As peças de mobiliário parecem ocupar o seu lugar natural, como se estivessem há muito habituadas a este chão e a estas paredes. Ninguém diria que Maria João Avillez e o marido, o empresário Francisco Van Zeller, se mudaram há pouco tempo para este apartamento no centro de Lisboa. Na sala de jantar pontifica uma natureza-morta portuguesa do século XVII. Noutras zonas da casa, a mobília tradicional, com marcas de uso, confortável, combina harmoniosamente com pinturas, aguarelas, serigrafias e desenhos de artistas modernos consagrados.
Sentados no sofá, é impossível não reparar nas dezenas de fotografias emolduradas que quase tapam os livros numa estante próxima. Uma delas, a preto e branco, destaca-se pela dimensão generosa e posição proeminente. «É o meu pai com o Salazar. E está aqui muito bem», comenta a anfitriã. Mas a maioria dos instantâneos mostra Maria João Avillez com personalidades das mais diferentes áreas: Júlio Pomar, Maria Helena Vieira da Silva, Raúl Solnado, Nicolau Breyner e Herman José, Luís Miguel Cintra, Amélia Rey Colaço, Amália Rodrigues, Charles Aznavour, Maria Bethânia, Mario Vargas Llosa… «Isto vale ouro para mim», comenta. «Entrevistei gente do mais maravilhoso, do mais criativo, do mais talentoso. Escritores, pintores, bailarinos. É um registo completamente diferente. Enquanto na política faço mais de advogada do diabo, com a arte e a cultura há um diálogo mais musical. A pena que eu tenho que só me vejam como jornalista política».
Depois há, em lugar de destaque, à altura dos olhos, o «friso das pessoas com quem mais entrosei», como lhe chama: Cavaco Silva, Passos Coelho, Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal. Falaremos muito sobre eles durante esta conversa que tem como ponto de partida o livro As Sete Estações da Democracia – Sete Testemunhos decisivos (ed. D. Quixote), com prefácio de Carlos Gaspar.
Através de sete entrevistas com personalidades de alto nível, Maria João Avillez procurou analisar sete protagonistas políticos das últimas quatro décadas e o seu legado. O resultado é uma série de retratos pintados com olho clínico por analistas exímios da figura e do período em questão. Em conjunto, oferecem um balanço originalíssimo, penetrante – e nem sempre otimista – da vida política do 25 de Abril à atualidade, que a jornalista conhece como muito poucos.
Na introdução, explica o que esteve na génese deste livro: «Ocorreu-me subitamente discorrer sobre os ‘ismos’». Dito assim – ‘ismos’ – parece uma coisa abstrata. Mas depois acabamos sempre a falar de pessoas e das suas personalidades.
Não é abstrato na medida em que cada ‘ismo’ se refere a um político que exerceu o poder. E o meu ponto de partida era saber se o ‘ismo’ [passismo, costismo, marcelismo…] tinha sustentabilidade, se tinha razão de ser. Como estávamos em pandemia e eu estava mais isolada com o meu marido na quinta, com mais tempo para pensar, com outra maneira de pensar, criou-se um ambiente propício à criação de algumas ideias. Primeiro dos ‘ismos’, e depois dos cicerones para fazerem uma visita guiada.
Mas não começou logo como livro, pois não?
Não, comecei com uma ideia para o jornal Público. E depois foi um bocadinho como as cerejas. ‘Vamos fazer outro ismo?’ E o Público dizia que sim. ‘E agora outro?’, e o Público voltava a dizer que sim. Até que chegámos ao livro, de que eu gostei muito, porque a leitura toda junta é muito mais rica do que a leitura intermitente. E permite um olhar que, não sendo de modo algum – vou dizer isto três vezes: de modo algum, de modo algum, de modo algum! – o de uma historiadora, mas sim de uma observadora, testemunha, oferece uma leitura muito mais interessante destes quarenta e tal anos.
Permite colocar cada um destes momentos da democracia, e os seus protagonistas, em perspetiva?
Exatamente. E obter-se uma espécie de fio condutor que depois chega ao António Costa, que quebra com uma data de coisas. E percebe-se que até lá a geringonça nunca poderia ter existido.
