‘Os pilares do Estado democrático estão todos a abanar’

Numa conversa em sua casa, a historiadora falou sobre o seu percurso, o momento atual e as razões do atraso português.

Das colunas da aparelhagem flui uma música ora suave, ora agitada. A caixa do CD indica que se trata de um quarteto de cordas do período intermédio de Beethoven. Sentada no seu sofá de eleição, de tempos a tempos a historiadora puxa da cigarreira pousada ao lado de um pequeno monte de livros, e tira de lá um cigarro. Entre acordes e baforadas, Maria de Fátima Bonifácio dá-nos uma preciosa lição de história. Sem precisar de guião nem de auxiliares de memória.

Tem uma televisão pequenina e umas colunas de som imponentes. Posso deduzir que vê pouca televisão e ouve muita música?

Exatamente. A televisão que eu tinha estava muito velha, e a minha filha, quando veio cá passar uma semana, quis-me oferecer uma televisão. Eu disse que sim, com a condição de ser pequena. Detesto entrar em salas completamente dominadas pela televisão. Esta chega-me perfeitamente para o que quero: vejo as notícias, às vezes vejo filmes, tenho Netflix mas agora está avariada, o que também não faz grande diferença. Não sou uma pessoa de estar colada à televisão.

Mas há programas muito bons.

Vejo sempre ao domingo à noite, e recomendo que não perca, o Mythos, com o José Pedro Serra. São lições de primeiríssima água, maravilhosas. Ele mergulha na Antiguidade clássica com um à-vontade que até parece que é familiar com aquela gente toda, e conta aquilo muito bem contado, sem um papel, sem nada. Faz-me lembrar as palestras que o A. J. P. Taylor [historiador britânico, 1906-1990] fazia nos anos 60 e 70, em que era só ele, com uma cortina cinzenta por trás, a andar de um lado para o outro no palco, e era o programa mais visto da BBC, tinha uma audiência popular incrível. Ele era um grande académico e nunca baixou a fasquia, mas explicava as coisas tão bem e contava histórias tão bem – porque o segredo da História é contar histórias, não é? – que prendia as pessoas. Tem programas, por exemplo, sobre como as guerras começam, ‘How Wars Begin’. E apresentava uma série de cinco guerras e como tinham começado. Sempre com teses muito provocatórias, como era timbre dele. Tão original, uma visão tão pessoal, que prendia a Inglaterra toda ao programa, sem um cenário, sem nada.

Também reparei ali que ali à entrada tem várias fotografias de viagens. Gosta de viajar?

Os meus pais viajavam imenso e a partir dos nove anos começaram a levar-me com eles. 

Que sorte!

Com 15 anos conhecia a Europa toda, tirando a Europa do Norte. Fomos à Alemanha, à Áustria, a França, aos Países Baixos – fiquei a conhecer bastante bem o core da Europa. Depois fui para Inglaterra sozinha, passei três verões seguidos em Londres. A seguir fui para a Suíça – e voltei quando tinha 20 ou 21 anos. Isso abriu-me imenso a cabeça. Na Suíça estive a fazer tudo menos a estudar, foram férias pagas durante três anos. O meu pai tinha uma confiança ilimitada em mim, nem sonhava a manta que eu pintava. [risos] Passava-lhe a confiança num instantinho. Depois vim para Lisboa mas mesmo essa passagem pela universidade de Genève fez-me bem porque notei que quando entrei aqui para a faculdade tinha um nível académico bastante superior à generalidade dos meus colegas, que tinham acabado de sair do liceu, muitos virgenzinhos.

Depois de estudar lá fora, quando regressa não sente isto aqui um bocadinho provinciano?

