por Felícia Cabrita e Vítor Rainho
Manuel Soares representa cerca de 2300 juízes, vai no segundo mandato à frente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), e está morto para passar a pasta a outro. É já no próximo ano mas o juiz mantém-se fiel à máxima com que entrou nestas lides: a mudança. Não teme as palavras, utiliza uma linguagem clara e não hesita nas respostas, acabando por atingir tanto políticos como magistrados. Sobre haver uma Justiça para ricos e outra para pobres, diz que a lei é igual só que uns conseguem, por terem dinheiro, descortinar um ‘parafuso mal apertado’ e dessa forma adiar ou mesmo fazer prescrever processos. Sobre as críticas que o comum dos mortais faz sobre as notícias de que há indivíduos presos mais de 25 vezes, mas nunca ficam em prisão preventiva dá o exemplo do rei dos catalisadores: «A pena máxima para esse tipo de crime não ultrapassa os três anos, logo não podia haver prisão preventiva». Aqui fica o retrato de um homem que gosta de tocar harmónica no grupo de juízes.
Sabe quem é a ministra da Justiça? Eu tenho de ir ao Google para relembrar…
(risos…) Já ouvi falar. Não sei o que se passa com a senhora, porque não se mexe.
Como analisa este ano de mandato da ministra Catarina Sarmento e Castro?
Quando anunciou um conjunto de medidas, na abertura do ano judicial de 2021, fez-me supor que iria ser uma ministra reformista. Admitindo que há uma crise da Justiça, e eu até penso que há, na altura achei que o Governo tinha todas as condições (maioria absoluta, dinheiro…) para avançar com uma reforma. Além disso, do outro lado há um conjunto de protagonistas, nomeadamente os juízes, com abertura para a discussão de todas as reformas, sem tabus. Passado um ano, acho que a ministra não é reformista e o Governo não quer mexer na Justiça.
Mas tem contactos regulares com a ministra?
Sim e as relações são afáveis, mas o mais importante era sermos chamados a contribuir com ideias, projetos e opiniões sobre mudanças que estivessem em estudo. Isso aconteceu apenas uma vez, a propósito da arbitragem. À exceção do pacote dos tribunais administrativos, que a ministra já anunciou e está em fase de aprovação, ainda não vi nada de extraordinário. Pela nossa parte, criámos um grupo de trabalho que fez um levantamento daquilo que nos parecem ser as áreas problemáticas e avançou com pistas de solução. Foi um trabalho que demorou um ano e meio e deu origem ao um livro Mudar a Justiça Penal – Linhas de Reforma do Processo Penal. Estou convencido que nunca se fez um trabalho de levantamento tão profundo e que abarca todas as áreas. Está aqui, para ser discutido por quem quiser. Pedimos audiências aos partidos políticos, aos grupos parlamentares, à ministra da Justiça, aos interlocutores da Justiça. O Presidente da República, no recente congresso dos juízes, foi o primeiro a receber este trabalho e iniciámos esta semana essa ronda de encontros com os grupos parlamentares. O Presidente disse que seria inaceitável e ‘imperdoável’ que o poder político não olhasse para este trabalho com interesse.
Acredita que Marcelo Rebelo de Sousa conseguirá abrir os olhos ao poder político?
