Filho e sobrinho de diplomatas, Bernardo Futscher Pereira seguiu a vocação familiar. Nascido em Lisboa em 1959, «desde pequenino que ouvia as conversas, e as histórias suscitavam-me uma certa curiosidade», recorda. Quando tinha 13 anos visitou o Malawi – um país pouco maior que Portugal, dominado por um enorme lago e encravado entre a Zâmbia, Moçambique e a Tanzânia –, onde o seu pai, Vasco Futscher Pereira, era então embaixador.
Além do Malawi, essa viagem levou-o ao parque da Gorongosa e à cidade da Beira, a segunda maior de Moçambique. «Estava cheia de militares, só se via tropa». Ainda assim, só mais tarde, com a revolução de 25 de Abril de 1974, adquiriu consciência política.
Paralelamente à carreira diplomática – atualmente é embaixador em Rabat –, tem-se dedicado a escrever a história da diplomacia durante o salazarismo. O primeiro volume, A Diplomacia de Salazar (1932-1949), foi publicado em 2013; em 2017, saiu o segundo volume, O Crepúsculo do Colonialismo – A diplomacia do Estado Novo (1949-1961); e agora chega-nos (sempre pela D. Quixote) a terceira parte deste tríptico, Orgulhosamente Sós – A diplomacia em guerra (1962-1974), que descreve a renitência do regime em abdicar de ser uma potência colonial.
São anos ricos em acontecimentos, com o início das hostilidades na Guiné e em Moçambique, o assassínio de Humberto Delgado, a pressão internacional exercida pelos Estados Unidos da América e a ONU para que Portugal abra mão das colónias, a chegada de Marcelo Caetano ao poder, a construção de Cabora Bassa, a Operação Mar Verde e o massacre de Wiriyamu.
Ao nível da diplomacia, o regime adoptava uma espécie de dupla face. «Existe uma luta diplomática que é assumida e depois existe uma quantidade de coisas secretas, quer no plano diplomático, quer no plano do que se pode chamar as operações clandestinas da PIDE», considera o autor. Ou seja, seria suposto que muita da informação que se encontra neste livro nunca tivesse visto a luz do dia.
Este volume cobre um período que começa em 1962, o ano em que a Argélia se torna independente. Por esta altura as colónias portuguesas começavam a tornar-se uma espécie de anacronismo?
Talvez mesmo antes. O que eu digo no livro anterior [Crepúsculo do colonialismo] é que no princípio dos anos 60 o anticolonialismo já triunfara completamente no plano ideológico. É certo que havia ainda processos de descolonização em curso, e nessa medida não era anormal que um país ainda tivesse colónias. O que já era anormal era uma atitude intransigente relativamente a qualquer processo de descolonização. Nesse aspeto acho que sim, que as colónias eram um anacronismo. A Argélia torna-se independente em 1962, é um processo muito doloroso, há uma guerra, e a partir desse momento não há nenhum país, salvo Portugal, que continue a defender com a mesma intransigência os seus impérios coloniais.
Quando hoje dizemos que a descolonização por aquela altura era inevitável, até que ponto não estamos a pensar retrospetivamente, já com o conhecimento de onde aquilo tudo ia levar? Se tentarmos colocar-nos na perspetiva da época, as coisas não estavam ainda em aberto?
Acho que não. A própria história da nossa Guerra Colonial mostra que era possível resistir durante muito tempo. Mas a experiência de outros países, nomeadamente da França e do Reino Unido, também mostra que era possível fazer as coisas de outra maneira. Agora, penso que em 1962 já havia um consenso internacional de que os países tinham direito à autodeterminação e de que o colonialismo tinha os dias contados. Claro que havia resistência da nossa parte, e também doutros países. Mas acho que do ponto de vista ideológico era um movimento que já tinha triunfado. Nessa medida, a opção por resistir a qualquer custo já era uma opção fora do tempo. Até porque o nível de hostilidade nas Nações Unidas, em 1961, é muito alto.
Tendemos a ver as coisas como estando de um lado os ‘progressistas’, a favor da autodeterminação dos povos, e do outro os retrógrados, ou até reacionários, que queriam manter as colónias. Mas até que ponto essas condenações, essas pressões para que Portugal deixasse de ser um império colonial não resultavam de calculismo ou até vontade de enfraquecer o país ou o regime?