Um fio condutor que nalguns momentos é interrompido… mas já falaremos sobre isso. A entrevista a José Miguel Júdice sobre António Costa é a penúltima do livro, mas foi a primeira que fez, não foi?
Como inicialmente não estava para ser um livro, nem uma série, não obedeceu a uma cronologia. Mesmo assim, julgo que se fica com uma noção de conjunto.
Vou pedir-lhe que recuemos a um dos momentos decisivos destas quatro décadas, à segunda volta das presidenciais, entre Mário Soares e Freitas do Amaral, em 1986. Era amiga dos dois?
Dava-me – e dou-me – com toda a gente. Como cidadã tenho as minhas simpatias. Na altura tinha incomensuravelmente mais simpatia pelo Dr. Mário Soares.
É curioso, porque tendemos a vê-la como uma pessoa com mais simpatia pela direita…
Sou uma pessoa de direita.
E aí houve um confronto direita-esquerda.
Mas eu gostei que tivesse ganho o Dr. Mário Soares. E, como Presidente, ele provou que a minha intuição estava certíssima. O facto de ser de direita nunca me impediu de ter profundas simpatias humanas, ou mesmo sintonias intelectuais, civilizacionais, culturais, com pessoas de esquerda. Nunca vivi acantonada. Tanto eu como o meu marido somos muito transversais nas nossas relações humanas, e os nossos amigos proveem de várias fontes ideológicas, sociais, etc. Se as paredes da casa do Campo Grande [de onde a família saiu há pouco tempo] falassem, dariam um belo livro de memórias.
Por causa das pessoas que passaram por lá?
Sim, sim. Estou a lembrar-me agora, porque vem aí o 25 de Novembro: a quantidade de jornalistas estrangeiros, correspondentes que estavam cá, do Le Monde, do Nouvel Observateur, do L’Express, do Figaro, e a quantidade de serões que houve em nossa casa. Era muito interessante ver como eles olhavam para nós. Estavam obviamente muito excitados porque, depois daquilo que consideravam uma ditadura feroz – mais feroz do que foi –, queriam que houvesse uma revolução (tirando talvez o do L’Express e o do Figaro).
E eu não queria nada que houvesse uma revolução, queria que houvesse um Estado de Direito, uma democracia pluripartidária de modelo ocidental. Mas esses ‘choques’ nunca impediram conversas muito interessantes com esse grupo de jornalistas – e com os meus colegas portugueses, evidentemente.
Como é que esses jornalistas estrangeiros iam parar a sua casa?
Eu andava em todo o lado, falava com eles, e o Expresso também era uma coisa quase mítica para eles. Era o sítio onde se tinha de ir, o jornal que se tinha de ler, o jornal que sabia tudo antes do tempo. Aliás, hoje pouca gente se lembra, mas o Expresso, durante o período quente revolucionário, teve duas edições semanais.
Havia demasiadas notícias só para uma edição?
O semanário já não dava vazão. Foi uma ideia fantástica. Esses jornalistas iam lá, começámos a aproximar-nos, e fizeram-se belíssimas amizades.
Tomei a liberdade de bisbilhotar um pouco as fotografias que tem nas molduras e identifiquei uma ou outra que aparecem aqui no livro. Estou a ver ali Cunhal, Soares, Cavaco…
Aquele é o friso das pessoas com quem mais entrosei. O Professor Cavaco, o Dr. Passos Coelho, o Dr. Sá Carneiro, o Dr. Mário Soares e o Dr. Álvaro Cunhal.
Personalidades muito diferentes entre si.
E em posições muito diferentes, evidentemente, mas não é por acaso que estão ali os cinco.
No caso de Sá Carneiro conta uma pequena história. Ele tinha perdido de vista a Snu e estava um bocadinho…
Um bocadinho inquieto. Ele estava a viver uma fase dificílima, a campanha do general Soares Carneiro não estava a correr bem, e para ele o não correr bem não era só que o seu candidato perdesse: era que o General Ramalho Eanes ganhasse. Isso para ele era impossível.