Não, não acredito. Acho que não há vontade política e o conhecimento também não abunda. Além disso, há um grau de desconfiança muito grande. A classe política olha para as magistraturas como se fossemos todos corporativos, gente que só pensa nos seus direitos e que, quando propõe alguma reforma, é só a pensar nos seus interesses. Também devo dizer que acho que há alguma desconfiança dos juízes e dos procuradores em relação à classe política, porque a tendência é achar que os políticos não querem mudar nada porque se querem proteger. É que, quando o estado de Direito lhes bate à porta, eles já não gostam muito do estado de Direito. Portanto, com estas desconfianças, o panorama não é fácil. Se tivéssemos uma sociedade mais crítica e exigente e uma classe política mais desligada dos interesses dos partidos e próxima dos interesses de cidadania, o que seria normal era que houvesse um esforço no âmbito da Assembleia da República para criar uma comissão que, durante um ano ou dois, olhasse para os reais problemas da Justiça, os identificasse e apresentasse soluções! Mas é muito difícil conseguir-se sentar à mesma mesa o PS e o PSD para discutirem seriamente um assunto, por mais importante que seja. O interesse e a perspetiva de ganho eleitoral leva sempre a que os partidos sejam mais dados a encontrar controvérsias do que a encontrar pontos de consenso. E, quando tocam na lei, a maior parte das vezes é para piorar ainda mais a vida à Justiça.
Foi o que aconteceu em 2021, quando o Parlamento impôs novas regras de distribuição eletrónica de processos, a juntar as alterações que apertaram as incompatibilidades dos juízes. Desde aí, José Sócrates recorre de todas as ações que estão pendentes nos tribunais superiores. Que efeito isto está a ter nos tribunais?
Costumo dar como exemplo aquele advogado que no Supremo Tribunal de Justiça meteu 23 incidentes de recusa de juiz em nove meses. Acha que isto é legítimo ou é o exercício normal do Direito? Quando fez o Código de Processo Penal, o legislador lembrou-se que um advogado ia pegar num parafuso qualquer da lei e inventar um pretexto para inundar um tribunal com sucessivos pedidos de recusa de um juiz só para evitar que o processo chegue ao fim? O Supremo tem 60 juízes. Mais um tempinho e não haveria nenhum juiz que aquele advogado considerasse que era imparcial para julgar o caso. Aqui está, manifestamente, uma situação de abuso de direito.
Essa descrição encaixa na perfeição na defesa de José Sócrates.
Não preciso identificar o advogado porque isso é indiferente para o que eu estou a dizer.
Mas a defesa utilizar todas as ferramentas que a lei lhe coloca ao dispor para defender o seu cliente não é legítimo? Pode ser má-fé, mas é legítimo!
Se for usado abusivamente passa a ser ilegítimo. Se um arguido ou o MP ou um assistente der ao processo um uso anómalo apenas para atrasar a decisão, não está a exercer legitimamente um direito. É o contrário: está a abusar de um direito que a lei lhe concedeu para uma finalidade mas que ele está a distorcer. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses reagiu na hora, mas ainda estamos à espera de uma solução para o sorteio eletrónico. Após o caso dos 23 incidentes, e como a ausência de portaria estava a servir de pretexto, pedimos ao Governo para que a publicasse. Três ou quatro dias depois, cá estava a portaria, mas cheia de problemas. Olhando para ela, penso que, apesar da demora de um ano e tal, o Governo não estava preparado para a aprovar. E também não é normal que o faça sem falar com quem está nos tribunais, nem com o Conselho Superior de Magistratura, que vai ter de intervir para garantir que há juízes preparados para garantir a distribuição. Não podemos ter um sistema que vai ter por ano centenas de juízes a gastar milhões, milhares de horas de trabalho a olhar para um computador que está a produzir uma resposta aleatória, quando o funcionário no tribunal (e já assisti a várias distribuições) não consegue manipular o resultado da distribuição. O sistema é demasiado burocrático, demasiado pesado e vai ter custos financeiros muito grandes. E eu achava normal que a ministra da Justiça tivesse falado com quem está nos tribunais antes de levarem em frente esta ideia. Aqui está um bom exemplo de uma reforma que surge tarde e que, para além disso, não está certa.
O que sugere para ultrapassar isto?
Na sexta-feira (hoje), temos nesta sala uma reunião da direção e penso que iremos propor que a ministra adie a entrada em vigor da portaria para os tribunais de primeira instância. Que a levem primeiro para as Relações e para o Supremo. Assim, já acaba com a história dos incidentes e dá mais tempo para consultarem as pessoas. Até porque o Conselho está em mudança. A portaria entra em vigor no dia 11 e os novos juízes do Conselho só tomam posse a 10. E os juízes que vão para o Conselho já produziram um documento com um conjunto de dúvidas que mostra que a portaria vai criar confusão. Nós vamos pedir à ministra para adiar a entrada em vigor da portaria com exceção dos tribunais de primeira instância.