Repare no seguinte: de uma forma geral, na década de 1950 a direita está no poder nos EUA e no Reino Unido; em 1960 Kennedy é eleito Presidente. Quando ele era senador, uma das suas marcas distintivas foi o apoio aos chamados movimentos de libertação, designadamente na Argélia. O gabinete do senador John Kennedy era um ponto de passagem obrigatório para os políticos anticolonialistas. Nesta altura, em 1962, [Harold] Macmillan [primeiro-ministro britânico] já tinha pronunciado o seu discurso sobre os ventos de mudança.
A França também estava na ponta final da guerra da Argélia, já com De Gaulle no poder. Aquilo que nos anos 50 ainda podia ser visto como uma disputa ideológica entre os dois blocos já se tinha transformado numa espécie de consenso internacional. É evidente que cada caso é um caso. Não podemos identificar automaticamente a situação de Portugal com a situação do Reino Unido ou a da França. O colonialismo português estava conotado com um regime que não era democrático, e talvez isso tenha acrescentado um certo grau de animosidade. Agora, penso que…
Que eram sinceros nas suas críticas?
Acho que sim. Digo isso no segundo volume: todas as teorias de superioridade racial e civilizacional tinham sido desacreditadas pela experiência do nazismo; as duas superpotências eram ambas anticolonialistas.
Anticolonialistas ‘ponto e vírgula’… A União Soviética era quase uma potência colonial na forma como exercia a sua autoridade sobre uma série de territórios.
Com certeza. E os Estados Unidos também eram uma potência imperialista, e não hesitavam em fazer vingar os seus interesses. Mas do ponto de vista estritamente ideológico, tanto a União Soviética como os Estados Unidos, cada um pelas suas razões, eram ideologicamente anticolonialistas, mesmo que depois a prática não correspondesse necessariamente a essa ideologia.
Referi a União Soviética porque olhamos para o que se passou na Hungria em 56 [quando o povo se revoltou contra o governo comunista e os tanques soviéticos entraram por Budapeste] ou na República Checa [a chamada ‘Primavera de Praga’, um período de liberalização que, mais uma vez, terminou com a ocupação da capital por forças militares]. Por um lado, os soviéticos apregoavam a autodeterminação dos povos, mas por outro mantinham aqueles territórios com mão de ferro.
Vou-lhe citar uma frase do De Gaulle que acho que ilustra bem isso. Numa conversa com o Alain Peyrefitte [político e diplomata muito próximo do Presidente francês], tem este desabafo: «Os americanos e os russos acham que têm vocação para libertar os povos oprimidos e encorajam-nos a exigir cada vez mais. É a única coisa que têm em comum. Os dois supergrandes apresentam-se como os dois anti-imperialistas quando na verdade se tornaram os dois últimos imperialistas».
Lá está! Mas repare que essa é a matriz ideológica da nação americana, a libertação do colonialismo britânico; e, no caso soviético, a libertação dos povos oprimidos. Na Europa os países que mantinham ainda alguns territórios fora da metrópole estavam a abandoná-los.
Às vezes relutantemente.
Sim, mesmo que isso não correspondesse a uma posição ideológica, que correspondesse pura e simplesmente a um cálculo de interesses. Mas a verdade é que todo esse processo já estava largamente em marcha. Recuando um pouco, acho que em 1961 havia uma convicção de que o regime português era frágil e que com um empurrãozinho a coisa ia. Foi uma surpresa para toda a gente, inclusivamente para os próprios portugueses, como foi possível resistir durante tanto tempo.
Salazar a certa altura diz: «A independência é um fenómeno natural das sociedades humanas, mas não se pode marcar prazo». Falando em bom português, o ditador estava a empatar o máximo que conseguia?
Acho que sim. Ele estava efetivamente a empatar. Essa frase, que pronunciou numa entrevista à Time Magazine, suscitou esperanças, porque reconheceu que havia uma legítima aspiração. Mas a parte operativa estava nesse ‘mas’. Como não havia prazo, podia ser dali a 30, 40, 50, 100 anos, sabe-se lá.
A guerra é sempre algo terrível. Mas não podemos admitir que Portugal estava a agir em legítima defesa?
Na resposta que dá à carta de George Ball [secretário de Estado Adjunto, responsável por importantes negociações entre os EUA e Portugal durante a guerra], em 1963, Salazar coloca a questão de uma forma muito precisa: ‘Nós estamos a agir em nome do direito. Os Estados Unidos e os nossos opositores opõem a esse direito uma espécie de legitimidade histórica agora enunciada ou descoberta’. Ou seja, à luz das normas do direito internacional, estávamos a agir em legítima defesa.