Aliás, ia-se embora da política – disse-mo diante do meu marido, no hotel do Bussaco, onde ele também estava a jantar com a Snu, noutra mesa. Vivia aquele momento de tensão porque temia que o seu candidato não ganhasse e isso significaria que ia ganhar uma pessoa que ele tinha quase como inimigo. Além disso, as campanhas são sempre fatigantes, mais do que o cidadão comum se apercebe.
Ele só participava ao fim de semana, porque considerava que se descesse ao terreno diariamente estaria a impedir a normal condução do país como primeiro-ministro. Mas houve uns feriados, e acabou por estar presente nalguns comícios. Nesse dia, lembro-me muito bem, foi no palácio D. Manuel, em Évora, dia 1 de dezembro…
Três dias antes do acidente de Camarate.
Ele estava inquieto e a única coisa que talvez o consolasse era se ao menos a Snu estivesse sentada ao pé dele. Ele tinha alguma proximidade comigo para me dizer: ‘Veja se me descobre aí a Snu’. Eu descobri-a e ele ficou um bocadinho mais sereno.
Depois disso ainda o vi creio que em Faro – quem sabe isso muito bem é a Conceição Monteiro [então secretária de Sá Carneiro], que é não só uma queridíssima amiga como uma agenda viva. No próprio dia em que ele morreu, 4 de dezembro de 1980, também o vi. Houve uma conferência de imprensa de manhã. Mas aí já não falámos, foi um aceno de longe, ele estava com pressa, ia para o Porto, nós já sabíamos tudo, não havia muito a dizer.
Sá Carneiro foi um epifenómeno devido à sua morte prematura e totalmente inesperada. Mas então ele sairia da política na mesma?
Qualquer pessoa lhe dirá isso. Não queria ficar como primeiro-ministro com o General Eanes na Presidência da República. Foi historicamente um epifenómeno, porque governou pouco tempo. Só que o epifenómeno foi fortíssimo. Ele era um combatente, meteu-se na política porque acreditava que era possível mudar, ou pelo menos começar a mudar, o regime por dentro.
Fundou a ala liberal com o Zé Pedro Pinto Leite e o Francisco Balsemão. Era advogado no Porto, onde tinha a família, e vinha para Lisboa para o Parlamento, desinstalou-se, acreditou, arriscou, e depois fundou um partido que teve a importância que teve na sociedade portuguesa e na evolução positiva do país.
Criticavam-no muito por ele ser de tudo ou nada, mas isto é a maneira facilitista e intencionalmente simplificadora de o reduzir a preto e a branco. Ele agia assim porque não contemporizava com as pessoas que ou não queriam desenvolver o país, ou condescendiam demasiado com os restos da revolução. Ele era um civilista, e queria a mudança que foi prometida, para um Estado de Direito e uma democracia civilista. E o Pedro Santana Lopes no livro torna isso muito claro, é uma excelente entrevista dele.
Também há quem diga que devido à sua morte prematura Sá Carneiro foi empolado e mitificado. Concorda?
Isso com certeza. E os portugueses são dados a mitos, são fadistas – com todo o apreço que eu tenho pelo fado. Uma pessoa que lutava com aquele empenho e aquela energia, que tinha conhecido uma paixão também sem medida, e morre na flor da idade com a sua amada naquela circunstância, na véspera de talvez perder um combate decisivo… São todos os ingredientes da tragédia grega.
Notei que as fotografias mais antigas que aparecem aqui no livro são em geral em ambientes mais descontraídos, enquanto as fotografias mais recentes (com Passos Coelho e com António Costa) são em ambientes mais impessoais.
As coisas são mais simples do que parecem. Era o que eu tinha à mão e calhou essas duas serem em entrevistas, ao António Costa para o Diário Económico e ao Pedro Passos Coelho para o Público.
Essa diferença não reflete uma mudança na forma como os jornalistas se relacionam com os políticos?
Não, os retratos não têm nenhuma segunda leitura. Terei outros, mas não estão arquivados como deve ser. Tenho mais depressa os papéis arquivados que as fotografias.
Numa delas vemos Soares a comer castanhas na rua, ao seu lado. Com Marcelo também seria possível uma fotografia do género, mas com Cavaco seria mais difícil, não?
