Aquilo a que se chama monstro é alguma beleza original e inesgotável, diz Alfred Jarry, desnaturada também na medida em que se desdobra e vive para um fulgor clandestino, produzindo aquele terror do que seduz furtando-se, escapando às convenções, rompendo com o pudor, satisfazendo-se através da culpa e da recriminação social. No que respeita a essa perseguição na zona íntima, alcança um estádio mais pleno do gozo erótico, dessa confissão diabólica, crescendo a partir de um sussurro, sem se ocultar, levando o ímpeto desde a suspeita, como ela nasce, curiosa, naturalíssima, até a esse talento de uma paixão inesperada e impetuosa que retira tanto prazer de exasperar a moral e ter na intimidade uma possibilidade de feri-la, entregar-se ao crime da mesma forma que se segue o desejo até ao fim.
Jean Genet diz-nos no “Diário do Ladrão”, obra que acaba de chegar às livrarias com o selo da Minotauro, como “os jogos eróticos descobrem um mundo inominável que a linguagem nocturna dos amantes revela”. E prossegue: “Uma linguagem assim não se escreve. Segreda-se à noite ao ouvido, numa voz rouca. Ao romper do dia esquece-se. Negando as virtudes do vosso mundo, os criminosos aceitam desesperadamente organizar um universo interdito.” Por sua vez, Paul B. Preciado, lembrando que a homossexualidade estará presente como doença sexual até 1975 nos manuais psiquiátricos do Ocidente, sendo o sodomita ainda hoje encarado como um ser “invertido”, para quem se dirige aos outros como a juízes e estando sujeito a essa carga de suspeição, é preciso inventar um modo de se comunicar, e, por isso, “falar é inventar a língua da travessia, projectar a voz numa viagem interestelar: traduzir a nossa diferença para a linguagem da norma; ao mesmo tempo que continuamos em segredo a fazer proliferar um blá-blá-blá insólito que a lei não entende”.
Acaba também de publicar-se uma antologia que se assume como pioneira, entre nós, ao oferecer uma panorâmica abrangente sobre as representações – mais ou menos explícitas – do homoerotismo na poesia portuguesa ao longo dos séculos, e cujo prefácio nos lembra como vários interpretes consideraram haver “uma ‘natural’ predisposição dos homossexuais para a literatura em geral, e para a poesia em particular, desde a Antiguidade grega (Anacreonte, Arquíloco, Teógnis, Safo, etc.) e Romana (Catulo, Horácio, Virgílio, Petrónio, etc.), até aos dias de hoje”. Aquela predisposição poderia explicar-se pela necessidade de inventar essa língua da travessia de que fala Preciado, traduzir a diferença para a linguagem da norma, ser algo mais do que o monstro. O que não significa exactamente aderir aos códigos literários, mas traçar uma investida nesse plano onde o juízo chega a suspender-se, onde fica alguma margem para a nuance, para pôr em causa uma certa moral vigilante e punitiva, explorar um descaminho, um devaneio num encontro que vá para lá daquilo com que já se conta, sendo função da arte, segundo Genet, substituir a fé religiosa pela eficácia da beleza.
Por meio da sumptuosidade das palavras, consegue-se levar certos espíritos a essa hesitação, a abandonarem-se no sentido da noite, a provarem a sugestão de um desencontro com o que assumem saber já de si mesmos, pondo a razão à frente do imenso fulgor do desconhecido. Qualquer um que tenha sido levado por um ímpeto a um acto mesmo que suave de transgressão, pode imaginar que sabe melhor ir para a cama (que foi sempre para onde começaram por nos mandar e para onde, mesmo que contrariados, acabámos por ir) e entregar-se a alguém ou foder simplesmente sabendo que o Estado não o quer. Como diz o Fausto de Goethe, a alegria nem é o que importa, mas esse talento para se entregar ao prazer que mais nos dói. E Pedro Homem de Mello lembrava ainda isto: “o segredo, amigos, é meu vinho/ e minha estrela”.