Aqueles territórios pertenciam a Portugal e eram reconhecidos como tal. Simplesmente, o direito na política internacional tem um valor relativo, e cede perante novas tendências ideológicas. Acho que sim, que podemos dizer que estávamos a agir em legítima defesa, simplesmente essa condição não era já reconhecida internacionalmente. Se o ataque fosse contra Portugal metropolitano, continental, penso que não haveria dúvidas. Essa questão também se pôs no caso da anexação de Goa, de forma até mais clara.
Tratou-se de um ato cometido por um estado soberano contra um território que era reconhecidamente português há séculos. Houve uma condenação rápida por parte dos ocidentais, que não chegou a ser endossada pelo conselho de segurança [da ONU] devido ao veto da União Soviética, mas rapidamente se esqueceu essa questão e se seguiu em frente.
No capítulo IV refere que Salazar «intimamente sempre desejara» a guerra, «para escrever pelo seu punho mais uma página – a última – na longa história heroica do país». Existem indícios (escritos ou outros) de que o ditador retirava satisfação desta guerra ou que já antes acalentava a esperança de liderar o país durante um conflito desta natureza?
A recusa liminar de qualquer possibilidade de negociação, primeiro com a India, depois em Africa, teria como consequência lógica um conflito militar. Pelos seus atos e instruções, Salazar sempre mostrou que não lhe repugnava nada essa hipótese e que não lhe custava impor ao povo português os correspondentes sacrifícios. Mandou o general Vassalo e Silva, o último governador do Estado Português da Índia, resistir até à última, mesmo que tal implicasse um banho de sangue. A Franco Nogueira, disse, conforme ele registou no seu diário, que gostava da guerra, e se tivesse menos vinte anos «levava isto até ao fim».
Nestas negociações a diplomacia portuguesa não podia ter tentado obter contrapartidas em troca de abdicar das colónias?
Era essa a oferta. No período coberto por este livro há um ano importante, 1963, em que há duas negociações paralelas, mas convergentes, uma patrocinada pelos Estados Unidos, que é a missão do George Ball, e a outra, menos conhecida, que são as negociações que decorrem em Nova Iorque sob a égide do secretário-geral com alguns países da Organização da Unidade Africana.
Era-nos proposto que, em troca do reconhecimento do direito à autodeterminação das colónias, haveria um prazo dilatado – George Ball fala de dez anos – para que isso pudesse ser posto em prática de uma forma organizada e com o apoio da comunidade internacional. Também da parte dos países africanos há promessas – não vou agora discutir se eram credíveis ou não.
De trégua?
Essas eram as contrapartidas. Em troca da aceitação do princípio da autodeterminação e do início do processo de descolonização, havia o apoio da comunidade internacional a um período transitório.
Mas aí estamos a falar de apoio ao processo. Eu referia-me a benefícios mais palpáveis.
Acho que isso não estava dentro do espírito do regime. Salazar desconfiava profundamente do capitalismo americano, e dos americanos em geral, não havia nada suficientemente expressivo para alterar uma posição ideológica que era totalmente rígida.
É muito curioso que esse prazo de dez anos sugerido por George Ball em 1963 vai quase coincidir com o 25 de abril [1974].
Vai bater certíssimo.
Não tinha a ‘teimosia’ de Salazar (em não abrir mão das colónias) alguma razão de ser, no sentido em que Portugal possuía então uma capacidade negocial e uma relevância mundial – chegando até a contrariar uma superpotência como os EUA – que depois perdeu?
É verdade que Portugal evidenciou uma capacidade de resistência às pressões da comunidade internacional e à violência de que foi alvo por parte dos movimentos de libertação que ninguém – nem mesmo talvez o próprio Salazar – supunha que tivesse.
Para um país como Portugal, manter durante 13 anos uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros da metrópole, é obra! Mas era uma política, como disse Homem de Mello logo em 1962, sem esperança, com algo de suicidário.
Fica a sensação de que a atitude de Salazar era ‘après moi, le déluge’. Como potência colonial, Portugal tinha porventura mais poder, mas, devido à sua política obstinada, foi perdendo influência. Hoje já não temos tanto poder, mas recuperámos alguma influência, não apenas como membros da União Europeia, mas também a título nacional, como parece demonstrar a capacidade para colocar portugueses em altos cargos internacionais ou a forma como conseguimos levar a bom termo o processo de independência de Timor Leste.
