A ideia de tomar a liderança de uma cidade praticamente sitiada pelos talibãs, numa das províncias mais conservadoras do Afeganistão, ainda para mais sendo uma mulher com apenas 26 anos, seria um cenário que faria a maior parte de nós fugir a sete pés. Mas não Zarifa Ghafari, nomeada presidente da Câmara de Maidan Shahr, capital de Wardak, em 2018.
«De alguma maneira consegui desfrutar do momento», recorda Ghafari, uma das primeiras mulheres presidentes da Câmara do seu país, e a mais jovem, à conversa com a Luz, num evento organizado pela associação Corações com Coroa, fundada e presidida por Catarina Furtado, em parecia com a Women in Tech.
«Quando passeava pelas ruas e pelos mercados, para falar com as pessoas, sabia que era a única mulher que andava por ali, que usava roupas diferentes. Conseguia andar sem burca, com um fato normal ou jeans, a falar com as pessoas com autoridade», continua a ativista afegã. «Falava com homens que sabia que não obedeciam ou escutavam as próprias mães, só por serem mulheres, mas que me ouviam a mim. Começavam até a acatar as minhas decisões, porque estava a aplicar a lei».
Tranquila, sorridente, com uma voz suave, usando uma shayla (ou lenço islâmico) solta de forma descontraída, à primeira vista ninguém adivinharia que Ghafari viveu um pesadelo nos últimos anos, num país onde se tinha de se preocupar com um bala saída do escuro a cada esquina, devido à sua atividade política, ou de chegar ao carro e deparar-se com uma bomba magnética lá pegada.
Durante a campanha sistemática de assassinatos levada a cabo pelos talibãs nos últimos meses, decapitando a sociedade civil afegã para preparar a tomada do poder, Ghafari perdeu o pai, Abdul Wasi Ghafari, coronel nas forças especiais, abatido a tiro à porta de casa, em Cabul.
A ativista continua convicta que foi o seu destaque enquanto mulher e política que o tornou um alvo, tendo ela própria sobrevivido a três tentativas de homicídio. Uma das quais a deixou coberta de queimaduras, visíveis nas mãos, que vai retorcendo enquanto fala connosco, sem nunca perder o tom de desafio.
«Desde sempre quis fazer parte do esforço para construir algo melhor pelos meus compatriotas», assegura a ativista, que após a queda de Cabul conseguiu escapar com a família para a Alemanha, estabelecendo-se em Düsseldorf. «Por isso é que escolhi ir para uma área tão conservadora, onde fui três vezes atacada. E perdi o meu pai por isso, paguei o preço mais elevado», explica. «Não foi uma decisão fácil sair do meu país. Mas, no último momento, quando vi como a vida se tornaria dura para mim, apercebi-me que seria um erro ficar. Ficaria simplesmente fechada em casa, ocupada a fugir de esconderijo em esconderijo. A tentar sobreviver, sem poder usar a minha voz».
Abusos contra as mulheres
«Quando as pessoas não têm compaixão por estas realidades, quando não temos essa humanidade partilhada, o que é que andamos cá a fazer no mundo?», questiona Catarina Furtado, sentada ao lado de Ghafari. «É alguém que admiro profundamente, todos os dias tento perceber o que será estar no seu lugar», diz a apresentadora de televisão, com a energia a que sempre nos habituou no grande ecrã. «Teria sempre de ser uma cúmplice, um veículo para passar a mensagem destas mulheres coragem».
Os abusos contra as mulheres afegãs, as tentativas dos talibãs apagarem as mulheres da vida pública, é um tema que lhe diz muito, após mais de vinte anos Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), focada nas questões de igualdade de género, do empoderamento das mulheres e jovens, das questões de saúde sexual e materna.
«Visitei muitos países, alguns muçulmanos, outros não. E vi muito do que a Zarifa fala, da tentativa de silenciar as mulheres, de as colocar no fundo da lista de prioridades», lamenta Catarina Furtado. «Vi muitas mortes evitáveis, porque a saúde da mulheres nesses lugares depende muito das decisões de homens. Vi muita gravidez adolescente que deu em morte, muitas práticas nefastas contra a saúde das mulheres que se conseguiria erradicar».
Aliás, são preocupações visíveis num fundo recente criado pela Corações com Coroa, em colaboração com a Cruz Vermelha Portuguesa, o #JuntosAcolhemos, que estará a recolher donativos até 31 de dezembro. «50% das verbas serão aplicadas nos refugiados que cá estão, oriundos de outros países, e os outros 50% serão para mulheres, raparigas e crianças refugiadas afegãs, que estão a chegar», afirma a apresentadora. «Servirá para lidar com necessidades específicas ao nível da saúde, que os programas de acolhimento não contemplam», explica.
«Mas também o reforço da aprendizagem do português. E reforço de uma coisa que não a acontecer, que é providenciar literacia burocrática, para as pessoas perceberem ao que podem recorrer e que serviços estão a seu dispor. Porque estas pessoas querem trabalhar, não querem estar a depender de subsídios, querem integrar-se na sociedade. Mas imaginemos nós o que seria sermos portugueses no Afeganistão. É só inverter os papéis e pensar nisso».
