“Sempre fui um defensor do entendimento entre o PS e o PSD”

Eduardo Marçal Grilo garante que o ‘país progride não é com ruturas é com entendimentos’ e que os dois partidos têm obrigação de se entenderem nas questões fundamentais e de encontrarem ‘uma estratégia que seja a estratégia do país’.

Eduardo Marçal Grilo acaba de lançar o livro Salazar e a Educação no Estado Novo, onde faz um retrato do ensino nessa altura, considerando que «só conhecendo bem o passado se consegue perceber o tempo que vivemos e ter uma noção do que será possível perspetivar para o futuro». E a partir daí analisa o atual estado de ensino, defendendo uma maior aposta no pré-escolar, uma vez que entende que é a base para tudo, não fosse ele considerado o ‘pai do pré-escolar’. No entanto, reconhece que as condições económicas ainda representem um travão para a formação. «Se a pessoa tem como única preocupação ou preocupação fundamental ter um rendimento que lhe permita alimentar a família até ao final do mês, educar parece ser a sua segunda prioridade».

Como surgiu a ideia de lançar este livro?

Comecei por querer fazer três ministros que considero que foram muito relevantes durante todo o consulado de Salazar. Não é sobre o Estado Novo todo, não vai até 1974 vai só até 1968 com três ministros: Carneiro Pacheco, Leite Pinto e Galvão Teles e porquê? Porque Carneiro Pacheco marca muito a fase doutrinária do regime, no final dos anos 30 – é ministro entre 1936 e 1940 – e faz aquela lei muito famosa, a Lei de Bases de 1936. E os dois ministros depois de 1955, que conheci pessoalmente, embora com uma diferença de idade muito grande, como é evidente. Leite Pinto e Galvão Teles são dois ministros que olham muito para a frente e alteram, não digo radicalmente, mas substancialmente a política educativa, pois arrancam com a extensão da escolaridade obrigatória, que foi uma coisa muito importante e foi uma das grandes pechas do regime, já que durante tempo demais se manteve três anos de escolaridade, o que era uma coisa ridícula mesmo em termos europeus. Comecei a trabalhar nisso, na recolha de material sobre os três e por variadíssimas razões tinha material suficiente. Claro que deu muito trabalho e o editor achou que valia a pena fazer uma coisa mais ampla e não apenas três biografias.

Disse que só conhecendo o passado é possível perceber o tempo em que vivemos e perspetivar o futuro…

O analfabetismo, obviamente, foi um fator muito decisivo para o futuro do país, mas a ideia era mostrar o regime que apostava muito num sistema muito elitista. Tínhamos um sistema de seleção forte que era feito logo na terceira, quarta classe. Não era o final do ensino.

A maioria desistia cedo…

Só uma pequena parte entrava para o liceu e a partir do chamado quinto ano – que é hoje o nono ano – uma parte muito significativa dos estudantes abandonava. Ou ia trabalhar ou ia fazer alguns cursos, como o de formação de professores do ensino primário, por exemplo. Muitos iam para as escolas técnicas, mas o sistema de seleção para a universidade era muito apertado.

Disse que era visto como uma elite das elites por ser considerado que não era preciso ter tantos quadros qualificados…

Há afirmações nesse sentido e o regime apostava muito em ter uma elite bem formada. Procuro mostrar no livro que o ensino, aqueles que o faziam, como foi o meu caso – por isso digo que fui um privilegiado e como eu, muitos outros – éramos sujeitos a uma série de filtros, mas o ensino era de qualidade. O ensino liceal era indiscutivelmente um ensino de qualidade, com muitos constrangimentos do ponto de vista ideológico, obviamente. Os professores do liceu eram professores de alta qualidade. A maioria dos alunos, não quer dizer que fossem todos, pertencia a uma elite. Por exemplo, na cidade onde vivia, em Castelo Branco, os professores do liceu eram o topo, eram pessoas muito qualificadas na área da história, da linguística, das ciências, das matemáticas, das físicas, etc. Pessoas muito evoluídas e muito bem preparadas. As universidades obviamente que eram muito diferentes do que são hoje.