Para supostamente garantir a transparência, a portaria impõe que passem a estar presentes nos sorteios, além de um juiz, um procurador e um advogado da Ordem. É viável?
Num tribunal que só tem um juiz, qual é a necessidade de ter lá esta gente toda? Segundo problema: turnos judiciais. Comarca de Beja, que tem vários tribunais a uns quilómetros uns dos outros. O juiz está a fazer o primeiro interrogatório em Beja, sai um processo urgente no Redondo e tem de lá ir só para olhar para o computador para ver o sorteio. Mas, para além do mais, a lei agora diz que a distribuição é uma vez por dia com exceção dos casos urgentes, que é quando caírem. Isto é de quem não sabe como funciona um tribunal! Os processos urgentes, num tribunal como o TIC, caem de meia em meia hora. Portanto, vão ter um juiz, um procurador e um advogado a correr de meia em meia hora para a sala da distribuição para olhar para o computador!? Se multiplicarmos isto por 300 dias por ano, por 300 unidades orgânicas, as horas que se perdem são um desperdício.
A defesa de José Sócrates veio pôr em causa a transparência da distribuição dos processos…
É evidente que temos de assegurar a transparência. Mas o Conselho fez uma auditoria, não encontrou problemas de origem criminal ou ilícita na distribuição, apenas procedimentos que não se faziam corretamente. Muito bem, é preciso assegurar a transparência e permitir que um advogado esteja presente e que haja um registo disso. Mas temos de criar um modelo que não vá afundar o sistema e criar mais um conjunto de incidentes. Porque os tais especialistas em incidentes hão de encontrar mais buracos neste modelo burocrático…
Entretanto, com todo este atraso, há o risco de os crimes de que José Sócrates está acusado prescrevam. A lei não é obrigada a ser a Justiça: como dirá qualquer discípulo de Hegel, a lei é apenas a objetivação da justiça. Agora que sejam sempre os ricos e poderosos a descobrir-lhe os buracos, já parece bruxedo!
Não falo no caso concreto mas, em abstrato, isso é válido para este caso e para outros. Se um sistema de justiça penal não consegue resolver casos num prazo razoável, é inevitável que prescrevam e assim é inevitável que favoreçam os arguidos desses processos. Só se pode olhar para cada prescrição como um resultado patológico do sistema. E quando temos um sistema nos processos penais em que, quando estão envolvidas pessoas poderosas e com dinheiro que podem ir para o Tribunal Constitucional sem razão, pagar 9 mil euros de custas, que podem pedir dez vezes o afastamento do juiz sem nenhuma razão e pagar de cada vez 3 000 euros então algo está mal. Isso não está ao alcance de qualquer cidadão. A lei é igual para os dois? Sim, mas um cidadão rico pode fazer isso, o pobre não. E, portanto, se nós tivermos um sistema que permita pôr termo a estes abusos, com certeza que na perspetiva do médio prazo vamos ganhar em rapidez e vamos ganhar em confiança, porque um sistema que seja capaz de resolver mais rapidamente estes casos com justiça é um sistema também mais confiável. Nos 50 anos da nossa democracia já tivemos tempo suficiente para perceber que há fatores de entorpecimento nesses processos que estão ligados ao poder das pessoas e à influência que têm e que precisam de ser eliminados.
Algumas destas alterações estão a ser feitas por advogados que passam a vida em tribunais. Acha que um deputado que é advogado também consegue-se desligar totalmente da função que exerce?