A luta de Ghafari
Após competir com mais de uma centena de homens no concurso e exames para presidente da Câmara – no Afeganistão não havia autárquicas, na altura boa parte do país estava nas mãos dos talibãs, mesmo as presidenciais eram sempre repletas de atentados contra as urnas e alegações de fraude eleitoral por senhores da guerra – e sair vencedora, o primeiro dia de trabalho de Ghafari começou com uma multidão furiosa, armada com paus e pedras, a invadir o seu escritório, recusando ter uma mulher a liderar Maidan Shar, uma cidade com uns 35 mil habitantes.
Era uma população profundamente conservadora, mas também muito traumatizada – começavam a surgir ‘esquadrões da morte’ dos serviços secretos afegãos, treinados pela CIA, e nesse inverno o chamado esquadrão 01 massacraria dezenas de civis, incluindo crianças, revelou o Intercept – e desconfiada de tudo o que viesse de Cabul. Ghafari acabou a ter de ser resgatada por militares afegãos, noticiou o New York Times, sendo que estes só conseguiriam arranjar maneira da jovem voltar à cidade nove meses depois. E a parte mais difícil veio a seguir.
«Quase 60% do nosso orçamento estava sob controlo dos talibãs, havia um crescimento da insegurança e tinha de lidar com ideologias extremistas, foi sempre uma grande luta», lembra a ativista, que dentro do seu próprio executivo «lidava com uma equipa cheia de homens duros, corruptos, com pensamentos negros».
«Quando havia uma reunião de equipa no escritório, eu já sabia que havia demasiadas pessoas lá dentro prontas a gravar as minhas palavras, a vazar documentos e informação, para tentar encontrar algo negativo na minha liderança. Fosse para enviar aos amigos nas redes sociais, publicar nos jornais ou porque tinham contactos com os talibãs», conta Ghafari. «Eu sabia que havia pessoas com contactos diretos com os talibãs», reforça, erguendo o rosto, olhando-nos com uma certa exasperação e raiva ainda bem visível.
A mais gritante corrupção não era um fenómeno local de Wardak. Aliás, é apontado como um dos grandes motivos da rápida queda do Estado afegão, poucos meses após a saída das forças americanas dos seus aliados da NATO, mesmo tendo deixado para trás um exército equipado e treinado durante vinte anos pela maior potência militar do planeta.
Os dados mostram que, depois de investidos quase 75 mil milhões de euros, as forças afegãs contavam com uns 300 mil efetivos, armamento moderno, artilharia, tanques e centenas de aeronaves. Na prática, sempre se suspeitou que muitos desses efetivos não existiam, só no papel, para que oficiais ficassem com o seu soldo, sendo os restantes mal treinados, com baixa moral e falta de apoio logístico. Só as dezenas de milhares de militares das forças especiais – entre os quais se incluía o pai de Ghafari – eram considerados eficazes em combate, daí que fossem particularmente odiadas pelos talibã.
Toda esta dinâmica era agravada pela crescente dependência do Estado afegão nas milícias de senhores da guerra. «Isso sempre foi um grande problema», lamenta Ghafari. «Infelizmente, a comunidade internacional, especialmente os EUA e os seus aliados, desde que entraram em Cabul em 2001, começaram a dar poder, dinheiro, cargos de liderança, a senhores da guerra corruptos, assassinos, aqueles velhos mujahidin que já tinham morto milhões de afegãos nos anos 90».
Falamos de nomes infames como Abdul Rashid Dostum, um antigo general do Governo apoiado pelos soviéticos, que virou contra os seus líderes quando a guerra começou a correr mal, tornando-se senhor do norte e trocando sucessivamente na guerra civil, acusado de cometer massacres – quando o Afeganistão caiu, este verão, era Dostum que estava encarregue pelo Governo de defender Mazar e Xarife, a maior cidade do norte, acabando os talibãs a saquear o seu palácio, escandalosamente luxuoso, onde quase tudo era coberto a ouro.
Outra cidade crucial, Herat, chave para controlar o oeste do país, estava nas mãos de Ismail Khan, um velho mujahidin que costumava ser capitão no tempo dos soviéticos, antes de se virar contra os seus líderes, conhecidos por controlar a região com mão de ferro.
«Dar-lhes poder foi o maior erro», desabafa Ghafari. «Durante estes vintes anos, nos governos locais, no Governo central, mesmo as pessoas próximas do Presidente, não estiveram preocupadas com as suas responsabilidades, de garantir o funcionamento do país. Parecia mais que estávamos a lidar com uma espécie de máfia, roubando terras e receitas. Isso gastava a energia de todos».
No entanto, uma mudança começava a notar-se no Afeganistão. A pobreza ia-se mantendo, mas, com os índices de literacia a aumentar, inclusive entre mulheres, uma geração inteira de gente citadina, que vivia longe dos bastiões rurais dos talibãs, mal se recordava do que é as mulheres não poderem sair de casa, terem de usar burca, estarem proibidas de ouvir música ou arriscarem castigos bárbaros.