Hoje até estamos a assistir a uma massificação…

Agora poderemos ter uma massificação, mas naquela altura, era de uma grande qualidade, designadamente na investigação. Por exemplo, Leite Pinto é um grande entusiasta da investigação científica e do conhecimento. É o primeiro ministro que não é de Coimbra. Salazar vai buscar praticamente todos os ministros até 1955 a Coimbra: Carneiro Pacheco, Marco Figueiredo, Pires de Lima que são três ministros muito relevantes, mas depois vai buscar Leite Pinto. Leite Pinto que é um homem muito aberto, formado fora do país, em Paris e casado com uma russa.

Um perfil diferente…

Era um homem do mundo. Marcelo Rebelo de Sousa, que escreve o prefácio do livro, na apresentação chamou-lhe um génio. Era, de facto, um homem muito virado para a frente, com uma grande visão. É interessante, por exemplo, que o Plano Regional do Mediterrâneo feito pela OCDE é resultado de uma proposta dele. Pensei que Portugal tinha aderido, mas afinal quem sugere à OCDE e quem lança este plano foi o próprio Leite Pinto. É um homem com uma abertura muito grande e é a partir dele que a política educativa começa a ter em conta esta coisa tão simples: quanto melhor, quanto mais avançada, quanto maior forem as formações das pessoas melhor pode ser o desenvolvimento económico, maior pode ser o crescimento e maior pode ser o desenvolvimento do país. Esse é um aspeto muito importante, que é uma visão que até 1955 não era tida em conta. Se calhar até 1955 é capaz de ser exagerado, porque é preciso ter em conta o trabalho de Pires de Lima. Pires de Lima era um conservador reformista, mas que acompanhou aquilo que foi o início do processo de industrialização do país. Um processo de industrialização que veio muito do ministro Ferreira Dias, que foi meu contemporâneo do Técnico, era professor quando fui aluno do Técnico, era mais velho que eu, como é evidente. Esse processo de industrialização e de eletrificação do país aparecem em simultâneo, a partir da Segunda Guerra, depois de 1946, mas Pires de Lima percebeu a importância da formação profissional. É ele que estrutura as escolas profissionais, tanto na parte industrial, como na parte comercial, surgindo as escolas industriais e as escolas comerciais. Era um homem minucioso, um jurista eminente, eram tudo pessoas de alta qualidade. O próprio Carneiro Pacheco, que era uma pessoa muitíssimo conservadora e talvez até excessivamente alinhado com o eixo durante a guerra, sai do Governo em 1940. Julgo que Salazar o tira de ministro e envia-o para embaixador no Vaticano porque era muito próximo do regime alemão. Estava muito alinhado com algumas ideias muito extremistas e os discursos dele mostram isso. É engraçado, Carneiro Pacheco é relativamente fácil de estudar, porque quando sai do cargo de ministro e vai para o Vaticano publica um livro que, por acaso tenho há muitos anos, comprei num alfarrabista – tenho a mania de comprar coisas antigas – que se chama Portugal Renovado, onde estão todos os discursos que fez durante essa altura. Os ministros, daquela altura, não são como os de hoje, só falavam de vez em quando.