O monstro tem uma natureza tão perturbadora uma vez que surge diante de nós provocando um sobressalto na realidade que estávamos dispostos a aceitar, apelando a uma reorganização dos sistemas de signos, “a uma modificação dos rituais políticos que definem o reconhecimento social de um corpo como saudável ou doente, como legal ou ilegal”. Nalgum momento das nossas vidas, acabamos por ser vítimas da violência produzida por o que Preciado denuncia como “a epistemologia binária do Ocidente”. Ou seja: “O universo inteiro cortado em duas partes e somente em duas partes. Neste sistema de conhecimento, tudo tem direito e avesso. Somos o humano ou o animal. O homem ou a mulher. O vivo ou o morto. O colonizador ou o colonizado. O organismo ou a máquina. A norma dividiu-nos. Cortou-nos em duas partes. E forçou-nos depois a escolher uma das partes. Aquilo a que chamamos subjectividade não é mais do que a cicatriz deixada pelo corte na multiplicidade do que podíamos ter sido. Sobre essa cicatriz assenta a propriedade, funda-se a família e lega-se a herança. Sobre essa cicatriz escreve-se o nome e afirma-se a identidade sexual.”
E se até hoje amar alguém do mesmo sexo continua a ser ilegal em 74 países, e é motivo de pena de morte em 13, mesmo em Portugal, como noutras democracias liberais do Ocidente, convém não esquecer que, apesar das tantas conquistas, algumas muito recentes, persiste de qualquer modo um regime de integração forçada, o qual se realiza segundo essa “necessidade de mediação e o mimetismo sem critério que eram e são ainda o preço a pagar pela visibilidade de um grupo minoritário e pela necessidade de criar uma identidade que escape à norma” (João R. Figueiredo). Ainda que Portugal nunca tenha sido um exemplo da perseguição mais feroz a estas formas de criminalidade amorosa, uma cronologia caseira, mesmo que muito desfalcada, não poderia deixar de assinalar alguns episódios mais significativos entre o final do século XIX e a revolução de Abril, começando pela publicação de "Só", em 1892, três anos antes da condenação de Oscar Wilde a trabalhos forçados por “indecência”, sendo que António Nobre, se não foi acusado formalmente nem perseguido, se viu o alvo constante de troça pela sua postura efeminada ou falta de virilidade. E o prefácio da antologia também relembra aquele que terá sido o momento que melhor nos revelou esta “sociedade atavicamente conservadora” em que vivemos, quando, em Março de 1923, membros da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa (LAEL), de fundo católico, reagiram à disseminação daquilo que foi nomeado então como "Literatura de Sodoma" – uma sucessão de publicações polémicas, iniciada no ano anterior com a segunda edição, pela editora Olisipo de Fernando Pessoa, das "Canções", de António Botto, e que culminou com o opúsculo "Sodoma divinizada", de Raul Leal, publicado pela mesma editora.
Quase ignorada pelo público, a obra de Botto viria a desencadear todo o episódio, mas o rastilho foi aceso por um ensaio de Pessoa, publicado na revista Contemporânea, acerca da obra de Botto ("Antonio Botto e o ideal estético em Portugal"), a que se seguiu Uma réplica, no número seguinte da mesma revista (Novembro de 1922), assinada por Álvaro Maia ("Literatura de Sodoma"). Nesta invectiva acusatória, a intervenção de Maia, que intervém como o porta-voz do status-quo, como nos lembra o investigador Mário César Lugarinho, teve, pelo menos, o mérito de aclarar a própria intervenção de Pessoa, que pretendia destacar os princípios estéticos da obra de Botto sem se comprometer directamente com estes, explicitando as tensões em causa: “Se os estetas de que nos fala o Sr. Pessoa não passam, afinal de contas de rebotalhos duma geração; se neles o culto da beleza máscula em nada consiste do que na ânsia de satisfação duma carnalidade monstruosa, fora de todas as leis da natureza e exemplificada nas mais ridículas mascaradas do desejo sexual, na mais bestializante coprofilia; se para eles a Grécia não vale senão pelo uranismo (…) para que demónio vir a público com a apologia dum livro que só tem de especial o ser, em toda a acepção da palavra, uma porcaria?”
