“Nada é eterno em democracia, nem os Governos, nem os Presidentes, nem as oposições”. Esta foi uma das mensagens deixadas pelo Presidente da República no discurso do 5 de outubro, deixando recados ao Governo e falando entrelinhas sobre os últimos casos polémicos do Executivo. Depois do episódio em torno de Ana Abrunhosa que aponta para um eventual conflito de interesses – após duas empresas detidas pelo seu marido terem beneficiado de centenas de milhares de euros em fundos comunitários, já depois de Abrunhosa tutelar as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Territorial, responsáveis pela atribuição dos fundos – o verniz estalou com Manuel Pizarro que três semanas depois de ter tomado posse continua gerente de uma empresa na área da Saúde.
No seu discurso, Marcelo deixou outro alerta: “Sabemos que não é suficiente termos democracia na Constituição e nas leis, importa termos democracia nos factos, democracia com cada vez mais qualidade, melhores e mais atempadas leis, justiça, administração pública, controle dos abusos e omissões dos poderes, prevenção e combate à corrupção das pessoas e das instituições”. E ao contrário do que acontecia há 100 anos lembrou que hoje temos “uma democracia em que milhões de pessoas votam diretamente no Presidente da República e o Presidente dispõe do poder de vetar leis e de dissolver o Parlamento”.
Para o politólogo José Filipe Pinto, “o discurso do Presidente é muito ponderado, mas deixa bem claro que está atento ao desgaste do Governo, que estamos perante um Governo de maioria absoluta que não está a saber utilizar esse ativo que os portugueses colocaram nas suas mãos. Um Governo de maioria absoluta que tem lapidado essa consciência em episódios, como a questão do aeroporto, a demissão da ministra da Saúde em consequência do encerramento das maternidades, os financiamentos a empresas do marido da ministra e agora o caso do novo ministro da Saúde de uma possível incompatibilidade”, diz ao i, lembrando que Marcelo Rebelo de Sousa deixou bem claro “que na democracia é preciso transparência e que a legitimidade que decorre do voto tem de ser acompanhada pela legitimidade do exercício”.
E vai mais longe: “O que acontece com demasiada frequência neste Governo de maioria absoluta é que não precisa de oposição para ao nível da opinião pública estar a perder a credibilidade e a sua legitimidade que lhe foi reconhecida nas urnas por conta da falta de legitimidade de exercício”.
Também Paula Espírito Santo diz que o discurso representa um recado direto para António Costa e para todos aqueles que “neste momento sentem algum conforto nas suas posições, independentemente do que está a acontecer: incongruências legais e éticas”. E diz ainda que “é um recado sobre as dinâmicas que se estabelecem e que não devem ser tomadas como sendo duradouras, mesmo que o poder tenha alicerces para ser estável e que tenha uma base democraticamente eleita para se sustentar”, salienta a especialista em ciência política.
Risco de interferência José Filipe Pinto elogia os recados de Marcelo por considerar que “é preciso que os Governos percebam que não estão acima da lei. O ministro é aquele que serve, não é aquele que se serve. O Presidente deixou bem claro que ou o Governo entra numa linha de atuação compatível com a legalidade, com a legitimidade e com os anseios dos portugueses ou face aos momentos difíceis que se aproximam, devido à conjuntura internacional, não põe de parte a hipótese de retirar apoio a este Governo”.
De acordo com o polílogo, “a grande verdade é que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente e estamos a perceber que fora o aeroporto – com este acordo com Luís Montenegro – percebemos que há uma grande dessincronização a nível interno. Quando há uma falta de liderança, uma dessincronização ao nível interno do Governo é evidente que não pode haver um clima favorável e que vai afetar negativamente a imagem do Governo e a imagem do país” – apesar de entender que o Presidente da República deixou claro que o Executivo tem todas as condições para ter uma legislatura a falar numa única voz. O que estamos a perceber é que não há unidade dentro do Governo. E Marcelo deixa implícito que António Costa escolheu para seus ministros – tirando um independente – pessoas da sua confiança política”, lembrando que este Executivo “é muito mais político, proveniente do círculo restrito de António Costa, em que nenhum daqueles ministros tem ao nível da sociedade civil um currículo que lhe permita ser visto como alguém respeitado dentro do seu setor de atividade”.
E face a este cenário, de acordo com o politólogo, Marcelo Rebelo de Sousa “provavelmente vai ser obrigado a intervir, porque sendo o mais alto magistrado da Nação quando sente que as instituições não estão a funcionar normalmente tem de de interferir”.
“Correr atrás do prejuízo” Para Paula Espírito Santo sempre que surgem dados que “são contraditórios à ordem natural da democracia, com incompatibilidades evidentes e que comprometem a ética dos cargos provocam sempre algum desalento para aqueles que acreditam que é importante que as instituições funcionem de forma transparente e legítima”.
E os argumentos de António Costa em relação caso de Manuel Pizarro não convencem a especialista em ciência política. “O primeiro-ministro deu a justificação de que as pessoas quando são convidadas para os cargos conseguem rapidamente rescindir um contrato, mas se tiverem uma empresa demora algum tempo. Isso não é compreensível, porque o convite já foi feito há algum tempo”, considerando que este tipo de situação poderia ter sido resolvido de forma mais rápida e ágil. “Dá sempre a ideia que se está a correr atrás do prejuízo e que se está a resolver em função daquilo que é o limite possível, ou seja, resolve-se em função do prejuízo conhecido”.
E não hesita: “Com este Governo vão sendo conhecidas situações de incompatibilidades sucessivas. Parece que semana a semana estamos a conhecer incompatibilidades, sempre gravosas e que não têm qualquer efeito nos planos das consequências”.
Oposição não poupa No entender de Luís Montenegro há um “acumular de casos, de descoordenação, de dúvidas” que envolveram o Governo nos últimos meses, que “contribuem para degradar o ambiente político” e afastou-se de qualquer proximidade a movimentos de extremismo.
Também o PCP considerou que o ministro “tem de pôr termo de imediato à situação de incompatibilidade”, defendendo que “não pode haver confusão” com interesses privados. Um argumento defendido pelos bloquistas ao considerarem que se trata de “um erro político grave” e que “este erro político grave do ministro Manuel Pizarro tem, como é óbvio, uma responsabilidade que só a ele diz respeito, e que só ao Governo diz respeito”.
O ministro da Saúde já admitiu estar “ciente” da incompatibilidade do seu cargo no Governo com a gestão de uma empresa na área da saúde, salientando já ter iniciado “o processo de dissolução da mesma”. E garantiu que a escritura está agendada para “os primeiros dias de outubro”.