Alta tensão entre Belém e São Bento

Nos últimos sete anos, as relações entre Belém e S. Bento nunca estiveram tão tensas. O pacote da Habitação, que Marcelo e Cavaco arrasaram, culmina um ano de Governo de maioria absoluta sem estado de graça. E António Costa está cada vez mais isolado no próprio PS.  

Por Maria Castela*

«Marcelo está a ver se Costa perde a cabeça», comenta ao Nascer do SOL um deputado socialista que resume assim o atual momento das relações entre Belém e São Bento. No final do debate trimestral, o sentimento era de alívio entre os deputados socialistas por se ter ultrapassado mais este obstáculo sem grandes danos para o primeiro-ministro.

Apesar de com aparente bom humor e tranquilidade, António Costa aproveitou o debate na Assembleia da República para acertar contas com o atual Presidente e com o anterior, Cavaco Silva, que marcou a tónica da semana com as críticas à ausência de políticas de habitação do Governo. Em tom jocoso, o chefe do Governo acusou o Presidente de fazer juízos antes de tempo – «ainda estamos no processo de consulta pública», só depois se legisla e só depois de votado na Assembleia da República é que o pacote de habitação pode ser apreciado pelo Presidente. E foi com particular ironia que António Costa se referiu a Cavaco Silva como «o sábio dos sábios, insuspeito de marxismo» que referendou a lei que, segundo o Governo, já prevê o arrendamento forçado.

«A corda não partiu, mas está quase», comentou ao Nascer do SOL um parlamentar socialista, que atribui o mau momento das relações com Belém a um clima muito instável em que o Governo está fragilizado. Com o primeiro-ministro cada vez mais isolado, mesmo no interior do PS (vejam-se as críticas diretas de Francisco Assis, Sérgio Sousa Pinto, Ascenso Simões, entre outros). 

É cada vez mais consensual entre as várias forças políticas que se vive um ambiente de fim de ciclo. O calendário eleitoral com que já todos contam é o das eleições europeias de 2024. «Por mais que tenhamos de dizer o contrário», admite um dos deputados socialistas ouvidos pelo Nascer do SOL, «todos sabemos que essas eleições vão ditar o futuro deste ciclo». E as contas que já se fazem no Largo do Rato são sobre o equilíbrio de forças, à esquerda e à direita, que sairá dessas eleições. Para os socialistas, já não basta saber quem vai ganhar, mas como somam os partidos no final do escrutínio.

O esticar de corda a que se tem assistido por parte do Presidente da República, sem cerimónias nas críticas contundentes à governação, não são alheias ao ambiente político que se vive. Marcelo sabe que está na mó de cima e quer manter todos os cenários em aberto. Prova disso é constantemente falar de um possível fim de ciclo político antecipado que, garante, será sempre provocado pela ação, ou falta dela, do Governo.

No hemiciclo há mesmo quem comente que, apesar de as declarações entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa terem sempre uma certa ‘elasticidade’ incomum entre outros titulares dos cargos no passado, a verdade é que neste momento «as fronteiras parecem estar a ser ultrapassadas». O radar do Presidente está agora permanentemente ligado para avaliar até que ponto a situação se degrada e que efeitos isso tem nas sondagens e na possibilidade de uma alternativa. 

A nova onda de choque começou com uma intervenção do ex- Presidente da República e antigo  primeiro-ministro numa cerimónia que assinalou os trinta anos do Plano de Erradicação de Barracas (PER). O evento, organizado por Carlos Moedas, causou estrondo por ter ocorrido em plena discussão sobre o pacote de habitação do Governo e porque foi mais uma ocasião para Cavaco valorizar a sua herança como chefe de Governo por comparação com o atual primeiro-ministro.

Se é certo que sempre que Cavaco fala há um sobressalto no PS e particularmente no Governo, a verdade é que desta vez a irritação socialista abriu caminho para que Marcelo aproveitasse a oportunidade para se demarcar ainda mais do Governo, pondo sal na ferida. 

E se o ambiente já estava tenso entre os dois palácios, tudo piorou esta semana e os socialistas temem que, atacado por todos os lados e agora também pelo Presidente da República, o primeiro-ministro perca a cabeça e dê o passo em frente na deterioração das relações institucionais.

Foi, aliás, para aliviar a tensão que Carlos César procurou ao longo da semana destapar a panela de pressão, assumindo num primeiro momento as críticas ao tom presidencial. Depois de ouvir Marcelo Rebelo de Sousa desfazer o pacote de habitação, que tal como está «nem devia existir», o presidente dos socialistas disse à RR que o Presidente «por vezes, porventura sem se aperceber, tem prestado menos cuidado a algo que sempre acautelou nestes anos: o equilíbrio que o Presidente da República deve cultivar do sentido crítico com a cumplicidade institucional». E no dia seguinte acertou o termómetro das declarações presidenciais com um «este registo é mais útil à estabilidade». Mas, nas suas intervenções semanais, Carlos César não deixou de apelar também ao Governo para manter a calma: «Acho que o Governo, pelo seu lado, deve continuar a trabalhar, e a fazê-lo de melhor forma, a não se envolver em atos ou considerações que afetem esse valor que tanto contribui para a estabilidade da nossa democracia», afirmou à RR.

Na sede do PSD, as ondas de choque entre Belém e São Bento começam a levar a direção a ponderar se faz ou não sentido uma alteração de planos e calendários. Montenegro contava com uma corrida de maratona, mas a verdade é que cada vez mais se pondera a necessidade de preparar o partido para uma corrida de média ou mesmo curta distância. Na leitura que se faz a partir da São Caetano à Lapa, a crise que se vive no país e cujos efeitos se vão acentuar nos próximos meses é mais uma acha para a fogueira que pode contribuir para uma deterioração rápida da atividade governativa. E caso isso aconteça o partido tem de estar preparado bem antes do que tinha planeado.

Atento e picando, já não os balões, mas o primeiro-ministro, está o Presidente da República, que faz uso, agora mais do que nunca, da sua capacidade de análise política e do pulso que vai medindo na rua, para ficar do lado certo deste novo ciclo político. Agora com a habitação, mais à frente com mais casos no Governo, execução do PRR ou outro qualquer tema que venha a surgir, no PS acredita-se que Marcelo já arrumou a rede que punha por baixo do Governo e não vai ter contemplações se e quando achar que o ciclo está maduro para cair de podre.

*texto editado 

por Sónia Peres Pinto