Pessoa rejeitaria a tréplica que foi assumida, em Janeiro de 1923, por Raul Leal, amigo e antigo colaborador de Orpheu. Daí em diante, como nos conta Lugarinho, seguem-se notícias de perseguição e censura aos livreiros, culminando com uma acção violenta dos estudantes sobre as livrarias que expunham e vendiam as obras de Botto e de Leal e com a proibição por parte do Governo Civil de Lisboa da exposição e venda de tais obras em Março de 1923, instalando uma censura oficial que não era praticada desde os tempos da Revolução Constitucionalista de 1820.
Já sobre a perseguição de que foi alvo Cesariny por parte do aparelho de repressão do Estado Novo, numa entrevista em 1986, o poeta contava como lhe foi cosida na carne uma letra escarlate, e como ficou estabelecido que não podia sair acompanhado nem frequentar bares, como tinha a obrigação “de trabalhar bem”, e outras coisas que é melhor ver relembradas nas suas próprias palavras: “não posso acompanhar homossexuais, tenho de me levantar cedo, enfim, uma palhaçada. Nos três primeiros anos eu acho que levei aquilo com uma certa alegria, achava graça. Eu tinha de lá ir todos os meses como as putas, quer dizer, prova do corpo presente. Tratavam-me muito bem, falavam de artigos do Dr. Gaspar Simões. Era uma coisa odiosa. Ao fim de três anos eu realmente comecei a ficar um bocado destroçado por causa disso.”
Cesariny soube caracterizar bem esta modorra que, sem as graves torturas que servem para que se sinta o martírio que tantas vezes só acirra as nossas convicções, sabe amesquinhar como poucas sociedades, pois domina aquele regime da violência em contexto familiar, da intriga hipócrita, do silêncio aviltante e desses olhares frios trocados à mesa de jantar. “Em Portugal, que eu saiba, nunca morreu gente por causa do que se escreve”, notava Cesariny. “A brandura dos nossos costumes, este céu azul e este mar fazem-nos – como tão bem notou Fernando Pessoa referindo-se à implantação da República – de uma tessitura cristã para com os vencidos. E tenho visto que toda a gente pode pensar o que quiser. Morrer pelo que se diz, mesmo assinado, repito, há muitos anos que não se vê cá disso. Pelo que se faz à vida, ou desta vida, isso é já outra história. Desta morte, porém, poucos querem saber.”
No ano da sua morte, o seu amigo Cruzeiro Seixas dava uma entrevista em que lembrava como na juventude de ambos o que não lhes escapava era essa “consciência da morte quotidiana, fingida, aniquilante, que nos queria tirar a força da vida”. O pintor-poeta do surrealismo português frisava ainda como “ela surgia pelo lado do catolicismo, do Salazar, da organização social que nos era imposta, uma mentira pegada. Não quer dizer que hoje seja muito mais verdadeira”. Em certo sentido, esta antologia também espelha uma certa indistinção que, ao pôr personagens meramente coloridas lado a lado com essas outras que realmente pagaram um preço pela “desesperada elegância” do seu desejo de liberdade, acaba por impor-se como uma forma de castigo destinada a selar e a perpetuar a inautenticidade dos juízos.