Ghafari é ela mesmo produto disso, uma mulher que deixou de ser criança aos quatro anos, conta, para cuidar dos irmãos porque o pai estava fora de casa e a mãe trabalhava como costureira, mas ainda assim teve oportunidade de estudar e obter oportunidades. «Começou a surgir uma nova geração, com educação, que começava a chegar ao poder. Eu não era a única», diz a ativista. Mas já era tarde demais, uns talibãs reforçados como nunca tomaram o país, e muitos da geração de Ghafari deram por si em fuga. No seu caso teve sorte, escapou deitada no fundo do banco de trás, tapada (ver foto ao lado) com toda a sua família, passando pelo Paquistão, depois Turquia e chegando à Alemanha.
‘A comunidade internacional está muito passiva’
Lá fora, o pátio da sede da Corações com Coroa está cheio de gente a aguardar para receber Ghafari. De pé está a cantora Carolina Deslandes, a ensaiar ao som da guitarra, usando manga cava, cabelo curto, braços cobertos de tatuagens, a bater o pé ao ritmo da música. Parece o pesadelo de qualquer talibã, e sabe disso. «Já sou o pesadelo de muita gente conservadora cá que não são talibãs, imagina se fossem», diz à Luz, sorrindo, antes do começo da sessão. Questionada sobre o que a traz ali, Deslandes não hesita.
«Primeiro, sempre que a Catarina me liga digo que sim seja ao que for. Quando atendo já estou a calçar os sapatos, só não venho se tiver um concerto e se for o aniversário de um dos meus filhos», explica a cantora. «Mas quando ela me ligou e contou a história desta mulher, fez-me pensar nos privilégios que temos. É preciso fazer a nossa parte, não basta partilhar posts, é preciso sair à rua, comparecer. Chamar as pessoas apoiar este fundo, esse é um propósito de ser artista e mulher».
A música que Deslandes dedica a Ghafari, Eco, lançada recentemente no canal Colours, não poderia ser mais adequada. A ativista, a quem já fora dada uma cópia da letra, sorri entusiasmada enquanto se ouve cantar o refrão «do silêncio eu faço um grito», antes de começar à conversa com Catarina Furtado.
Ao contrário do habitual nos eventos da Corações com Coroa, este não foi aberto, mas por convite, para garantir a sua segurança, explica a apresentadora. Já Ghafari, frequentemente menciona a ameaça do longo braço dos serviços secretos paquistaneses, ou ISI, que são acusados de serem os principais financiadores por trás dos talibãs – a ativista descreveu o grupo fundamentalista como uma «invasão pelas secretas paquistanesas» e certamente não verão Ghafari com bons olhos, sendo uma política que estudou na Universidade Panjab, na Índia, um país que é o maior rival do Paquistão. E quando, ainda por cima, Ghafari pede abertamente sanções e bloqueios contra o país vizinho, acusando-o de alimentar o terror.
Talvez só isso crie as condições para um dia uma geração em fuga poder estar segura, considera a ativista, que não hesita em desafiar os talibãs encontrar-se com ela, uma mulher, na mesa de negociações, perante uma ovação do público.
Mas ao falar nessas saudades de casa, nesse desespero por voltar à sua cidade, a emoção surge à flor da pele. «Sinto falta do sol, sinto falta do vento, sinto falta de tudo. Sinto falta da cozinha, da simpatia de Cabul, do som da música a sair dos cafés, de ver mulheres lindas a conduzir carros grandes na cidade, vestida com vestidos tão bonitos», enumera, entusiasmada, antes da sua voz falhar por momentos. «Tenho saudades da campa do meu pai, sinto mesmo falta. Quando estava em Cabul, o cemitério ficava mesmo perto, por isso quando sentia falta dele ia lá e falava com ele», continua Ghafari. «No outro dia sonhei que estava com o meu pai, que estava tudo tão bem».
Ghafari não é a única refugiada com saudades de casa, é mesmo um mal generalizado. Muitos outros, pior ainda, nem sequer conseguem fugir da sua terra, alguns ficando presos em campos de refugiados no Paquistão, outros nem conseguem passar nos checkpoints dos talibãs para lá chegar. Entretanto, muitos países ocidentais continuam a ignorar a tragédia – no caso de Portugal, até agora apenas se disponibilizou a receber algumas centenas de refugiados afegãos.
«Em geral, a comunidade internacional está muito passiva. Tem feito muito menos do que poderia fazer», admitiu Catarina Furtado, que conhece bem a realidade terrível dos campos de refugiados, dos tempos em que produziu o programa de Príncipes do Nada.
«Quando se fala que há uma crise de refugiados, há também uma crise de soluções e respostas. E elas existem. É evidente que temos de aplaudir Portugal por acolher refugiados. Não são muitos, é verdade», considera a apresentadora, pedindo que no que, no que toca a esse assunto, se oiça mais a voz de mulheres corajosas como Ghafari. «Porque ela não tem medo de morrer. Ela tem muita urgência em salvar as outras mulheres».