Não, não acho. Acho que o sistema ganhava se as pessoas que legislam estivessem mais afastadas dos seus interesses particulares. Muitas vezes, a lei é alterada e, quem conhece o sistema, está lá a ver a fotografia da pessoa que propôs alteração e a quem é que aquela alteração interessa mais. Mas concordo consigo de que às vezes nós vemos reformas legislativas que estão feitas no interesse das pessoas, que nós sabemos que estiveram na origem da ideia e no desenvolvimento do projeto.
Depois temos a decisão do Tribunal Constitucional sobre os metadados das comunicações que está a paralisar investigações ou a acabar com elas, como no caso de Tancos. Antes, tínhamos uma lei muito abrangente: as operadoras só podiam apagar dados a partir dos cinco anos. Agora, penso que é em seis meses. Quando se parte para a investigação já os dados estão apagados…
A responsabilidade não é do Tribunal Constitucional. O problema foi, de alguma maneira, criado pelo sistema normativo da União Europeia. Agora temos de encontrar uma solução legal que permita fazer duas coisas que são óbvias: primeiro, respeitar a Constituição; segundo, permitir que a ação penal tenha efeito. Não podemos ter criminalidade violenta e grave, que muitas vezes só é possível de ser investigada se as Polícias tiverem acesso aos metadados, e não termos um modelo eficiente para lhes dar. Se um juiz pode autorizar um polícia a fazer escutas, por que é que não pode pedir a localização celular dessa pessoa? Temos que encontrar um mecanismo que permita às polícias investigarem e a não deixarem escapar criminosos. Um exemplo: num dia X rebenta um multibanco num determinado sítio e o sistema de triangulação permitiu ver que um determinado número de telefone estava ali e que a seguir alguém também desapareceu. E as outras pessoas que estavam à volta, os cidadãos nas suas casas estavam a dormir e não fugiram. Houve um que fugiu e esse número foi detetado mais tarde, onde estava um carro abandonado que correspondia à descrição que tinha sido visto. Aqui está uma forma. Foi só assim que se conseguiu chegar às pessoas que fizeram aquele crime. Se não derem este instrumento, a Polícia não está lá a ver isto. Este crime vai passar impune e o tal cidadão que estava a dormir em casa quando rebentou a caixa multibanco não fica nada incomodado pela Polícia andar a ver quais são os números que estavam ligados num determinado momento porque a Polícia não anda a fazer isso para ver qual era o cidadão que estava a dormir na casa de uma pessoa onde não era suposto estar. E mais uma vez não se percebe a demora, a dificuldade de fazer estas coisas. É mais fácil não fazer do que fazer. Às vezes fazer é difícil e tem custos de imagem e de contestação.
Entretanto, o Estado continua a contratar a peso de ouro grandes escritórios de advogados, como se não tivesse juristas nos ministérios para tratar desses assuntos. Parece-lhe normal?
Isso é um problema, porque aí estamos a falar de muitos milhões de euros que o Estado gasta com os grandes escritórios de advogados. Quase sempre os mesmos. Acho que fazia sentido nós, a sociedade, perguntar se são só estes que sabem fazer contratos e não há mais advogados. O Ministério Público não podia, em certas matérias, dar pareceres? Então o Estado não tem um conselho consultivo de magistrados que saem à borla? E o dinheiro que se paga a esses grandes escritórios é muitas vezes excessivo. E também acho uma grande coincidência que todos os anos esses gastos beneficiam sempre os mesmos, o que gera na sociedade problemas de confiança. E às vezes acabam em tribunal e o Estado também perde? Ou seja, esses milhões de euros pagos nem foram grande coisa, não é? Mas também, às vezes, vemos que depois é o mesmo escritório que vai defender o Estado. E andamos sempre assim, como uma pescadinha de rabo na boca.
Como vê o juiz que troca a beca por um lugar no Governo?