“O tamanho do nosso sonho é difícil de descrever: antologia do homoerotismo na poesia portuguesa”, uma edição com o selo da Avesso, sendo uma obra com recortes bastante sugestivos e poemas vertiginosos, presta apesar de tudo um duvidoso serviço ao criar uma arrumação precária de alguns nomes que não fazem senão acentuar o carácter totalmente provisório destas páginas e o tom amachucado da publicação. Não vale a pena, no entanto, perder demasiado tempo a elencar aqui os poetas que nem passam perto de algo de teor erótico ou, sequer, de um sentido desse regime de transgressão que foi cultivado pelos que, mesmo que em menor número, conseguem salvar e tornar digno o esforço levado a cabo por Victor Correia e Vladimiro Nunes. E a imagem que melhor corresponde àquilo que nos fica das páginas que vão mais longe e mais fundo neste quadro de representação são essas que nos deixam uma espécie de exaustão luminosa, marcas subtis e que gostamos de passear na manhã seguinte, essa “amálgama de suor, sangue e sal triturados noite e dia”, que colhemos numas linhas de Bernardo Santareno, um dos autores aqui antologiados, e que descreve um rapaz e como “ele era, só com o seu ser-se naturalmente, um paradoxo, uma quase imoralidade, uma imagem sacrílega…”
Os momentos mais fortes da leitura deste volume, lembram-nos como as relações humanas e o conteúdo erótico são aspectos iminentemente políticos, e como disso nasce esse sentido de “uma individualidade provocadora uma vez que não se conforma ao geral e ao hegemónico” (João R. Figueiredo). Se tantos dos poemas aqui recolhidos aparecem como meras curiosidades na obra de autores cuja voz nos parece ter-se entretido mais a ocupar o ouvido e adormecer o espírito, ou pior, como diria Cesariny, para entreter o espírito e parar o corpo, depois temos esses exaltantes peregrinos do desejo, capturando reflexos espantosos onde a vida desperta e num rompante se vê a derivar para o mito. Não faltam por aqui encontros fugazes, cenas de engate, “turvos pensamentos”, tentações enredantes, o enlevo próprio do que se reconhece como pecado, daqueles que perseguem o amor sem pejo nem dilações, e se “enterram com lucidez e sem queixas num elemento reprovador, ignominioso, semelhante àquele em que, se é profundo, o amor precipita os seres” (Genet).
Nunca chegamos perto daquela “épica de masturbação”, como Sartre qualifica a obra literária de Genet, e há sempre algum decoro, uma ressalva de beleza que restitui o acto ao repertório desses cuidados amorosos, dessa necessidade de comprovar a bondade do que não deixa de ser uma forma de afeição. E são poucos, no fim, os que se reclamam da condição monstruosa que consegue romper e mostrar-se ameaçadora na sua insaciável peregrinação. Aqui, o que temos ainda são esses “vagabundos com alma de boneca” (Genet). E isto acontece mesmo na forma como o desejo se esconde de si mesmo, à medida que a contenção lírica encontra estratégias paralelas no disfarce: “Arrependido? Sim: preferia recordar/ Um corpo saciado, a um corpo reprimido;/ O momento fremente de o despir e enlaçar/ E de o sentir ranger, como range um vestido” (António Manuel Couto Viana).
Falta por vezes aquela outra intriga rapace, sem a intromissão excessiva do sentimento, mas simplesmente porque há uma noite para passar, e o corpo exige uma companhia que lhe torne possível essa expressão última do acto de se devorar. Talvez o desejo mais pregnante seja sempre a necessidade de se consolar da sombra que se perdeu no campo mais aberto e intimidante da vida social. É esse grão de inevitabilidade, esse lado quase trágico a que a sexualidade responde enquanto busca impossível de uma simetria, levando à desolação, às variações dentro da solidão, mas também a um desagrado progressivo e a uma ânsia de se vingar de toda essa sociedade que surge muitas vezes apenas como uma estrutura de negações e proibições. Melhor, assim, são estes versos do mesmo Couto Viana: “Aviso de extermínio,/ As rapinas rapazes/ Apontam-se com pedras,/ Lumes, lixos, espadas/ Ou beijos repetidos/ Ou águas perturbadas”. Ou então estes de Carlos Eurico da Costa num poema dedicado a Cesariny, que admitiria mais tarde como ele foi a sua grande paixão, aquela que não lhe foi permitido viver: “com a mesma boca com o mesmo sexo (…) tu és o rumorejar da poderosa máquina construindo insectos/ o mundo que fundámos para nós na órbita/ dum astro// Para além das vozes há o mundo/ para além do mundo/ as pedras coloridas que levamos apertadas contra o peito.”
