uma conversa literária, quando a palavra ‘escrita’ é pronunciada, sabemos que é o momento de relaxar um pouco. Tempo de olhar em volta e mandar vir outra cerveja.”
Deixemos, assim, as questões de forma, sendo certo que, apesar das provocações algo gratuitas que vamos encontrando nestas páginas, não faltam muitos mais elementos instigantes ao nível do conteúdo, merecendo-nos desde logo louvor a coragem com que enfrenta temas complexos, polémicos e traiçoeiros como “a questão pedófila”, o feminismo, passando pela “presença das imagens pornográficas que tornam a realidade um bocado insípida… a pornografia que prejudica a sexualidade real… a representação que aniquila a realidade…”, e a crítica que faz ao ecumenismo que tem marcado as intervenção da Igreja Católica, nomeadamente face ao Islão. Como não podemos ir a todas, mas porque é justo diferenciar Houellebecq da caterva de pregadores que, a partir dos púlpitos da cultura, nos aborrecem com as suas sonsas homílias, há que elogiar a forma como, sendo embora uma espécie de rabugento que quase sempre cavalga aquele estupor reacionário que preside à maioria das querelas no espaço público, mantém-se fiel às suas convicções, mesmo quando há o perigo de a sua cabeça ser posta a prémio, como já aconteceu. Assim, note-se como ele denuncia certas fixações mediáticas como a questão da pedofilia e do incesto, pressentindo que há nelas qualquer coisa de reconfortante. “O pedófilo parece-me o bode expiatório ideal de uma sociedade que organiza a exacerbação do desejo sem fornecer os meios de o satisfazer. Num certo sentido é normal (a publicidade e a economia em geral assentam no desejo, e não na sua satisfação); mas creio ser útil recordar esta evidência: nas condições actuais da economia sexual, o homem de idade madura mantém a vontade de copular, só que deixou de ter verdadeiramente o direito de o fazer. Não espanta por isso que se vire para o único ser incapaz de lhe opor resistência: a criança.” No contexto actual do #MeToo, esta reflexão, bastante desafiante e complexa, adquire uma arrepiante força premonitória, particularmente quando Houellebecq deixa claro que, a partir de certa altura, há uma parte substancial da população que, sendo cilindrada diariamente por campanhas de estimulação do apetite sexual, tem no entanto que se conformar com essa espécie de condenação à morte em vida que passa por reconhecer que “quando já não somos desejáveis, deixamos de ter direito ao desejo”.
Houellebecq é alguém que tem, pelo menos, a coragem de ir até ao fim nas especulações para que a sua lucidez o empurra, alguém que extrai do “espectáculo da natureza” a noção de que a beleza irrompe “como uma espécie de vingança contra a razão”, e num ensaio sobre a arquitectura, começa por rejeitar essa noção de que o que é funcional é forçosamente belo, estabelecendo este princípio de oposição que, no limite, justificará a guerra entre a natureza e o homem, sendo que aquela se reproduz com exuberância, com grande fecundidade, movida “aparentemente por uma força interior a que podemos chamar um puro desejo de existir”, ao passo que na arquitectura contemporânea o que se lê é a sujeição a um programa de colonização devastador, incitando-nos Houellebecq a encará-la como “um imenso dispositivo de aceleração e de racionalização dos deslocamentos humanos”. De algum modo, este ensaio inicial oferece-nos uma chave interpretativa essencial para o resto dos textos incluídos no volume, e ao explicar que a arquitectura contemporânea se organiza como um programa simples, que passa por construir as prateleiras do hipermercado social, também Houellebecq revela de algum modo a estreiteza da sua leitura sobre esta época essencialmente trágica e que, por isso mesmo, como notou D.H. Lawrence, nos recusamos a interpretar segundo os parâmetros da tragédia. Este modo de aligeirar, traçar com linha grossa os contornos, simplificando e servindo com característica audácia panfletária um cenário, afinal, vertiginoso e complexo, exprime bem o apelo da obra deste polémico autor, que torna tudo bastante acessível para um público terrivelmente cínico, que em lugar de intuições apenas se guia pelas mais degradadas suspeitas, e se mostra sempre disponível para ser conduzido