Essa fotografia foi em 85. Evidentemente que o Professor Cavaco tem uma imagem pública de formalismo, mas já me aconteceu ‘n’ vezes ter estado com ele em ambientes mais familiares, ou sem serem eminentemente políticos, em que não havia nada desse formalismo. Havia um ambiente muito distendido, uma conversa muito fluida, muito interessante, na casa dele do Algarve, na casa dele de Lisboa ou na nossa do Campo Grande, etc. Poderia ser possível também fotografias informais.
Há uma ausência notória no livro: o socratismo. Pode ser forçado falar em barrosismo ou santanismo, mas o socratismo está consagrado. Não lhe interessava analisar esse período?
Tentei com três cicerones, e disseram que não estavam interessados. E eu para fazer com uma pessoa qualquer, que não fosse um bom leitor do fenómeno político ou da nossa história recente, não queria. Experimentei mesmo quase ao mais alto nível, mas não encontrei eco.
Como o livro se chama Sete Estações da Democracia, ainda pensei que podia ter considerado esse um ‘ponto baixo’ da nossa democracia e por isso não tinha querido tratá-lo.
Não. Tentei, convidei três pessoas. Uma disse-me que não era capaz e as outras duas que não estava interessadas, e eu tive que respeitar.
Era importante para si que houvesse uma certa empatia entre o entrevistado e a figura que estavam a analisar? No caso de Santana Lopes com Sá Carneiro, ou do Sérgio Sousa Pinto com Soares, isso é mais evidente.
Não. O que contou sempre mais que tudo foi o conhecimento, a lucidez e a inteligência da pessoa para analisar. O Pedro Santana Lopes era novíssimo quando o Sá Carneiro lhe deitou a mão, e permaneceu um fiel até à sua morte. Era uma pessoa que tinha acompanhado tudo. E o Sérgio Sousa Pinto, pelo seu interesse, curiosidade, gosto pelo personagem Soares, etc., também me dava a certeza de uma ótima visita guiada.
Aconteceu muito a análise dos entrevistados não coincidir com a sua?
Algumas vezes. Como jornalista, o que faço é colocar questões que encerram em si a discordância de uma ideia ou de uma posição. Pontualmente, discordei de todos, mas se os convidei era para eles dizerem o que pensavam. Eu fazia as perguntas que achava adequadas para ajudar à visita guiada.
Há um bocado estava a falar de Eanes e Sá Carneiro. Os portugueses oscilam entre as figuras mais autoritárias – um Eanes, um Cavaco, um Passos Coelho…
Não, Passos Coelho não é autoritário. Percebo o que me quer dizer, mas não colocaria na mesma categoria. Acho que gostam.
Mas ao mesmo tempo também gostam do Mário Soares…
E do Marcelo. É uma coisa interessante. E gostam de ter de diferentes proveniências políticas e ideológicas [em Belém e S. Bento]. O Dr. Soares dizia sempre: ‘Nunca pôr os ovos todos na mesma cesta’ e os portugueses devem tê-lo ouvido muito bem.
José Miguel Júdice diz sobre António Costa: «Nunca o PS teve um político tão à esquerda a chefiar o Governo». E depois temos um Presidente da direita. Quem olhasse de fora para Portugal, se tivesse em conta só o Governo, diria: ‘As pessoas votam à esquerda’. Se tivesse em conta só o Presidente, diria: ‘Votam esmagadoramente à direita’.
Acho que as pessoas votam no equilíbrio. O Zé Miguel diz isso, que António Costa é o político mais à esquerda a chefiar o Governo, e tem razão porque não houve ninguém antes dele que deitasse abaixo um tabu de 40 anos. Mas eu acrescentaria que, apesar de ter feito esses acordos com a extrema-esquerda radical, António Costa é um social-democrata.
Um social-democrata um bocadinho mais chegado à esquerda. Não é aquilo a que eu chamaria um esquerdista. Permitiu ambiguidades a seu respeito por ter feito a geringonça. Mas repare: ele é muito firme na nossa pertença à União Europeia, à NATO, aos nossos compromissos em política externa…
A geringonça é fruto das circunstâncias e da sua própria sobrevivência política.