Senti, claro. Senti que estava numa aldeia. Mas a minha passagem da Suíça para Lisboa não foi direta. Depois de estar em Genève três anos cismei que queria ir para Berlim, estudar Sciences Po [estudos políticos], porque me tinha apaixonado pelo Rudi Dutschke, que era o Cohn-Bendikt [líder estudantil do maio de 68 em Paris] alemão. Coisas de miúda. Ainda disse ao meu pai que queria ir para Berlim. ‘Se queres ir para Berlim, fazes como quando foste para Genève. Compro-te um bilhete de avião, vais lá e inscreves-te, arranjas um quarto e voltas, e quando começarem as aulas regressas’. Estava de férias de Natal em casa. Depois comecei a pensar: ‘Mas eu vou para Berlim fazer o quê? Atrás do Rudi Dutschke, que nem sei se lhe ponho a vista em cima? Isto não tem pés nem cabeça. Vou mas é trabalhar para Lisboa’. E uma noite disse ao meu pai: ‘Pai, preciso de falar consigo. Já não quero ir para Berlim. Afinal vou trabalhar para Lisboa’. O meu pai percebeu que eu não sabia o que queria na vida. Levantou-se e disse: ‘Eu venho já’. Saiu da sala, foi ao quarto, e dali a um bocadinho aparece com três notas de conto na mão, como se fosse um baralho de cartas. ‘Pega lá, é o último dinheiro que eu te dou até ao fim da vida’. Salvou-me. Vim para Lisboa, aluguei um quarto na avenida de Roma, tinha de pagar quarto ao fim do mês e que me alimentar. Gostei logo do primeiro emprego que me apareceu .

Fazia o quê?

Andava de loja em loja a vender Diners Club. O Diners Club era um brinquedo – é o termo – que o Manuel José Homem de Mello arranjou para entreter a irmã. Criaram uma pequena empresa para vender Diners, que ainda era uma coisa pouco conhecida, nas lojas. Ganhava três contos por mês, e era tudo o que tinha para me governar. Estava habituada a viver um bocadinho à larga. Mas habituei-me instantaneamente. A seguir passei para outro emprego melhor, e acabei na Varig. Mas odiava aquilo.

Porquê?

Era secretária do diretor comercial. Passava o dia a mandar cumprimentos.

E não tinha bilhetes à borla?

Tinha, mas isso não compensava, porque era uma vez ou duas por ano. Fui a Nova Iorque uma vez e quando me casei fui de borla ao Brasil em primeira classe. A primeira classe da Varig era extraordinária, fomos e viemos em primeira e ficámos no Copacabana Palace com um desconto para aí de 50%.

Então sempre tinha as suas compensações.

Não compensa todos os dias a pessoa levantar-se e ir escrever: ‘Com os nossos melhores cumprimentos, não sei quê, não sei quantos…’ Já não podia com aquilo. E estava a ficar profundamente infeliz. Aí, o meu marido disse: ‘Não te quero infeliz, portanto vais sair da Varig e vais tirar um curso de que gostes’. ‘O curso de que gosto é História’. Fui para História e segui a minha vida. Acabei o curso em 78, com uma interrupção em 74-75. Não me inscrevi, andei só a ver a revolução, porque queria, já agora, fazer o curso direitinho, e foi aquela altura da balda das passagens administrativas. Em novembro de 74 ainda fui para a televisão, levada pelo Vasco Pulido Valente, imagine, a quem eu tinha pregado um grandessíssimo raspanete numa reunião. E quando pensei que ele nunca me ia perdoar, telefona-me uma semana depois a perguntar se eu não quero ir trabalhar com ele. Só o Vasco… Estive lá até março de 80, quando o Joel Serrão me convidou para ir para assistente dele na Universidade Nova, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas [FCSH].

Não sabia que tinha sido assistente do Joel Serrão.

Assistente… Eu é que era a catedrática, porque ele nunca preparou uma aula ou assistiu a uma aula minha. Nem o programa fez. Entregou-me a cadeira, um cadeirão enorme – História Social e Económica do Antigo Regime na Europa, uma coisa brutal.

Mas isso também a deve ter preparado muito bem.