pelas teses mais negras, mesmo que um tanto desconchavadas, desde que reforcem os seus nefastos pressentimentos misturando o tom apocalíptico e a ironia, municiando-os de slogans eficazes e de explicações maximalistas e fáceis de disparar numa disputa de café. Assim, como vago substrato das suas ficções, as quais, na verdade, adquirem uma outra rugosidade, exalam um aroma pesado mas bem mais denso nas suas sugestões, nestas “intervenções” o que Houellebecq vai formulando é uma teoria geral do cataclisma contemporâneo, um manual que, sem ironia, poderia ostentar na capa o título “O Apocalipse para Totós”. Assim, não hesita em afirmar que “progrediremos ao considerar que vivemos não apenas numa economia de mrcado, mas de forma mais geral numa sociedade de mercado, isto é, um espaço de civilização onde o conjunto dos relacionamentos humanos, e igualmente o conjunto das relações entre o homem e o mundo, são mediatizados pelo viés de um cálculo numérico simples, em que entram a atractividade, a novidade, a relação qualidade-preço. Nesta lógica, que se estende às relações eróticas, amorosas, profissionais, e não apenas aos comportamentos de consumo propriamente ditos, trata-se sobretudo de facilitar a implementação múltipla de laços relacionais rapidamente renovados (entre consumidores e produtos, entre empregados e empresas, entre amantes), promovendo assim uma fluidez consumista baseada numa ética da responsabilidade, da transparência e da livre escolha.” Se não deixamos de ficar surpreendidos pela desenvolta apropriação de noções esgrimidas de forma mais subtil e profunda em tantos dos autores de esquerda que execra, de Houellebecq se pode dizer que ele é uma amálgama meio destrambelhada de teses que se colhem ao longo de todo o espectro, mas que depois são reconduzidas a certos preconceitos básicos e que fazem dele um ser tão cativante quanto repulsivo, um autor “entendido em ruindades elevadas ao infinito”. Outra forma de o classificar, mais em linha com as categorias que ele mesmo desenvolve, seria apontá-lo como o energúmeno que não deixa de proferir juízos atravessados por intuições biológicas profundas e que, por essa razão, se vinculam ao mundo real, como quando refere que hoje as nossas vidas são sobretudo matéria-prima das estatísticas, e que os modelos elaborados a partir delas levam a uma forma impiedosa de se fazer funcionar o corpo social de um modo que tem levado “a carne do mundo [a ser] substituída pela sua imagem digital”. Ao pôr os dedos na “indefinida pulsação do transitório” que tem tomado conta de todos os aspectos da contemporaneidade, Houellebecq revela ter uma mente capaz de sínteses indigestas, que operam a partir desse barulho de fundo das execrações que as sociedades modernas produzem em nós. Fala num programa de “criação de indivíduos indefinidamente mutáveis”, e explica como, “libertado de entraves como o sentido de pertença, as fidelidades, os códigos de comportamentos rígidos, o indivíduo moderno fica disponível para ocupar o seu lugar num sistema de transacções generalizadas, no seio do qual se tornou possível atribuir-lhe, de maneira unívoca e sem qualquer ambiguidade, um valor de troca”. Assim, a tragédia da nossa época é a desagregação provocada por este ser que, nascido na natureza, começa por se rebelar e por conseguir escapar à sua potência dominadora, para depois se deprimir, e funcionar no registo biológico como os buracos negros no plano cósmico. Houellebecq fala numa “depressão do querer” que é visível no homem contemporâneo, e diz-nos que não se trata de os indivíduos desejarem hoje menos, “pelo contrário, desejam cada vez mais; mas os seus desejos adquiriram qualquer coisa de estridente e vociferante: sem serem simulacros puros, eles resultam em larga medida de determinações exteriores – diríamos publicitárias, no sentido mais lato”. E agora assinala o evidente fosso que começa a separar-nos do espectáculo da natureza, e daquele puro desejo de existir, dizendo que, hoje, nos indivíduos, nada “evoca aquela força orgânica e total, dirigida obstinadamente à sua própria concretização, que a palavra ‘vontade’ sugere”. E remata vincando como “disto resulta uma certa falta de personalidade, perceptível em cada um de nós”.