Quando foi a revisão do Estatuto em 2019, os juízes apresentaram uma proposta para que o Estatuto passasse a prever uma norma que tornasse mais difícil que os juízes pudessem sair para o exercício de funções políticas e depois regressassem. Estão a ver o corporativismo ao contrário, não é? Foi o poder político que não quis! De vez em quando querem ter juízes, não sei bem para quê. Como a lei que temos diz que o Conselho pode e deve recusar mais vezes a ida dos juízes para certas funções, por mais do que uma vez instamos o Conselho a ser mais exigente e ter um critério muito mais apertado, coisa que nunca teve. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que é também presidente do Conselho, é que avançou há uns meses com essa proposta e agora o Conselho propôs ao poder político um aperto dos critérios e nós concordamos. Mas, como disse antes, e repito agora: o Conselho não precisa de lei para fazer aquilo, para ter um poder que já tem, que é o de recusar. Basta-lhe aplicar o estatuto e dizer: Não autorizamos, porque consideramos que essas funções são inadequadas para um juiz, por exemplo.
Também defende que os juízes não devem ser maçons?
No nosso compromisso ético, um documento que aprovámos em 2008, ficou estabelecido um princípio que as pessoas podem ou não seguir: a pertença a uma organização que exija um compromisso de fidelidade, que não é claro nem público, é incompatível com a função de juiz. Isso parece razoavelmente evidente. Eu, como juiz, tenho uma função pública e presto um compromisso de vinculação à Constituição e à lei. Se eu, ao lado, posso prestar um outro compromisso que é secreto, então, perante um caso concreto, o cidadão não vai ter a certeza a qual dos compromissos é que estou mais vinculado. E, na tal revisão dos estatutos, propusemos que fosse proibido. Também o poder político, por razões relativamente fáceis de perceber, não aceitou esta nossa proposta. Já agora, gostaria de lembrar uma coisa que tem a ver novamente com o corporativismo, mas ao contrário. Tivemos problemas de corrupção na Justiça e em que o CSM falhou duas vezes: primeiro porque demorou muito, levou anos a detetar o problema, e em segundo lugar porque se escondeu o problema. Esteve mal o CSM ao não assumir que um sistema que demora tantos anos a descobrir a maçã podre dentro da própria casa é um sistema imperfeito.
Estamos a falar da Operação Lex?
Sim. Nós propusemos nessa altura ao Conselho um conjunto de medidas para reforçar a capacidade do sistema e criar uma malha mais apertada. Pedimos uma audiência ao CSM para as apresentar e, à exceção do presidente, que disse que isto não estava na agenda, mais ninguém nos respondeu. Ora, o CSM tem nove elementos que não são juízes e oito que são propostos pelo Parlamento e pelo Presidente da República. Até podiam ter dito que as nossas propostas não tinham qualquer interesse, mas não disseram nada. E eu disse no Parlamento, aos grupos parlamentares, que tinham representantes no Conselho que não serviam para nada. O poder político diz que somos corporativos, mas quando os juízes pedem para que as regras sejam mudadas eles nem respondem.
Como se tem visto, às vezes, dá jeito ter essas pessoas nos tribunais superiores…
E é necessário também estar-se atento aos juízes na fase de formação de estágio. Quando se acende uma luz amarela em relação a alguém então essa pessoa deve de ficar em experimentação e em vez de ficar seis meses, como é agora, aumentar essa fase para dois anos. E não devem de entrar no sistema sem haver uma avaliação mais rigorosa que ateste a sua integridade.
E há ainda as questões relacionadas com as declarações de rendimento dos juízes.
Fomos nós que propusemos e propúnhamos e acabou por se conseguir graças ao Supremo Tribunal de Justiça. A lei dizia que os juízes apresentam as declarações de rendimentos no CSM, mas nós dissemos que isso não chegava. Se uma declaração traz uma suspeita, tem de ser investigada. Se o CSM é apenas um armário para as declarações, então não serve para nada. Era preciso que criassem um regulamento que, quando uma declaração com base num conjunto de indícios que têm de ser objetivos, levanta-se uma suspeita, fosse investigada. O que aconteceu? O CSM não quis fazer isso. Recorremos ao Supremo Tribunal de Justiça que os obrigou a mudar o regulamento.