Ao contrário do que acontece hoje…

Agora os ministros, os secretários de Estado, o Presidente da República… falam todos os dias. Todos os dias temos opiniões e quem daqui a uns anos quiser fazer a história do que essas pessoas disseram vai ter muito trabalho. Mas para responder à sua pergunta, acho que é preciso conhecer bem o passado. Diz-se muita coisa, sem ser baseada no conhecimento. Procurei estudar muito, li milhares de páginas para fazer isto. Aliás, disse na apresentação do livro que durante mais de um ano, em minha casa, a Teresa, a minha mulher, já não podia ver livros de Salazar, de Carneiro Pacheco, os decretos de lei, etc., etc. Há uma pena que tenho, em 2003 ou 2004, quando foi o centenário do nascimento de Leite Pinto fui convidado para fazer uma conferência sobre ele na Sociedade de Geografia e a família pôs à minha disposição um conjunto de 20 e tal volumes com tudo aquilo que fez: os decretos, as entrevistas, as declarações, os discursos, etc. E isso desapareceu. Devolvi obviamente e cheguei à conclusão que se calhar não devia ter devolvido, porque esse arquivo é muito relevante, porque é a vida de um ministro, que foi muito importante. Ainda o conheci. Aliás, conto no livro os dois encontros que tive com ele. Era uma pessoa muito aberta, muito histriónica, com sentido de humor, um homem dedicado à causa pública, indiscutivelmente, e penso que esse arquivo foi vendido ao quilo e algum alfarrabista o tem, sem saber a importância que isso tem. Aquilo devia estar na biblioteca, ou no Instituto Superior Técnico ou na Torre do Tombo. Ainda por cima estava todo encadernado, com aquelas encadernações em pano que são ótimas, magníficas, muito bem organizado, por ordem cronológica. Quem também não me deu tanto trabalho foi Galvão Teles. Primeiro porque sou muito amigo de um filho dele, que é meu colega do curso do Técnico, o Zé Carlos Galvão Teles, que também é engenheiro mecânico, com quem falei, com quem conversei sobre o pai, porque percebi que era importante ouvir um bocadinho como ele era, não apenas como ministro, mas como pai, como funcionava em casa, quais eram as conversas ao almoço com os seus filhos, a grande a relação que tinha com a mulher, porque tudo o que fazia testava com a mulher, que era uma grande jurista. Além disso, conheci-o pessoalmente quando foi reintegrado por ter sido saneado da faculdade de Direito, naquele processo louco de terem posto as pessoas fora. Acabou por ir para o Brasil, onde esteve algum tempo e quando estive na Direção-Geral do Ensino Superior, quando era ministro, uma das minhas tarefas foi contactar as pessoas para serem reintegradas, porque o processo que se passou naquela altura tinha sido anárquico. Foi ter comigo ao meu gabinete e dei conta desse processo de reintegração e percebi uma coisa muito importante, não tinha nenhum ressentimento. Tinha sido maltratado, mas não tinha nenhum ressentimento. Era uma grande figura. Portanto, conhecer o passado enriquece-nos muito para escaparmos um bocadinho a esta espécie, é um termo muito batido, de espuma dos dias. Todos os dias aparecem notícias novas, as pessoas estão permanentemente a falar do acontecimento do dia e os jornalistas aí obviamente cavalgam naquilo que interessa às pessoas. Procurei escapar-me dentro daquilo que é a realidade de hoje, mas para perceber o dia de hoje é preciso saber o que está aqui. 

Fala dos méritos destes ministros. Considera que os trabalhos não serão tão reconhecidos por terem sido ministros antes do 25 de Abril? 

Há uma espécie de um anátema sobre as pessoas, em que nalguns casos é manifestamente injusto. O sistema era um sistema antidemocrático, iliberal, sem liberdades de qualquer espécie. Era um regime opressivo, muito autoritário, muito intolerante, mas pelo menos tentei olhar para as pessoas como pessoas. Se isto foi feito por pessoas então quis saber quem eram essas pessoas e o que fizeram. 

E com enquadramento da altura…

E com o enquadramento em que as pessoas estão. Numa fase do livro interrogo-me em como é que foi possível que pessoas como estas dissessem estas coisas, que tivessem feito algumas destas coisas. 

No livro diz que há uma altura em que o país acorda um bocadinho para o drama do analfabetismo, depois mais tarde avança para o ensino profissional. Isso mostra alguma evolução, mas não a desejável? 