É fruto da circunstância de António Costa ter querido ir para o Governo. Ele detestou tanto que Passos Coelho e a coligação PSD-CDS tivessem ganho de novo que levou o seu primeiro Governo (e ainda este de vez em quando) a construir uma narrativa totalmente ficcional e inverosímil sobre o que foi o passismo. E detestou tanto que a coligação tivesse ganho de novo que pensou: ‘Não quero isto, é a minha vez’. E deitou esse muro abaixo.
Quando diz ‘detestou tanto’ é porque sabe que ele intimamente sentia isso ou é uma dedução que faz das decisões e atitudes de António Costa?
A vitória da coligação era a maior derrota que o PS podia ter. O PS tinha levado quatro anos a desfazer diariamente qualquer medida, qualquer decisão que viesse dali. Quatro anos a dizer que os portugueses tinham sido ultra maltratados, tratados com indignidade, etc., etc., etc. E de repente são esses mesmos portugueses – ou uma grande parte deles – que votam outra vez naquilo que António Costa consideraria os ‘culpados’. A única maneira de sair dali era governar com a legitimidade parlamentar que tinha.
Não parece fácil situar politicamente António Costa. Se por um lado formou a geringonça, por outro lado tem ou teve ministros com grande peso que poderiam perfeitamente encaixar num governo social-democrata – estou a pensar em Mário Centeno, que não fez nada de muito diferente do que faria um ministro das Finanças do PSD, ou em Pedro Siza Vieira.
António Costa é um pragmático. Escolhe pragmaticamente a pessoa que lhe cumpre aquela função. Se é um bocadinho mais à esquerda ou menos à esquerda, mais moderado ou menos moderado, pode ser secundário. Agora, não me parece que tenha sido muito feliz com os governos…
O facto é que, apesar de todos os casos, o primeiro-ministro conseguiu quase sempre passar incólume…
É um grande jogador político. É como se a política fosse um tabuleiro e ele está a congeminar onde vai pôr a peça A, B, C, D… o que vai fazer com elas, quais trocam com quais, por que caminho vai. É um grande jogador.
E como os jogadores – de póquer, por exemplo – parece não deixar que os sentimentos interfiram com as suas decisões.
Aí não seria tão taxativa. Ele é capaz de grandes irritações, é capaz de ser impiedoso com os adversários, é capaz de se emocionar. O que sobressai é que é um grande jogador. Isto não é pejorativo ou elogioso – é o que é. Com vantagens e desvantagens. Acho que quando ele acordar com um PS completamente desviado da sua natureza estrutural – a natureza com que o Dr. Mário Soares o criou – talvez não goste. Ou então não chega a ver isso porque já estará fora do país.
Acha que Costa quer ir para um cargo internacional?
Acho que se puder vai. Tem tudo para se mexer bem em Bruxelas. Além disso, o poder e a natureza humana, juntos, são uma coisa ultra cansativa e desgastante, exigem lidar permanentemente com ambições, pequenas intrigas, pequenas traições. Se alguém me vier dizer amanhã que Costa está farto, eu acreditarei. São muitos anos, há um desgaste evidente, que se traduz num Governo que é mau.
Devia ter havido uma remodelação há meses – e ao adiar essa remodelação, ele sinalizou que talvez não tivesse força dentro do seu partido para a fazer. O PS está mais dividido que o comum dos portugueses pode crer, António Costa está muito cansado e começam a destapar-se coisas muito pesadas.
Como assim, ‘coisas muito pesadas’?
Por exemplo, está cada vez mais a descoberto que o índice de mortalidade durante a pandemia foi maior não por razões estritas do vírus, mas por atrasos de consultas, de intervenções, de exames, de acompanhamento. Não se cuidou e agora começa a ser impossível esconder que o Serviço Nacional de Saúde está nas lonas, sem capacidade de resposta.
As demissões dos médicos em diversos hospitais não são só por causa de questões salariais, há uma parte que é por desespero, por não poder contemporizar com aparelhos que não funcionam, com o enorme desmazelo, com a desorganização. Começa a descobrir-se que o legado de António Costa não é tão cor-de-rosa, tão harmónico como ele sempre fez crer que era. Ele e os seus dois acólitos à esquerda.