Recentemente, após o relatório sobre abusos sexuais na Igreja ter saído, instalou-se uma acesa polémica, com vozes a bradarem que os padres fossem suspensos. Isto é normal numa sociedade democrática?
Penso que é um problema transversal a toda a sociedade, sobretudo nas organizações com uma estrutura hierárquica de poder. A sociedade despertou para isto e reagiu. Mas há formas de atuação exageradas. Parece que basta uma denúncia anónima para enterrar ou crucificar uma pessoa como arguida. E nós não podemos ter um sistema que, para corrigir um erro, aposta num modelo errado. O que quero dizer é que os princípios do Estado de Direito são postos à prova nas situações difíceis; quando é fácil, não há problemas. Toda a gente consegue cumprir os princípios. Não é apostar numa denúncia anónima com 20 anos e com base nisto crucificar as pessoas, destruir reputações. As denúncias servem para iniciar processos, processos com garantias de defesa. Com certeza, se há razões para suspender preventivamente determinada pessoa numa função, tem que ser, mas só se houver indícios suficientes e houver perigosidade. Não podemos é criar um modelo de um sistema de bufos, em que basta a denúncia para termos a certeza de que uma pessoa é abusadora sexual.
Também se tem discutido muito o assédio. Isto é um problema nas magistraturas?
Nós fizemos o inquérito sobre eventuais casos de assédio sexual entre juízes e os resultados são muito preocupantes. Há um número elevado de juízes, a maior parte mulheres, que dizem ter sido vítimas de assédio. Não vou revelar os números porque ainda está em estudo, mas mostra que é um problema transversal. Há 30 anos, os homens consideravam ser muito normal tocar onde as mulheres não queriam, sem pedir licença, e insinuar que se fizesse isto ou aquilo seria mais rapidamente. Há mulheres que revelaram que nunca denunciaram os factos por medo ou vergonha. Agora, quando mudar o CSM vamos apresentar uma proposta de criação de mecanismos e um canal de denúncia, que permita que uma pessoa que seja vítima se queixe. Temos que ter um sistema que permita a uma juíza ou um juiz denunciar.
Voltando à ronda que a Associação Sindical vai iniciar ainda esta semana junto dos grupos parlamentares. Que propostas levam na manga?
Uma delas prende-se com a fase de instrução criminal. Queremos simplificá-la.
Vai ser um alarido.
Mas então um sistema que não é único na Europa, que tem um MP com um grau de autonomia como o nosso, que é uma magistratura autónoma, que não é manipulável pelo poder político ou económico, pelo menos ao nível do procurador que tem o processo, não oferece ao cidadão garantias de que aquilo que investiga é objetivo, e que não vai investigar nem acusar o político A ou B por razões partidárias ou por razões de conveniência política? Num sistema destes, qual é o sentido de ter antes do julgamento um espécie de pré julgamento que só vai antecipar o julgamento provisoriamente? Apenas para que o juiz de instrução diga que os indícios que o MP recolheu são fortes ou não são? Porque nesta fase não está em causa se a pessoa cometeu o crime, é se os indícios são fortes ou não para poderem ir a julgamento?
Esta mudança surge no seguimento da Operação Marquês que ficou travada nas mãos do juiz de instrução Ivo Rosa dois anos. Ouviu dezenas de testemunhas, fez uma catrefada de diligências que até já parecia um juiz de julgamento?