Claro, como é evidente. O país acorda para o analfabetismo, sobretudo com Pires Lima, que lançou a campanha de educação de adultos. Depois Leite Pinto faz uma lei que dizia que para se entrar na função pública tinha de se ter, pelo menos, a quarta classe, que era uma coisa que não existia, eram contratados analfabetos, isto é um salto. O problema é que foi tudo muito lento e partiu-se de uma situação, em que o país tinha reduzido a escolaridade obrigatória de cinco para três anos, uma coisa impensável agora. É impensável imaginar que podemos caminhar para cinco anos de escolaridade e dizermos não, não precisamos disto, basta-nos três. Pensar que alguém viesse e dissesse que a escolaridade obrigatória não devia ser até aos 18 oito anos mas até aos 14 ficaríamos todos muito chocados porque acreditamos que estamos numa sociedade do conhecimento, damos importância ao facto de as pessoas terem uma formação o mais avançada possível, na importância da ciência, do crescimento económico, em que tudo isto está diretamente relacionado com a formação, com o conhecimento, com a ciência, com as startups e com a capacidade que as pessoas têm para inovar, para fazer novo, para a mudança, etc. O país não fez nada disso naquela altura. Mas não se pode analisar os anos 30 com os mesmos olhos com que analisamos o mundo hoje, porque na altura, o que tinha a Europa? Tinha como regimes principais – e aparece num capítulo a idade dos extremos – de um lado o regime nazi e o regime fascista italiano e do outro lado aparecia a Rússia com um sistema comunista, que implantou um regime completamente diferente, havia ainda uma frente de esquerda em Espanha e uma frente de esquerda em França. Salazar quis sempre marcar uma grande diferença em relação aos regimes totalitários, designadamente em relação ao regime nazi e ao italiano. E o Governo de Salazar era de um anticomunista feroz, o comunismo para ele era um inimigo permanente. O nosso regime anda ali um bocadinho entre uma coisa e a outra. Carneiro Pacheco na lei de 1935 aproxima-se muito dos regimes autoritários. A Mocidade Portuguesa é claramente, não digo uma cópia, mas é inspirada muito nos movimentos chamados Balila, em Itália, ou da juventude hitleriana ou a partir de 1936/37 da juventude espanhola franquista, em que há uma grande aproximação à Igreja Católica, em que aparecem os crucifixos nas escolas, que é uma medida que cola muito o regime à Igreja Católica, que é um dos grandes baluartes de apoio ao regime. E depois? Depois, isto vai-se atenuando. Por exemplo, Galvão Teles praticamente acaba com a Mocidade Portuguesa porque nasce como uma organização pré-militar, aliás um dos capítulos chama-se Cada Jovem um Soldado, e põe fim à parte militar, o que lhe trouxe problemas no relacionamento com a estrutura militar, mas é uma coisa que faz e que Salazar concorda, porque não está de acordo com aquela militarização da juventude, tornando a Mocidade Portuguesa praticamente numa atividade ligada à área do desporto e do extraescolar. O que procurei mostrar no livro é que a evolução é feita de forma muito lenta e sempre muito condicionada. Salazar tinha sempre medo de arriscar, mesmo o processo de industrialização que preconiza e apoia é sempre tudo pequenino. Isto é, vamos fazer uma cirurgia, mas a cirurgia é pequenina. 

Acha que isso poderá ter condicionado o estado da educação que temos em Portugal? 

Acho que condicionou. A baixa escolaridade obrigatória foi muito determinante e reflete-se nas dificuldades que ainda temos hoje. 

Disse que a educação é um salto para o desenvolvimento económico do país. Hoje temos a geração mais preparada de sempre, mas em termos económicos Portugal anda sempre neste rame-rame…

Temos a geração mais preparada de sempre, não discuto isso, mas ainda estamos longe daquilo que podemos e devemos ter. Isto é, demos um salto muito grande, por exemplo, relativamente às licenciaturas no grupo etário entre os 25 e os 34 e o último relatório da OCDE mostra isso mesmo, passámos de 27% para 47% em Portugal entre 2011 e 2021. Em dez anos damos um salto enorme de cerca de 20%, mas há o resto. Os que estão acima dos 34 anos ainda tem níveis baixos e ainda temos muitas pessoas só com o nono ano de escolaridade. 