Salazar acusava os Estados Unidos – e se calhar com alguma razão – de contribuírem para a «diminuição do potencial europeu», em vez de combaterem o ‘inimigo comum’, que era a União Soviética. Ainda há pouco estava a olhar para a última fotografia incluída no livro, do hastear da bandeira angolana a 11 de novembro de 1975. Aquele símbolo é quase decalcado da foice e martelo. Os Estados Unidos não acabaram por entregar de bandeja Angola à esfera soviética?
Acho que essa história é mais complicada. Temos de ver a posição dos Estados Unidos num contexto de luta ideológica com a União Soviética. A perceção que existe nos Estados Unidos é que é preciso colocarem-se do lado dos povos oprimidos para não deixarem todo esse terreno livre para o ‘inimigo’, mas não é claro, no início, que tudo vá parar às mãos de movimentos patrocinados pela União Soviética.
Os Estados Unidos também têm os seus clientes, como a FNLA [Frente Nacional de Libertação de Angola], do Holden Roberto, e mesmo do lado dos franceses, pela forma como foi feita a descolonização, há muitos países que se mantêm na sua esfera de influência e que não basculam para o comunismo. Efetivamente, chegados a 1975, é verdade que isso não se traduziu no resultado que os americanos esperavam, e com as consequências que ficaram à vista. Mas na altura não era tão claro que fosse necessariamente esse o resultado.
Parece-lhe que a existência dessas fações em Angola já permite adivinhar a guerra civil que virá depois da independência?
Essa pergunta é difícil. É curioso que da parte dos responsáveis portugueses há uma espécie de dualidade. No princípio dos anos 70, há uma tentativa de Mobutu [ditador do Zaire] de servir de medianeiro, e oferece-se para tentar reconfigurar a FNLA como movimento mais aceitável para os portugueses. E Marcelo Caetano diz: ‘Isso não tem credibilidade. Se me viessem fazer essa proposta da parte do MPLA já era outra coisa’.
Há essa dualidade em que, por um lado, o MPLA é o inimigo principal – é o movimento apoiado pela União Soviética e pelo Partido Comunista, é o mais temível adversário do ponto de vista militar – mas ao mesmo tempo é visto como o único movimento que tem os quadros e a preparação política para tomar conta de um país como Angola.
Pode dizer-se que sim: o facto de haver essa inimizade tremenda desde o princípio, que se nota desde 1961 entre aquilo que era a UPA [União dos Povos de Angola, responsável pelo massacre de 15 de março de 1961, que marca o início à Guerra Colonial], e depois é a FNLA, e o MPLA pode já prefigurar problemas, mas não se sabe ainda bem qual é a força relativa de cada um e como é que isso tudo depois se vai organizar. Por fim a UNITA é que acaba por se tornar o grande movimento rival do MPLA, e chegou a haver ideias de recrutar Savimbi para o nosso campo.
O título do seu livro é ‘Orgulhosamente Sós’ mas o facto é que não estávamos tão sós quanto isso. Íamos mantendo um diálogo secreto com países como o Congo e o Senegal, ao mesmo tempo que colaborávamos com o regime do apartheid da África do Sul. Havia uma espécie de diplomacia subterrânea, quase clandestina?
Completamente. Não era só com esses países, era também com o Malawi, com a Zâmbia, com a Rodésia. Aquilo que eu conto neste livro era em grande parte segredo.
Não era suposto saber-se?
Relativamente à aliança com a Rodésia e com a África do Sul, era o mais possível secreto – digo ‘o mais possível’ porque não era inteiramente possível, as pessoas percebiam. Com o Malawi ao princípio também, as coisas não são assumidas. Mais tarde sim, o Malawi funciona como um aliado na prática. Todas as tentativas que se fazem com a Zâmbia são secretas, aquilo que se passa com o Congo é secreto. É praticamente tudo secreto.
É como se houvesse uma diplomacia declarada e outra a atuar nos bastidores?
Existe, digamos, uma luta diplomática que é assumida e depois existe uma quantidade de coisas secretas, quer no plano diplomático, quer no plano do que se pode chamar as operações clandestinas da PIDE. Mas claro que nem tudo pode ser secreto. Há viagens, há visitas do Franco Nogueira à África do Sul, há visitas do Ian Smith [primeiro-ministro da Rodésia] a Portugal, há muitos indícios. Mas de facto o segredo é um elemento fundamental da manobra.