Diz no livro que há um político que a impressionou.
Sim, Pedro Passos Coelho.
Impressionou-a porquê? É alguma coisa na presença dele ou impressionou-a o que ele fez?
Impressionou-me num almoço que tive com ele, convocado por uma amiga comum. Percebi que havia ali qualquer coisa de interessante, de singular, e de seriedade intelectual e moral. E depois, como primeiro-ministro, percebi que se estava perante um solitário completamente determinado a tirar Portugal daquele infame buraco. E, ao mesmo tempo que ia equilibrando as contas, conseguia impor-se como uma pessoa corajosa, que enfrentava a hostilidade geral – do país, dos media, dos outros partidos… Havia uma manipulação permanente e muito bem urdida, as coisas eram sempre deturpadas e estava ali um resistente. E um resistente solitário.
Mas a ideia que muita gente tem é que ele tinha quase um prazer sádico em castigar as pessoas…
Isso deve-se a uma expressão, talvez menos feliz, e que foi completamente descontextualizada: ‘ir além da troika’. O que ele queria dizer era reformar o país além dos compromissos que tinha com a troika. Isto, que qualquer pessoa minimamente inteligente percebe o que quer dizer, foi transformado numa arma de arremesso e não houve um minuto em que alguém tivesse um mínimo de curiosidade ou de interesse em saber o que estava a acontecer, porque as pessoas estavam manipuladas para dizer mal.
Mas o próprio Cavaco Silva terá contribuído para esse ambiente, quando se queixou que a reforma não lhe chegava para pagar as despesas.
Não se pode comparar uma frase menos feliz do Presidente da República, que estaria a pensar não só na reforma dele, mas na reforma de todos os portugueses, com ataques soezes permanentes do Partido Socialista e da extrema-esquerda. E do lado de lá havia um cavalheiro, com o seu Governo e a sua coligação, a levar a água ao seu moinho. Dispensou-se a última tranche do empréstimo, não houve segundo resgate e ele ganhou as eleições. Estas três coisas são indesmentíveis.
Manteve contacto com ele depois de sair de primeiro-ministro?
Mantive. Inclusivamente para lhe perguntar uma ou duas coisas para este livro. É uma pessoa que vejo de vez em quando, alguém que faz a maior das faltas à política e que uniria – assim [estala os dedos] – todo o espaço à direita do Partido Socialista.
Ele tem de alguma forma o sentimento de que foi maltratado, injustiçado, de que o país não reconheceu o seu trabalho?
Não fala nisso. É uma pessoa que não exibe estados de alma, nunca lhe ouvi um queixume. Deve achar que faz parte da política, que ‘quem anda à chuva molha-se’, não sei… O que eu vejo é a emitir opiniões discordantes sobre uma quantidade de coisas. Mas não é de maneira nenhuma um ressentido e tinha tudo para ser. Conheço muitos portugueses ressentidos sem nenhuma razão para o serem, e este que tinha toda a justificação para ser um ressentido não é. É alguém que admiro muito na política.
Para analisar esse período do passismo escolheu uma figura moderada do PS. Foi para ter algum distanciamento?
Sim, embora houvesse pessoas no PSD que poderiam ter esse distanciamento, e dou já o exemplo da excelente entrevista que me deu Durão Barroso sobre Cavaco Silva. Não é que estivesse em risco a independência. É que acho Francisco Assis uma pessoa intelectualmente tão séria quanto interessante. E, quando lhe sugeri, ele veio um pouco ao encontro daquilo que eu queria, que era alguém do outro lado do espectro partidário abrir uma janela e dizer o que tinha visto durante quatro anos. Havia poucos socialistas que o tivessem feito na altura… Ele teve a hombridade e a independência de espírito para o fazer.
Falámos do equilíbrio de forças entre esquerda e direita. Acha que o facto de o Presidente ser de direita pode prejudicar o PSD? Que com Marcelo em Belém os eleitores tendem a eleger um Governo mais à esquerda para manter os pratos da balança equilibrados?