E vê-se pelos próprios Censos, em que o ensino superior tem muito mais peso do que tinha em anos anteriores, mas ainda aparece o analfabetismo… 

Ainda há o analfabetismo remanescente, que é significativo e é preciso combater. É um bocadinho aquela ideia de que ninguém deve ficar para trás. O Presidente George Bush criou, na altura, um slogan a dizer isso e temos que fazer um bocadinho isso, porque em todos os nossos níveis há um esforço muito grande a fazer. Mas esse esforço muito grande é cá em baixo. É dar melhores condições às famílias, quer para as creches, quer para o pré-escolar, ou seja, no que se passa entre os zero e os seis anos de idade. Aí há um enorme esforço a fazer. Deu-se um salto muito grande no pré-escolar, é indiscutível e não digo muito isto porque era ministro no tempo em que isso se fez e não quero estar a valorizar excessivamente. Não gosto desses autoelogios. 

É considerado o pai do pré-escolar… 

E foi aí que se deu um salto muito grande. 

Continua a defender que é a base da educação?

É a base, mas ainda há uma fatia que não é abrangida, porque aqueles que não têm pré-escolar são os que mais necessitam dele. Os que ficam de fora são aqueles que mais necessitam, precisávamos mesmo de cobrir os 100% das crianças com três, quatro ou cinco anos. Evidentemente que 100% é impossível porque há sempre pequenas camadas que ficam de fora, mas o esforço a fazer é cá em baixo e tem de ser imenso. O último relatório apresentado pela SEDES, em que colaborei na parte educativa, insisto muito nesta ideia das creches e do pré-escolar ou seja, em dar apoio às famílias e aos miúdos na sua socialização. É muito, muito importante incluir estas pessoas. O grande combate pela inclusão faz-se cá em baixo, não se faz no ensino superior, faz-se cá em baixo, nos mais pequeninos. 

E medidas como o Governo apresentou das creches gratuitas poderá dar um incentivo? É certo que fica aquém das necessidades…

É preciso caminhar. É preciso fazer mais e quanto mais se fizer e mais depressa melhor. Evidentemente que há constrangimentos financeiros. Por exemplo, o pré-escolar quando se fez em 1996/97, o Governo meteu, desculpe a minha linguagem, uma pipa de massa, custou muito dinheiro. Custou dinheiro aos contribuintes, a nós todos. Mas valeu a pena? Acho que valeu imenso. Tudo o que possa ser feito por estes miúdos, para estas camadas, que são as mais desfavorecidas, melhor. Podemos de forma muito simplista partir o país em dois. Há aqueles que já perceberam que é muito importante formar, qualificar, saber, estudar, etc. e há uma parte da população que já percebeu isso, mas há uma outra parte que ainda não apanhou isto por duas razões. Uma por razões económicas, ainda há muitas famílias que pensam que o melhor é pô-los a trabalhar o mais cedo possível para terem mais rendimento mensal. Por outro, o investimento em educação não é tão bem compreendido quanto na outra camada. Nesta ideia simples temos uma espécie de país dual e tudo o que possa ser feito, nomeadamente atrás destas medidas, como as creches gratuitas são muito importantes e é um bom começo, porque faz muito pela educação e pela melhoria das qualificações da população no seu conjunto. E há aqui uma questão que me parece muito relevante: as condições económicas das pessoas influenciam muito, porque se a pessoa tem como única preocupação ou preocupação fundamental ter um rendimento que lhe permita alimentar a família até ao final do mês, educar parece ser a sua segunda prioridade, quando a educação tem de ser uma preocupação das famílias e também dos governos. 