Destes seus textos, tantos deles bagatelas num registo despachado, servidas nos melhores momentos por meio de truculentas elipses, descrições sucintas e eficientes, destas crónicas, provocações, arremedos ensaísticos, se pode dizer que, à semelhança do que faz nos seus romances, Houellebecq, à semelhança de Céline, transforma a dinâmica complexa do fiasco político e social em cheiro, em som… E é revelador a insistência com que, sempre por meio de apartes, vai desdenhando daquele autor com o qual, se não forçasse esta distância, haveria a tendência de estabelecer um vínculo, reconhecer um como a sombra descomplexada do outro. Na moral límpida e assertiva que organiza as ideias de Houellebecq, a sua brutalidade característica é amenizada por um humor que, mesmo se roça o mau gosto, mesmo na sua petulância, não deixa de nos lembrar de um certo desassombro de quem não sente que deva explicações a ninguém, nem admita que o policiem, e leva, de facto, ao limite a sua liberdade expressiva. E se ao contrário de Céline, raramente atinge uma eloquência desenfreada, onde lhe ganha é na forma como se desembaraça do ódio no momento em que este perde as suas qualidades nutritivas, e se revela uma estratégia ineficaz. Se aqui há um tom de perturbação, este evoluiu com os tempos também, e sabe exprimir-se de forma sóbria, apontar o dedo, escarafunchar a ferida em momentos dolorosos e difíceis de rechaçar, acotovelando, expondo os grumos entre a lisura das sombras, articulando tudo numa gargalhada negra, numa misantropia e numa repugnância pelo mundo que não deixa de ser capaz de o retratar numa escala aproximada da sensação do real. Este escritor seduz tantos daqueles que não aguentam o lirismo progressista hoje em vigor, essas utopias de pechisbeque, já sem a coragem de ir à raiz, impor uma função colectiva, antes adaptadas às motivações individualistas, munidas do arsenal delirante das questões identitárias que, depois, a mais das vezes, se perdem em aspectos de semântica. E assim Houellebecq revela ser, paradoxalmente, também um produto, uma espécie de sintético natural, um ser excretado ou encomendado pelo desejo de organizar um certo pessimismo. Aparecendo como um caminhante solitário, é, na verdade, um porta-estandarte de uma sensibilidade ferida, reaccionária, que encontrou o balanço adequado, numa escrita abespinhada mas lesta, sem adiposidades, que se ergue de entre a decrepitude das sociedades ocidentais, por um lado, e, por outro, num confronto com o infantilismo daqueles que se vestem com o colete de bombas das suas esperanças descocadas e fecha-os ao pontapé numa arca refrigerante, procedendo à destilação natural de um desprezo generalizado pelo homem moderno. E se muita da melhor literatura passa pela capacidade de criar a partir de materiais lamentáveis, a partir de aspectos trivialíssimos – das aparências, os olhares trocados, as formas de vestir, esses aspectos irónicos e que convidam à sátira, a espuma da vida –, enquanto cronista e, sobretudo, enquanto ensaísta, Houellebecq cede demasiado ao primarismo da sua tentação provocadora, especialmente quando se refere de forma achincalhante a figuras decisivas da esquerda como Sartre e Beauvoir ou Bourdieu e Baudrillard. Se nos melhores momentos estas intervenções conseguem ser desopilantes, não vão muito além disso. E ele não supera diagnósticos traçados já antes, e em muitos pontos parece-nos que estamos a ler coisas remastigadas, servidas em porções mais leves, de tal modo que se poderia dizer que se limita a compendiar indisposições antigas, e que escreve apenas para irritar aqueles que pensam de modo diferente e consolar aqueles que têm demasiada preguiça para pensar alguma coisa de mais profundo e que, em vez de exigirem mais do cérebro, continuam a confiar ao fígado a função de produzir algo que se pareça com um juízo crítico. Se em vez de estarmos ao serviço desse difuso mal-estar do qual se aproveita a propaganda, isto depois de ter percebido, como lembrava Hannah Arendt, de que as audiências se mostravam sempre suscetíveis a embarcar nas visões mais negras, por mais absurdas que estes se revelem, sem se mostrarem depois particularmente ofendidas quando esses discursos são sujeitos a exame e se prova que foram formulados a partir de representações distorcidas e falsidades. Por essa altura, o mal está feito. E um público que busca entretenimento nunca se lembraria de acusar um autor que vê os seus poderes de ilusionismo magnificados pela sensação de catástrofe imanente (ou permanente) de não passar de um intrujão. Como alguém já disse, sempre que um autor se perfila como candidato a posição de profeta, o que lhe deve ser exigido não é que faça a previsão de catástrofes, mas que seja capaz de anunciar algo de verdadeiramente imprevisível, ou seja, acontecimentos auspiciosos. Num momento em que se instaura com violência uma história profana feita de intermináveis conflitos e tensões, não é sequer permitida a ingénua superstição de quem nutre um certo temor astrológico e quer ver no aparecimento de um cometa no céu o sinal indicador de desgraça iminente, pois como demonstrou há muito o poeta e teólogo alemão Johann Peter Hebel, o número de catástrofes ocorridas nas últimas décadas irá sempre ultrapassar em muito o de estrelas errantes.