Os eleitores não pensam todos da mesma maneira e mesmo à direita, ou centro-direita muitos viram Marcelo como um Presidente muito ‘friendly’ do Governo…
Demasiado friendly?
Sim, amparando até alguns lances que poderiam não ter sido objeto de tanta benevolência. No segundo mandato o Presidente já pode dar-se ao luxo de ser mais ele – como todos os outros foram – e de pensar mais nele do que nos votos de que precisa para ser reeleito. E este segundo mandato está a ser diferente, o Presidente tem sido menos benevolente, está a levantar mais a voz.
Ainda assim, não julgo que, para um eleitor de centro-direita, possa substituir com vantagem o voto no PSD [nas legislativas]. Acho que o país merecia melhor do que tem neste momento. E isso só pode vir do outro lado do espectro político. E, no outro lado, só pode vir do PSD. O PSD tem de ser o maestro e o autor da partitura. E depois convida para tocar os elementos da orquestra e os solistas que quiser.
Em 1982 entrevistou Marcelo Rebelo de Sousa, que fazia então parte do governo de Balsemão e «queria que o levassem a sério». Falou em «missão» e em «sacrifício», e a Maria João Avillez comenta: «Não acreditei em nada, mas parece que o país o levou tão a sério que um dia o conduziu pela mão dos votos até ao belo palácio cor de rosa onde está hoje». Parece aqui implícito que tem dificuldade em levar Marcelo a sério.
Pelo contrário: levo o Presidente da República muito a sério. Levo, levo… Tenho um lado institucionalista muito forte, sou como a minha irmã Maria José [Nogueira Pinto], respeito as instituições, e sofro quando as vejo mal de saúde. Mas respeitar não pode excluir a discordância.
Após aquele primeiro mandato meio inócuo, populista e quase umbilicalmente ligado ao Governo, onde infantilizou os portugueses com selfies e excesso de ‘proximidade’, em vez de os mobilizar, é neste segundo ato da história presidencial que tudo se decidirá sobre o legado presidencial. É sobre o modo como o Presidente gerir esta crise, a forma de nela intervir, o que vier a decidir, o que irá exigir a um futuro Governo, que a história se virá a pronunciar. E sabe porque posso falar nisto?
Por conhecer muito bem Marcelo e saber como ele se preocupa com o modo como será lembrado e que leitura política será feita da sua passagem por Belém – e não foram dois dias. Nesse sentido, esta sua primeira crise política confere-lhe a liberdade de escolha: o que vier a decidir definirá os seus mandatos. Acho que melhor que ninguém ele sabe isso. Vivemos tempos politicamente tão perigosos quanto interessantes, agora com o Presidente ao leme. Uma estreia, por outras palavras.
Falou nas selfies e na proximidade excessiva. Interpretei essa mudança de estilo na Presidência como uma demarcação face a Cavaco, que era mais distante, não saía do Palácio…
Cavaco não é distante. É um tímido introvertido. Isso faz com que ele se retraia e pareça mais formal do que é. Mas é evidente que não há dois seres com funções públicas mais antagónicos. Qualquer português dirá aquilo que você diz: que um é excessivamente formal e o outro é muito amigo, e gostam mais do amigo. Mas eu gostaria que Marcelo tivesse mais gravitas, que é uma coisa que Cavaco tinha, talvez em excesso. Acho que tem de se fazer um bocadinho de cerimónia com os cargos.
O lado ritual é importante?
Sim, sim. Os rituais de poder da República. Não quer dizer que seja nem fausto, nem luxo, tem a ver com um certo aprumo e gravitas.
Falemos do PSD. Acha normal num momento decisivo o partido estar tão dividido?
O partido está dividido porque há um combate pela liderança que foi convocado pelo atual secretário-geral. Foi o Dr. Rui Rio que o convocou, não foram uns assaltantes que derrubaram as portas da rua de S. Caetano à Lapa, espetaram uma arma contra o peito do Dr. Rui Rio e disseram: ‘Queremos concorrer à liderança’. É um combate aberto, completamente legítimo.