Não foi tempo perdido. Eu gostava imenso.

O catedrático tinha essa prerrogativa de passar a ‘batata quente’ e ir à sua vida?

Exatamente. Ele nunca assistiu a uma aula minha, não fez o programa da cadeira, não me deu bitates nem tópicos para o programa, eu é que era muito boa aluna, porque tive essa preocupação, e apesar de tudo estava relativamente bem preparada. No primeiro ano só tinha tempo para as aulas, mas o segundo ano já foi fluente, e o terceiro também, e depois fui fazendo a minha tese.

Gostava de dar aulas?

Gostava. Eram turmas de 80, 90, 100 alunos, e tinha sempre um lote deles muito bons. Nos anos 90 isso mudou, esse lote começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até que por fim não tinha um único muito bom aluno.

Acha que isso se deveu a quê?

À degradação do ensino do liceu.

Degradação ou democratização?

Degradação. Eram completamente analfabetos, não tinham a menor preparação, nunca tinham lido um livro… E desinteresse. Estavam-se nas tintas, queriam era passar. E portanto a alturas tantas fartei-me mesmo de dar aulas a gente completamente impreparada. Em 2012 reformei-me.

Hoje ainda deve ser pior.

Eu sei de coisas que se passam hoje na faculdade, porque tenho amigos que dão aulas, que fico atónita. Falam de umas salas para as outras ao telemóvel, dão gargalhadinhas, fazem selfies nas aulas, comem nas aulas, bebem nas aulas – como se estivessem na praia.

Mas isso é estranho porque se diria que ao mesmo tempo hoje há muita competição.

Pode haver, mas nas economias e nesse tipo de áreas… As humanidades morreram. E depois, com todas estas teorias de género, os wokes e o diabo a sete, espatifaram tudo.

Já falei com professores que me diziam que os alunos de hoje são tão bons como os de antigamente.

Não é verdade. Pelo menos na FCSH, onde eu dei aulas. Tinha sempre um lote de uns dez alunos francamente bons, aliás muitos deles ficaram na faculdade, tornaram-se meus colegas, e esse lote foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, até que por fim não tinha ninguém.

Há tempos estive na Faculdade de Direito, e contaram-me que o Pedro Santana Lopes foi o único aluno que depois do 25 de Abril fez questão de repetir o curso a partir do 3.º ano, porque não gostava da ideia de ter tido passagem administrativa.

Olha, um homem sério.

Para passarmos à atualidade, há quem diga que por muito menos do que se passou agora, em que tivemos sucessivos casos e escândalos no Governo, Jorge Sampaio mandou dissolver a Assembleia quando Santana era primeiro-ministro.

Disso não tenho a menor dúvida. Jorge Sampaio estava à procura de um pretexto para entregar o poder ao PS, isso foi notório. Demite-se um ministro do Desporto – se ainda fosse da Economia ou das Finanças, um ministro importante, percebia-se – e ele aproveita imediatamente para dizer que estava em causa ‘o regular funcionamento das instituições’? Achei uma vergonha. Para mim foi transparente que ele arranjou esse pretexto para dissolver a Assembleia… É verdade que o Santana Lopes tinha uma coisa grave contra ele: não tinha legitimidade própria.

Não tinha sido eleito.

Cometeu o erro de aceitar o cargo sem ir a eleições. Deve ter sido o maior erro político que cometeu na vida toda. E isso facilitou a dissolução da Assembleia e a demissão do Governo. Agora, mesmo descontando essa falha democrática de ele não ter legitimidade própria, não tem comparação possível com o que se está a passar. Isto é um descalabro. Todos os dias há qualquer coisa. É cada cavadela, cada minhoca. Já lhes perdi a conta, já nem sei em quantos vamos.

Se bem me lembro, começou com o caso de Miguel Alves, o ex-autarca de Caminha. E depois tivemos a Alexandra Reis, que saiu da TAP com uma indemnização de 500 mil euros e quatro meses depois era nomeada pelo governo para a NAV.