Pelo meio surge este aventureiro e diplomata oficioso que é o Jorge Jardim. Como se torna ele esta figura-chave da diplomacia portuguesa?
O Jorge Jardim é uma espécie de homem dos sete ofícios, tão à vontade no mato como nas chancelarias. E Salazar, que o adora e confia cegamente nele, utiliza-o para uma série de missões especiais: para organizar o retorno dos prisioneiros portugueses que estão na Índia, como espião em Angola no princípio da guerra, para desbloquear a situação com o Malawi, para negociar o abastecimento de petróleo à Rodésia [durante um bloqueio internacional a este país].
É visto por muita gente como um aventureiro, e depois efetivamente embarca na aventura de uma tentativa de independência branca unilateral de Moçambique, em conluio com o [Kenneth] Kaunda [primeiro presidente da Zâmbia] e com o Banda, mas, ao longo deste período, ele é um agente perfeitamente reconhecido do Estado Português. Reporta absolutamente tudo – há centenas de páginas de relatórios do Jorge Jardim em que explica tudo o que está a fazer –, e tem relações íntimas com toda a gente. Com o Franco Nogueira, com os comandantes militares, etc.
E com os líderes africanos.
E com os africanos. É uma peça-chave. As pessoas sabem que o Jorge Jardim é um poder, um fenómeno, um caso único.
Diz a certa altura do livro que «a situação militar herdada por Marcelo Caetano era difícil, mas não desesperada». A seu ver, quando se tornou desesperada? Com o massacre de Wiriyamu?
A situação nunca é totalmente desesperada, nunca é uma situação de derrota iminente.
Nem na Guiné?
Na Guiné isso acontece em 1973. Depois do assassínio do Amílcar Cabral há duas grandes ofensivas e depois há o aparecimento dos mísseis Strela, que põem em causa a nossa superioridade aérea. A partir daí a situação degrada-se muito. Não é que fôssemos perder a guerra depois de amanhã, simplesmente era impossível continuarmos a fazer aquilo que o Spínola estava a tentar fazer, que era manter as populações do seu lado.
Quando Costa Gomes, depois da crise dos mísseis, vai à Guiné, e propõe reduzir o nosso perímetro defensivo, isso significa entregar as populações ao PAIGC. E o Spínola diz: ‘Eustou totalmente de acordo com esse diagnóstico do ponto de vista militar, só que não contem comigo para o aplicar porque isso é tudo o contrário do que procurei fazer’. Em Moçambique, acho que é em 1972 que as coisas começam a virar, depois perde-se o controlo da situação em Tete. Era um problema localizado, simplesmente há um efeito psicológico muito forte porque a Beira está ameaçada.
A guerra, que tinha sido sempre uma coisa muito longínqua, de repente está à porta da segunda maior cidade de Moçambique. Em Angola não. Aliás é o que eu ouvia dizer na altura, em 1974-75. Dizia-se que a situação era muito difícil especialmente na Guiné, e também em Moçambique, mas que em Angola era bastante favorável.
E neste período final há alguma oportunidade para Portugal sair do conflito?
A última oportunidade de haver uma viragem é em 1972. Se Marcelo Caetano tivesse aceitado pôr o Spínola como Presidente da República, poderia ter havido uma negociação com o PAIGC. Depois as coisas degradam-se muito não só do ponto de vista militar, como também do ponto de vista político, porque as Nações Unidas avançam para uma posição de reconhecimentos dos movimentos de libertação como únicos e autênticos representantes dos seus povos, coisa que não tinha acontecido antes.
Marcelo Caetano terá ainda tentado uma negociação com o PAIGC e uma declaração unilateral de independência de Angola, decretada pelo governador-geral.
Sim, mas já sem convicção. Teria de ser algo assumido publicamente, nunca podia ser feito daquela maneira. Spínola sabia isso perfeitamente, e diz que não era possível mandar um diplomata que ninguém conhece, sem assumir perante os portugueses que se ia procurar fazer outra coisa.
Porque ao mesmo tempo era nas costas do Presidente, Américo Tomás.
Nas costas de toda a gente… Só hoje é que se sabe isso melhor. Mesmo essa questão da combinação que terá sido feita com o Santos e Castro [último governador-geral de Angola] só veio a lume muito recentemente, e só foi verdadeiramente explorada pelo Joaquim Furtado, no documentário sobre a Guerra Colonial. E há muita gente que continua a duvidar que isso tenha acontecido.