Agora, acho é que é cedo para as eleições. Escrevi na semana passada que eleições agora é como comer fruta antes do tempo. Está verde. Não era ainda o momento para haver eleições. Tenho medo que os resultados venham a provar que pode ficar tudo na mesma, em circunstâncias mais difíceis e piores. [pausa] Não se pode estar mais pessimista…
As sondagens apontam para uma vantagem confortável do PS. Mas ainda nem se sabe qual vai ser o líder do PSD que vai a eleições…
As sondagens só podem ser levadas a sério quando se souber quem é o líder do PSD. E depois nem sempre as sondagens têm acertado: a noite das autárquicas mostrou a que ponto são falíveis. Houve uma figura proeminente do PSD que na quinta-feira, antes do domingo eleitoral autárquico, me disse: ‘O Moedas está mesmo a chegar ao Fernando Medina’. E eu perguntei: ‘Como assim, se estão a dez pontos?’. ‘Isso são as sondagens. Nós temos os nossos estudos internos do PSD’. E eu: ‘Está-me a dizer que o Moedas pode ganhar?’. ‘Estou a dizer que há uma forte probabilidade’. Essa fica para as minhas memórias. Nunca me vou esquecer.
Acha que tal como Moedas estava muito atrás nas sondagens, o PSD…
Não, não, não… Sou completamente contra esse tipo de comparação. Uma coisa é autárquicas, outra legislativas.
Não pode ser um balão de ensaio?
São eleições diferentes e circunstâncias diferentes. Recuso-me a fazer comparações, a falar em balões de ensaio ou em repetição dos cenários. Não é uma câmara nem uma capital, é o país. Trata-se de escolher mudar ou não mudar, ter outro tipo de Governo ou continuar com o mesmo tipo de Governo que conhecemos há sete anos. Os portugueses querem mais do mesmo ou querem outra coisa?
O chumbo do orçamento mostrou que a solução da esquerda estava esgotada?
Acho que sim. Aí falamos outra vez do jogador António Costa. Fez absolutamente o que quis do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, que são partidos que defendem a Venezuela ou a Coreia do Norte, que desprezam a NATO, que não queriam a moeda única, que dizem que não lhes interessa nada a Europa, e foram uns gatinhos suaves, pendurados na lapela do casaco de António Costa…
Retraíram as garras?
Esconderam as garras, aceitaram tudo, e nem sequer refilaram por não terem sido executadas algumas das medidas que eles tinham proposto e constavam do orçamento. António Costa fez o que quis deles. Grande jogador.
Rio ou Rangel, quem acha que tem mais hipóteses de ganhar?
A política não é um totobola. Não posso estar aqui como se estivesse a dar um palpite para um dérbi Sporting-Benfica. A política não é um desafio de futebol, é o que os portugueses decidirem. Rui Rio esteve no palco como um dos grandes protagonistas durante três anos. Paulo Rangel não esteve tão presente, mas foi secretário de Estado da Justiça, são conhecidas as suas ideias. Os portugueses têm instrumentos para os guiar na sua opção de voto.
Tem preferência por algum?
Os jornalistas não têm preferências… [risos]
E qual dos dois na sua opinião daria melhor primeiro-ministro?
Paulo Rangel percebeu uma coisa que é decisiva: as reformas de que o país precisa não se fazem com o PS mas contra o PS. Rui Rio talvez não tenha percebido isso, ou talvez não concorde com isso, visto que durante estes anos se mostrou disponível para reformar muita coisa, assim tivesse o PS querido. Paulo Rangel percebeu que o que há para fazer não pode ser com o PS mas contra o PS.
Disse-me que continua a falar com Passos Coelhos. E com outros políticos, manteve o contacto depois de saírem de funções?
Sim, porque mesmo para as minhas crónicas, para os comentários, para as entrevistas, para as reportagens políticas, para retratos, tenho que falar com eles. ‘Avive-me esta memória’, ‘Esta história ocorreu assim?’, ‘Estou certa nesta análise?’, ‘Foi isto que aconteceu?’. Nunca interrompi a minha proximidade. Com a esquerda e com a direita, falo com toda a gente.
E eles são diferentes quando saem do poder, quando deixam de ter essas responsabilidades?
Não. No poder estão mais cansados, só. Não são nada diferentes. São as mesmas pessoas.