Eu gostava de saber porque é que ela, estando seguramente a ganhar 20 mil euros por mês na NAV, a seguir vai para secretária de Estado do Tesouro ganhar cinco mil euros. Nunca ninguém explicou isto.

Mas também se pode colocar a coisa ao contrário: já tinha ganho tão bem que não precisava de mais dinheiro.

Está muito enganado. Se há coisa que aprendi na vida é que o dinheiro nunca chega, nunca é de mais. Mesmo para os milionários. O Elon Musk também nunca tem dinheiro que chegue. Uma coisa que me aflige é que vivemos um momento… como é que hei de dizer? O dinheiro foi sempre muito importante e muito cobiçado. Mas acho que nos últimos vinte anos ou trinta vivemos numa época de ganância como eu não me lembrava. De ganância, de ostentação… Quando eu era miúda, a riqueza se escondia ou pelo menos…

Era-se discreto?

Era-se discreto. Ninguém ostentava. Hoje em dia é o contrário. Qualquer tipo com 25 tostões quer logo ter um Porsche. Pelo menos um Porsche e se possível um barco na marina.

Disse que somos um país pobre…

Paupérrimo.

Mas vê-se muita gente com dinheiro.

O parque automóvel português é impressionante. Só se vê Mercedões, BMWzões, Audis enormes. Mas não tenha dúvidas de que é um país muito pobre. Sempre foi.

Existem razões históricas para isso? Há países que eram pobres e deixaram de ser. Os nórdicos eram pobres, tanto que emigraram muito para os Estados Unidos. A Irlanda era pobre…

E deixou de ser.

É uma fatalidade Portugal ser um país pobre?

Existem 333 mil teses sobre o atraso económico português, portanto eu não tenho de maneira nenhuma a pretensão de resolver este problema. Acho que está muito ligado, por um lado, ao estatismo que marca a fundação da nacionalidade. Foi o Estado que fez Portugal, não foi Portugal que fez o Estado. Isso traz uma marca através de toda a história portuguesa e acentuou-se com o liberalismo. Porque quando chegamos a 1834, acaba a Guerra Civil e é preciso montar um regime liberal, é preciso montar uma máquina de Estado que não existia. Secretarias de Estado, tudo isso. A classe média portuguesa, que era desta espessura [coloca o polegar e o indicador muito próximos], é um produto do Estado. E mesmo quando chega ao fim do século XIX, tudo o que era advogado tinha o seu gancho no Estado para complementar o seu rendimento. A dependência do Estado…

Vem logo da matriz, portanto.

Portugal nasceu de uma reconquista, não nasceu de uma junção de reinos, como a Espanha ou a França. Numa reconquista você não pode ter senhores feudais à solta, a levantar homens em armas e a conduzir campanhas de acordo com a estratégia de cada um. Tem de ter um comando unificado. E isso marcou decisivamente o resto da história de Portugal. No tempo de Afonso III [quinto Rei de Portugal, reinou de 1249 a 1279], os três pilares do Estado – o aparelho fiscal, judicial e administrativo – estão praticamente lançados. Desde o Afonso III, imagine. Também foi isso que permitiu os Descobrimentos. Se não houvesse essa centralidade do Estado, duvido que alguma vez tivéssemos conseguido. Mas isso é uma das causas.

E a outra causa?