Já há alertas para o risco de algumas pessoas daqui a uns anos não conseguirem estar no mercado de trabalho face à evolução tecnológica por não terem formação e por a sua profissão deixar de existir… 

Não são recicláveis. O meu livro anterior chamava-se Não tenham medo do futuro e dizia que era preciso ter uma grande formação de base, porque se os miúdos não tiverem todos os meios, se não tiverem uma grande formação de base – ou seja, conhecimentos científicos, atitudes, comportamentos e valores, que são os três pilares que estou sempre a enumerar – quando ocorrerem as alterações que referiu ficam num impasse. Por exemplo, uma empresa entra num processo de digitalização ou altera os seus equipamentos e passa tudo a ser computadorizado, isso implica ter um maior conhecimento, uma maior formação em matemática e ter uma maior capacidade para pensar, para imaginar, para se integrarem. A formação de base é fundamental, quem não a tiver fica fora do comboio.

Essas discrepâncias na educação foram visíveis durante a pandemia. Na última entrevista que deu ao nosso jornal chamava a atenção para esses problemas, em que quem tinha melhores condições conseguia acompanhar melhor as aulas, sem falar na falta de computadores…

Houve a falha dos computadores e a falha do apoio familiar. Não é por acaso que as coisas são menos difíceis ou mais fáceis em famílias em que os pais tenham uma grande formação, em que os pais são, por exemplo, licenciados ou têm uma formação avançada e, por isso, estão mais sensibilizados para a educação. É curioso, escrevi um livro que se chamava Se não estudas estás tramado e o título vem do seguinte, uma vez em Londres, numa reunião de estudantes que estavam em universidades inglesas – na escola onde estava, a Imperial College, estávamos no intervalo do almoço – e estavam três ou quatro raparigas e perguntei de onde é que eles vinham e onde tinham estudado. Estava uma rapariga que era do Seixal, estava a fazer um doutoramento no King’s College e respondeu que o pai era fuzileiro e sempre lhe disse: ‘Se não estudas, estás tramada’. E é aquilo que os pais devem dizer aos miúdos: ‘Se não estudas, estás tramado’.

Depois há o reverso da medalha: há uma grande evolução em termos educacionais, mas podem faltar profissões básicas como, por exemplo, um calceteiro, um sapateiro por já ninguém querer essas profissões…

Claro, evidente. Mas há que encontrar equilíbrios nestas coisas. Não podemos ter um país em que somos todos engenheiros ou somos todos formados em direito ou somos todos médicos ou somos todos biólogos. Uma coisa é certa, é preferível ter um calceteiro alfabetizado do que ter um calceteiro analfabeto. É preferível ter o porteiro do hotel que saiba falar inglês e que tenha uma formação do que ser analfabeto. Não temos dúvidas quanto a isso. 

Aí já é uma opção e não uma necessidade… 

Exatamente. Em tudo tem de haver equilíbrio. Sou muito anti-extremista e com a idade tenho vindo a acumular mais dúvidas do que certezas e faz-me muita impressão as pessoas que têm muitas certezas. Como é que as pessoas podem ter muitas certezas? É tudo tão complexo. Todos os problemas têm uma enorme complexidade. Olhe para os problemas que temos hoje, a transição energética, o combate às questões climáticas, as desigualdades, o combate à pobreza, todas elas são questões de enorme complexidade. Como se combate a pobreza? Quais são os planos? É preciso ter uma boa formação de base para fazer isto, é preciso partir a questão da pobreza em segmentos e perceber que há uma questão social, há uma questão económica, há uma questão cultural. Há questões específicas que têm de ter um determinado tipo de tratamento. Não basta dizer que para resolver o problema da pobreza basta aumentar os vencimentos. Não é só. 