Algumas das páginas mais manchadas por aquele suor, aquela intimidade declarada com um grito em prova de ardor, também deixam claro que é menos interessante fazer literatura do que desfazer a literatura, os seus jogos e convenções que chegam a tornar-se o que há de mais abominável e contraditório em relação à vida, passando antes para essa exaltante moção que instila em tudo um deslimite, uma paixão da metamorfose, como os corpos na gravidade que exercem uns sobre os outros se desmancham e renovam, respondendo a impulsos irrefreáveis, num abandono que faz da carne um esboço das intenções do espírito. “Uma mui estranha cousa/ se ruge cá entre nós” (D. João de Meneses), e isto toca essa dimensão de estudo que o amor permite perante alguém, aquela que é própria da adolescência frente ao espelho. “O teu corpo milímetro a milímetro/ a cor o cheiro a pele/ o movimento/ – e independente o teu sexo –/ as mãos grandes e lentas/ mas infatigáveis (…) essas pernas infinitas e fortes/ cabelos e pêlos/ onde me prendo/ como os afogados entre as algas”, escreve Cruzeiro Seixas, lembrando-nos que não há desejo sem um balanço entre estranheza e o reconhecimento profundo que leva a um desejo de se perder, entrar nesse reflexo onde a vida toda fica prisioneira de um impulso de “veneração escrupulosa”, da atracção por uma coincidência perturbadora e que nos lança a essas “fodais recreações”, esse jogo de forças em que um se perde no outro num cruzamento que cria um nó de sangue para o instante. Esse ir e vir que se parece com uma conversa em que contam pouco as palavras, mas no qual os amantes um ao outro se pensam em voz alta: “Mas quem avança em quem? O deus se entrega,/ ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado?/ Quem é o senhor de quem? Ou sempre, ou mutuamente?/ Ou cada um se humilha à sujeição do outro?” (Jorge de Sena).
No final de contas, desde as brincadeiras de crianças entre os lençóis, o leito sempre foi uma “superfície com asas”.
Depois há aqueles que vão por ali num embalo ledo e ligeiro, os que, como Duarte Solano, nos falam do desejo de “num lago espelhar o meu corpo de flor”, e há outros que registam nos versos esse vinco que sobrepõe a volúpia ao gozo lascivo: “Aqui, as cobras mansas, de suaves escamas,/ enroscam-se, mais leves que as velas dum altar,/ que os mastros dos navios,/ que os lenços quando acenam”, escreve Raul de Carvalho.
Bernardo Santareno consegue unir os dois registos e dar forma a um espantoso contraste ao falar-nos de um corpo que, no riso do Sol florido, vê “bebido o lume/ plos loucos cavalos de neve”. E é importante esse sinal de inversão daqueles que, “unidos na carne irmã”, bailam entre pressentimentos. A homossexualidade surge aqui como um resgate da própria força do acto sexual e uma fuga às condições que nos são impostas, primeiro pela natureza, depois pela sociedade. “E porque era todo diferente/ Da estupidíssima obrigação carnal,/ Natural, e sensaborona/ Que há na cartilha da moral.// Eram, e foram os autênticos adolescentes”, escreve António Botto.
Já Almada Negreiros relincha entre os cães e livra-se deles aos coices: “Ergo-Me Pederasta apupado d’imbecis (…) “Ladram-Me a Vida por vivê-La/ e só Me deram Uma!”
Vemos, assim, cosendo-se na “luz assustada da madrugada” das páginas que mais nos valem, um sátiro desregrado, exemplarmente imoral, cheio de talento para imaginar detalhes chocantes, essa música secreta que provoca escândalo entre corpos que não deviam passar além do reflexo, quebrar o espelho, encontrar um rumo dentro dessa superfície embaciada. “Pretendo dar as provas do argumento/ Fodendo d’alto a baixo este convento./ Inda pois que o Capítulo murmura,/ Hei-de fodê-lo através da fechadura!”, avisa José Anselmo Correia Henriques.