A outra causa é que os solos são pobres. A História tem um braço muito longo. Há uma linha que divide a Europa em duas: uma Europa rica e uma Europa pobre. E essa linha passa pelo rio Loire em França, que nasce perto de Bordéus, vai por ali acima, e de repente vira para a esquerda e depois desagua no mar. Os solos acima da Loire são solos ótimos para cereais, pesados, húmidos, pouco pedregosos. Os solos abaixo dessa linha são solos mediterrânicos, secos, cheios de pedregulhos. Do ponto de vista do rendimento agrícola isso significa imenso. Desde logo a aplicação da charrua a norte foi facílima, porque não exigia grande perícia. Isso permitia até a contratação de operários agrícolas e permitiu um desenvolvimento do mundo rural completamente diferente. A sul da Loire o uso do arado requeria skills, aptidões especiais. A transmissão dessa sabedoria fazia-se no seio da família, o que impediu o desenvolvimento de um proletariado agrícola. Além de que o rendimento do solo era muitíssimo mais baixo. Portanto esta diferença de riqueza é uma coisa que já vem do século XIV. E, claro, também há outros fatores. Não sei se se lembra do que era Portugal antes do 25 de Abril.

Ainda não era nascido. Lembro-me só do princípio dos anos 80…

Antes do 25 de Abril Portugal era um país paupérrimo.

Mesmo no Marcelismo?

Paupérrimo. Era aflitivo você andar de carro pelo país. As aldeias eram miseráveis e as pessoas eram miseráveis. Muito mal vestidas, andrajosas quase. Sob esse ponto de vista, Portugal está irreconhecível. Com os fundos europeus, e com o cavaquismo, desenvolveu-se também uma pequena burguesia que não existia, que é uma capa fininha, cujo sonho é furar e conseguir dar o pulo para o degrau a seguir, da média burguesia. Mas toda essa pequena burguesia depende do Estado, de uma maneira ou de outra.

Mesmo as empresas?

Mesmo as empresas. Tudo depende do Estado em Portugal. E é dessa pequena burguesia que às vezes saltam uns espertalhões, que fazem aquelas manigâncias e aqueles negócios fraudulentos com o Estado, como os centros transfronteiriços de 300 mil euros que não existem, coisas assim. Vivem de amiguismo, de favores, disto, daquilo, daqueloutro, mas tudo pendurado no Estado. Não estou a dizer que não haja pessoas que conseguem chegar lá por esforço próprio e por mérito próprio, mas a maioria esmagadora desta pequena burguesia que quer ter um Porsche ou um Audi em vez de ter um Kia, ou coisa que o valha, está muito, muito dependente do Estado, vive à custa do Estado, faz negociatas fraudulentas à custa do Estado. Não sou socióloga, embora todos os historiadores sejam um bocadinho sociólogos, porque a História é uma miscelânea de disciplinas, que mete economia, mete sociologia…

Mete religião…

Mete tudo. Não sou socióloga, mas tenho a sensação, mas é uma pura sensação, de que essa pequena burguesia está alojada sobretudo no Partido Socialista. E que o Partido Socialista é mais corrupto do que o PSD. Não porque as pessoas sejam piores, não tem a ver com isso, mas porque está mais dependente do Estado.

Se calhar porque está há mais tempo no poder.

Isso também conta imenso. O problema de Portugal é que há vinte anos que está estagnado. Isso é que é o mistério. Quer a gente goste, quer não, o cavaquismo mudou a face de Portugal. E de repente o país estagnou e estagnados estamos. Acho extraordinário António Costa vir dizer que o ano de 2022 foi fantástico porque diminuímos a dívida – para aí em 25 tostões -, diminuímos o défice, fomos formidáveis, quando em 22 tudo correu mal. Os hospitais são uma desgraça. Se eu estivesse grávida nesta altura, vivia com o coração nas mãos. As urgências dos hospitais são caóticas. A educação é o que se vê – outra desgraça. A justiça não tem cura. Os pilares do Estado democrático estão todos a abanar. Todos em péssimo estado e a precisar de reparação urgentíssima.

Apesar das medidas sociais, o que parece é que vemos o fosso entre ricos e pobres a aumentar. Quem pode, vai aos hospitais privados, mete os filhos nas escolas privadas. E até na própria justiça: quem tem dinheiro contrata advogados bons, quem não tem…

Está tramado.