Como se costuma dizer não é atirar o dinheiro para os problemas… 

Não basta atirar dinheiro para os problemas. Tenho muito a ideia de que vale a pena criar ambiente de esperança nas pessoas. Uma das críticas que faço muitas vezes à comunicação social é que as notícias são dadas de forma a que as pessoas tenham tendência a perder a esperança. Não podemos perder a esperança, porque é aquilo que nos aguenta. Há outras pessoas que aguentam com a fé, são pessoas religiosas, acreditam muito numa determinada coisa, mas a esperança, a ideia de que somos capazes é muito importante. Uma pessoa quando tem um problema não podemos criar-lhe mais um outro problema, temos é de ajudar a resolver esse problema, dar-lhe a esperança e dizer-lhe: ‘Tu és capaz de resolver, estamos aqui para apoiar e há instrumentos para poderes ultrapassar’. E isto deve ser aplicado nas variadíssimas vertentes da vida, seja a vida pessoal, seja a vida profissional, seja o que for. Obama dizia ‘sou um otimista moderado’. Também sou um otimista moderado, tenho uma visão positiva das coisas, mas com muita moderação face à necessidade de haver tantas coisas a fazer. Hoje em dia, os desafios que temos pela frente são todos imensos. No seu caso tem uma vida que permite ter um conhecimento das coisas, passam por si por dia não digo milhares, mas centenas de informações e consegue distinguir o que é mais complexo do que é menos complexo, distinguir o que é exequível do que não é exequível. Outra coisa que me parece muito importante referir é o timing das coisas. As coisas têm de ser decididas em tempo e temos um bocadinho a tendência para atacar os problemas com algum atraso. Vamos sempre um bocadinho atrás.

É correr atrás do prejuízo?

Exatamente, não nos antecipamos. É preciso antecipar. Por exemplo, trabalhei numa instituição durante 30 anos, em que uma das preocupações que tivemos – certamente nem sempre fizemos bem – era antecipar. É tentar antecipar o futuro, é perceber o que é possível que venha a ocorrer. Hoje isso é muito difícil de fazer isso e porquê? Porque estamos num mundo com um futuro muito, muito imprevisível. Suponha que fazíamos esta entrevista no final de 2019. O que se passou de 2019 até agora? Em três anos tivemos uma pandemia que durou dois anos e tal, que matou milhões de pessoas, alguém esperava? Com exceção de quatro ou cinco pessoas em todo o mundo, entre eles o Bill Gates e pouco mais é que anteciparam isto e depois veio uma guerra que também ninguém esperava. E agora pergunto-lhe, e em 2023? Tem alguma ideia do que vai acontecer? 

Vamos esperar que seja mais calmo…

Aí está, temos de ter esperança. Podemos começar a imaginar, a ter visões catastrofistas porque podem acontecer coisas horríveis e 2023 pode ser um ano catastrófico, por exemplo, poderemos vir a assistir a uma crise financeira brutal em todo o mundo, a uma guerra a escalar, mas também podemos dizer ‘O que temos de fazer para evitar isso’. Se olharmos para o discurso do atual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres – com quem tive a honra e o privilégio, primeiro de ser amigo dele e depois de ter trabalhado com ele durante quatro anos no Governo. É uma pessoa extraordinária, muito fora de série, muito fora do habitual – vimos que estamos a caminhar para um abismo, em termos climáticos, no sentido em que estamos a dar cabo disto. Estamos a destruir o planeta. Não sei se já viu o vídeo que simula a Assembleia-Geral das Nações Unidas, em que entra um dinossauro? O dinossauro vai ao microfone e diz ‘Tenham cuidado. Sei o que é a extinção. Fomos extintos pela queda de um asteroide, mas vocês estão a dar cabo disto. Não façam isso. Protejam-se. Não cometam erros que levem à vossa extinção. Nós dinossauros sabemos o que é a extinção’. E nós arriscamos extinguir-nos por nossa ação. Está perfeitamente provado que é por ação do homem que está a ser destruída uma grande parte do planeta que é uma coisa fantástica. O planeta é uma coisa linda e estamos a dar cabo da vida dos oceanos, da vida das florestas, do ambiente e do ar que respiramos.

Disse que tem cada vez mais dúvidas e duvida das pessoas que acham que têm todas a certezas. Isso levou-o a afastar-se da vida política? 