Mas depois temos essa espécie de aquiescência, um compromisso de não-agressão e até de docilidade que terá caracterizado a postura de tantos poetas, como Eugénio de Andrade, uma certa regressão, em que a beleza volta a ver-se condicionada e amparada esteticamente, reforçando-se em certos valores clássicos, “sancionada pela mitologia e pelos precedentes literários”, bem longe de qualquer atitude de confronto, de modo até a ser aceite segundo essa tolerância hipócrita da sociedade burguesa, levando o professor de Literatura Portuguesa João R. Figueiredo a afirmar que muita da poesia portuguesa do século XX consiste em tropologias mais ou menos bem-sucedidas para ocultar a homossexualidade de quem fala.
Hoje, tem-se assistido a uma neutralização da homossexualidade, à sua integração e modelação pelo Estado. Esta já não busca fertilidade no desvio à norma, não vira costas ao convencional, mas abraça-o. A homossexualidade ou o homoerotismo são apenas tons na vasta paleta de cinza, e já não pretendem sequer perturbar a nossa boa consciência, vindo-nos com sugestões e quadros capazes de agredir e reinstituir esse desequilíbrio dos actos que tomamos por blasfemos. Há até quem se tenha dado conta do alto teor de aceitação da homossexualidade, que se tornou, mesmo politicamente, “uma marca de distinção — de modernidade, de progressismo, de ‘estilo’ — e um capital cultural para ser exibido publicamente, sobretudo quando nos é oferecido o exemplo do homossexual bonzinho e ao serviço da homonormatividade, o amigo gay que todos temos” (António Guerreiro).
Assim, ao invés do arco-íris se impor como uma marca profana e viciosa, esta é uma homossexualidade “branca”, que conflui com todas as outras formas abusivas e hiperbólicas do princípio da identidade, que exige a integração de tudo, sem qualquer escândalo ou choque, num modelo unissexual, uniformizado. Se antes, como lembrava Cruzeiro Seixas numa entrevista que deu em 2006, “não havia sociedade organizada que admitisse tal monstruosidade”, e “a homossexualidade era tida como uma doença”, o receio agora era de que viesse a impor-se o ideal de uma homossexualidade completamente despolitizada e silenciosa, subtraída às guerras do reconhecimento, de tal modo que o pintor-poeta do surrealismo português assinalava um certo receio frente a essa neutralização da homossexualidade: “só espero que não dêem cabo desta última com esta história dos casamentos”.
E quando a entrevistadora lhe pergunta se receia que esta recue enquanto imposição de liberdade, Cruzeiro Seixas responde: “Sem dúvida, a homossexualidade que está de acordo com a sociedade vigente não é a minha. Penso o mesmo da arte. Os jovens de hoje mal acabam de pintar um quadro já os querem ter pendurados no museu. Desejam estar dentro do sistema…”
Assim, naturalmente, nesta recolha que preferiu uma visão panorâmica, contando com 101 poemas de 101 poetas, perdendo em expressividade, carácter e exemplo, aquilo com que ficamos em virtude das muitas páginas em que tudo se passa num registo demasiado pálido para que se possa sequer falar num regime erótico seja em que sentido for, acaba por funcionar mais como um índice de ocorrências do que uma antologia propriamente, uma vez que as comparências, o tão amplo elenco que se conseguiu com base tantas vezes em escolhas forçadas ou duvidosas (como para fazer corpo e companhia, quando menos autores teriam representado de forma muito mais lancinante essa angustiada busca nos arrabaldes da solidão), peca precisamente pelo regime inclusivo, que não estabelece diferenças essenciais, desde logo entre os poetas que, através da sua clarividência, estabeleceram esta margem truculenta e admirável, e aqueles que aparecem como meros turistas, pintando um quadro com a pressa de ir a correr para o museu para ver se já foi pendurado.