Mas não era suposto o socialismo promover a igualdade?

Isso é uma miragem. O socialismo nunca foi igualitário. Ou melhor, quando foi igualitário, como na União Soviética, era igualitário por baixo – tirando a elite, que tinha as suas lojas próprias, as suas dachas e as suas regalias. O conjunto da população de facto era bastante igual, mas era igual por baixo. Eu estive em Berlim Oriental e vi.

Em que ano?

Tinha eu quinze anos. Fui com os meus pais. O meu pai cismou que queria ir ver o comunismo, de maneira que lá fomos ver o comunismo. A República Democrática Alemã ainda era do melhorzinho [do Bloco de Leste], mas as lojas tinham as prateleiras vazias.

Por alguma razão tiveram de construir o muro, não é?

É verdade. Depois aquilo é um sufoco de uma sociedade. Eu sou muito anti-igualitária. Acho que toda a gente tem de ter um nível de vida digno, ninguém pode andar andrajoso nem passar frio no inverno. Agora, esta ideia de termos de ser todos iguais, só à custa de matar a liberdade.

Só com repressão.

Matar a liberdade. É verdade que eu acho – infelizmente – que a nossa civilização ocidental assenta sobre uma premissa falsa: a premissa de que a liberdade é muito importante. Não é verdade. A liberdade é muito importante para meia dúzia de pessoas. De resto, para você ir ver as montras ao Colombo ao fim de semana ou para ir à Mercadona fazer as compras não precisa de liberdade nenhuma. Essa liberdade já existia no tempo do Salazar. Também podia ir para o Rossio, para a Rua Augusta e para a Rua do Ouro.

Mas é daquelas coisas que, assim que as perdemos, sentimos-lhe a falta, não?

A mim far-me-ia faltíssima e a si também, porque é jornalista. Mas oiça esta citação do Benjamin Constant, que era dos poucos liberais franceses: «A liberdade só é de um preço inestimável porque ela dá ao nosso espírito de la justesse, justeza, ao nosso caráter força, à nossa alma elevação». Quantas pessoas são sensíveis a isto? Meia dúzia. A malta não se importa nada de sacrificar a liberdade por mais uns subsídios e mais umas benesses. 

Como o apoio extraordinário de 240 euros que o Governo deu?

Exato. O Estado cobra impostos altíssimos, portanto tem muito dinheiro. Então agora, com a inflação, tem os cofres cheios. Mas o problema da inflação não se resolve a dar 240 euros às pessoas de seis em seis meses.

Acha normal o Estado dar dinheiro às pessoas?

Não. António Costa parece um pater familias que ao domingo de Páscoa distribui umas notas de 500 escudos pelos netos todos e pelos filhos, como era no meu tempo.

Com a diferença de que neste caso o dinheiro vem dos filhos e dos netos, que pagaram os seus impostos.

Isto precisava tudo de uma barrela de cima a baixo, e não é possível porque tinha de diminuir os impostos e para diminuir os impostos tinha de diminuir o Estado.

Cavaco Silva escreveu há uns meses um artigo em que acusou António Costa de não fazer as reformas necessárias. 

E não faz.

De que reformas estamos a falar?

Para começar, fiscal. Depois, do SNS. O SNS precisa de uma reforma, mas não é de uma curazita. Precisa de ser engessado como quem partiu uma perna. E a reforma da justiça. A justiça é talvez das piores chagas que nós temos, a seguir ao SNS. A morosidade da justiça, este encravanço da Justiça. Nas coisas pequenas acho que vai andando, mas nos casos grandes não. Quem faz as leis que regem os procedimentos da justiça são os deputados. E fazem-nas assim de propósito.

Para…?