Não sou um homem de partidos, porque gosto de pensar pela minha própria cabeça e de não ter nenhum constrangimento de ordem coletiva. Penso por mim, sou independente, o que não quer dizer que seja neutro. Sou capaz de distinguir e dizer quem tem razão é este ou quem tem razão é aquele. Ou gosto mais desta solução do que gosto daquela. Em Portugal há uma espécie de os independentes do PS, os independentes do PSD e os independentes do PCP. Não, sou um independente. Agora não sou neutro. Mergulhei na vida política durante quatro anos como ministro e tenho muita honra de ter exercido esse cargo. 

Aderiu ao PS em 1975?

Entrei em 1975 e saí em 1981, quando percebi que não tinha jeito. Não tinha jeito para partidos, aquilo não encaixava comigo, mas gosto de analisar a política. Aliás, fiz um programa de televisão durante quase seis anos com Luís Nobre Guedes, em que me fartei de aprender porque li muito. 

E como vê o aparecimento destes fenómenos de partidos mais radicais como o Chega?

Não acho que o Chega seja um partido radical, é um partido antissistema. É contra isto, não gosta disto, quer uma coisa diferente, quer uma Constituição diferente. É um partido que se coloca um bocadinho à margem disto, embora entre no jogo democrático e seja reconhecido pelo Tribunal Constitucional. É um partido com características muito especiais. Não me vou pronunciar sobre aquilo que o partido possa representar. Fui sempre um defensor do entendimento entre o PS e o PSD nas questões sensíveis que o país tem. E são tantas, como o entendimento relativamente à decisão do aeroporto e também parece que em algumas questões constitucionais estão os dois de acordo. O país progride não é com ruturas, sou contra ruturas e acho que são altamente perniciosas. É preciso é entendimentos, não é consensos. Não gosto da palavra consensos. Gosto da palavra negociação. Merkel da CDU durante anos governou com o USPD, com os sociais-democratas. Simplesmente são coligações que se fazem e os alemães fazem isso muito bem, demoram dois ou três meses a preparar o Governo porque negoceiam tudo aquilo que vão fazer. Isto é, o Governo torna-se uma espécie de executante do acordo que foi negociado. E o que é a negociação? É encontrar uma solução que não é nem a proposta de um, nem a do outro, é uma solução que é acordada entre os dois.

Com o novo líder do PSD é mais fácil ou mais difícil fazer entendimentos com o PS? 

Não sei se é mais fácil ou se é mais difícil. Acho que é obrigação deles entenderem-se. Acho que têm a obrigação para com o país, o PS e o PSD se encontrem e digo isto há anos: o PS e o PSD se encontrem para que, nas questões fundamentais, tenham uma estratégia que seja a estratégia do país. Não é uma espécie de união nacional, em que está tudo de acordo e há quem mande. Não, são negociações e que abranja questões como o combate à pobreza ou o combate contra as desigualdades, a política de imigração, etc. 

São todos problemas atuais…. 

São problemas do Estado, são problemas de interesse nacional. Estes problemas deviam ser abordados por estes dois partidos, porque, do ponto de vista ideológico propriamente dito, não sei se haverá tantas diferenças quanto isso. Conheço-os mal porque conheci o Partido Socialista há quase 50 anos e em 1981 é uma coisa e hoje já é… 

Do século passado? 

Já parece que é da Idade Média. Claro que os partidos têm opiniões diferentes, têm pessoas com grupos diferentes e isso é enriquecedor. A diversidade é útil, é enriquecedora, mas é essencial que nas questões fundamentais haja um acordo para estas matérias. Faz-me muita impressão estas lutas. Tenho vindo a dizer que somos uma espécie de país de conflitos inúteis e processos intermináveis. 

Um deles é o caso do aeroporto…

E não só. Temos processos judiciais que já se arrastam há anos. São coisas um pouco incompreensíveis. 

Marcelo, que escreveu o prefácio do seu livro, considerou-o um grande ministro da Educação… 

É a minha maneira de ser. 

Mas ficou contente com esses elogios? 

É impossível não ficar com uma satisfação interna, quando uma pessoa com a qualidade intelectual que tem Marcelo Rebelo de Sousa me faz um elogio público.