Para empancar. Não são inocentes. Temos uma justiça ultra-garantista. Claro que se eu tiver dinheiro para pagar a advogados milionários… Julga que o Ricardo Espírito Santo alguma vez vai ser julgado? Nem que viva cem anos. E é muito engraçado que ele diz que está com Alzheimer mas está a escrever as Memórias. Acho fabuloso uma pessoa com Alzheimer escrever memórias! [risos] As leis que regem os procedimentos da justiça são feitas pelos nossos deputados e são feitas assim propositadamente para empancar a justiça.

E para proteger os prevaricadores?

Para proteger os prevaricadores. Ninguém me tira esta da cabeça. Não há vontade nenhuma de agilizar a justiça, porque isso prejudica os tubarões. E depois quem se trama é o mexilhão, não é?

António Costa está no poder desde outubro de 2015.

Há muito tempo.

Mas o facto é que ainda há pouco tempo teve uma maioria absoluta. Mesmo que houvesse eleições agora, podia ficar tudo…

Na mesma.

Vê o PSD como alternativa?

Achei indecente o PSD não votar a favor da moção de censura [da Iniciativa Liberal].

Foi falta de coragem, falta de preparação?

Falta de preparação, falta de coragem, falta de tudo. E falta de bom senso, porque o argumento que eles usaram, armados em muito responsáveis – ‘Nós não deitamos governos abaixo’ -, é um falso argumento porque eles não têm votação suficiente para deitar governo nenhum abaixo. Esse risco não existia. E marcavam uma posição. Achei indecente. Fiquei a detestar o Montenegro.

Tinha alguma esperança de que ele viesse dar um novo fôlego ao PSD?

Tinha, mas por este andar não vai lá.

Ainda não falámos do seu novo livro, A Republicanização da Monarquia – Perceber o Século XIX Português (1807-1880).

Este livro é uma reedição de dois estudos que fiz em 1999 e que ficaram soterrados num livro que tinha um grande ensaio de 160 páginas chamado ‘Apologia da História Política’. Estes dois estudos ficaram lá e ninguém ligou nenhuma. O Pedro Avillez, da Tribuna da História, convidou-me para reeditar e eu, como acho que esses estudos estão bem feitos e merecem ser relidos, disse que sim e fiz um prefácio novo.

Republicanização da Monarquia – é um título sugestivo mas um bocadinho enigmático, ao mesmo tempo.

A partir do fim da guerra civil e da implantação da monarquia constitucional, em 1834, a esquerda radical tentou sempre diminuir os poderes do Rei e aumentar os poderes do Parlamento. Quando eu digo ‘a republicanização da monarquia’ podia dizer ‘a democratização da monarquia’. Isso acentua-se a partir sobretudo da segunda metade do século XIX, quando a ideologia republicana desponta ruidosamente, e tenta fazer do anticlericalismo o veículo para essa republicanização.

Porque havia uma identificação entre a monarquia e a Igreja.

A Igreja dependia totalmente do Estado. Havia uma secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça. E todo o clero era todo pago por essa secretaria de Estado, e portanto portava-se bem, se não tinham o ordenado cortado. Mesmo os bispos que havia na câmara alta nunca votaram contra o Governo que os tinha nomeado. Nunca. E depois é interessante ver como os radicais acreditavam que desde que se eliminasse a religião toda a gente se tornava democrata, anti-monárquica e republicana.

Monarquia e religião eram sinónimos.

Todo o século XIX foi uma briga entre os liberais – que eram monárquicos – e os radicais. Isso explica porque é que os governos caíam constantemente. Até que por fim ganharam os radicais em 1910.

Como historiadora, nota paralelos entre essa época e a nossa? Há vícios que se mantêm?

Noto a dependência do Estado. Mas o que me aflige mais em Portugal é a estagnação. Tudo se agrava, nada se resolve. Veja o caso do aeroporto. Sessenta anos para discutir onde é um aeroporto?! E agora há uma comissão especial para chegar ao fim e dizer onde vai ser o aeroporto. Depois ainda falta construir, etc., etc., o que vai dar lugar às maiores negociatas. Não dá para acreditar.