Se olharmos para o histórico dos processos complexos uma percentagem importante deles demorou um terço, dois terços na fase de instrução. Analisa-se o resultado disso e, na maioria dos casos, a instrução apenas serviu para comprovar a acusação e não impediu a ida das pessoas a julgamento. E é com base neste tipo de análise que as reformas têm de ser feitas. Vejam, nós temos problemas na organização do sistema. Um sistema que tem hoje sensivelmente o mesmo número de juízes que tinha há 20 anos, mas que tem metade dos processos e que não teve um ganho de eficiência na mesma proporção, tem que se identificar porquê. E qual é a razão? Os processos hoje são mais complexos, os sujeitos dos processos são mais exigentes, a necessidade de fundamentação das decisões é muito mais intensa e, portanto, à medida que o número de processos foi baixando, a capacidade de resposta não evoluiu na mesma proporção. E é necessário descobrir onde estão os bloqueios. Este é um deles. Para percebermos uma determinada utilidade de uma determinada fase processual temos de olhar para os números estatísticos, não para o caso A ou B. Então se chegarmos à conclusão que 80% das instruções terminam com uma acusação, uma pronúncia igual à acusação, nós temos que nos questionar se vale a pena ter um sistema de instrução criminal para este efeito. Agora, um mega processo já é suficientemente complexo e tem uma dimensão tal que nós também não precisamos de introduzir no sistema mais fatores de complexidade, sobretudo se eles não forem vitais ou essenciais para a defesa dos direitos dos arguidos.
Disse no último congresso que a justiça administrativa era a área que mais precisava de uma resposta e que em seis anos, com 10 milhões, resolveria o problema. Imagino que esta seja outra questão que levará ao parlamento?
E garanto que não era nada do outro mundo. Por um lado, é criar mecanismos processuais mais expeditos para os processos simples. Sabe que se alguém passar uma uma SCUT sem pagar a portagem de 2 €euros quando for demandada para pagar essa infração este processo corre no Tribunal Administrativo como um outro caso em que uma pessoa deva 20 milhões de euros ao Estado? O processo é o mesmo, o grau de complexidade da sentença é o mesmo. E pergunta qualquer pessoa razoável? Isto é absurdo? Claro que é absurdo. Portanto, é necessário criar leis processuais mais simples para tratar estes casos.
Quem trataria disso?
Os juízes. Quando nos anos oitenta o Palácio de Justiça de Lisboa e o do Porto estavam atafulhados com as cobranças das telefónicas nos créditos ao consumo, esses processos passaram a ter um tratamento muito mais simplificado com o processo de injunção. O credor apresenta uma fatura, a pessoa notificada não contesta, leva um carimbo do funcionário e é executado imediatamente. É criar um mecanismo com esta rapidez para esses processos massificados. Mas isso não basta. Nós tínhamos também proposto que fossem criados grupos de juízes, as chamadas bolsas de juízes ou quadros de gestão, mais flexíveis. Propusemos a criação de um tribunal central administrativo em Coimbra e isso a ministra vai fazer. Ou seja, acreditando no que a ministra disse na abertura do ano judicial, há um conjunto de matérias em que, apesar de tudo, se vai avançar. Tem esse pacote preparado. Mas há uma coisa que não devemos esquecer que é esta: quem é o réu nos processos administrativos e fiscais do Estado? O Estado réu tem um interesse diferente do Estado organizador do sistema. O Estado organizador do sistema tem a responsabilidade, que assume perante os cidadãos, de ter um sistema público a funcionar eficientemente. Já o Estado réu não tem nenhum interesse nisso, porque nenhum governo quer ter um Tribunal Administrativo que lhe pare uma política e os Tribunais Administrativos têm a possibilidade de parar a construção de uma autoestrada, de dizer o senhor não vai fechar essa maternidade de, em certos casos, em sede fiscal, anular um contrato ou de não conceder autorização para o que quer que seja. Ou mais, dizer ao Estado: ‘Olhe o ato que o senhor ministro praticou é nulo e agora vai fazer o favor de fazer assim’. É que o tribunal administrativo não se limita a anular o ato, diz ao Estado como é que tem de fazer. Como é evidente, nenhum Governo, naquilo que são os seus órgãos executivos, fica confortável com um tribunal ou com uma Justiça com esta capacidade de resposta. Também temos de encontrar aí as causas de 20 ou 30 anos de dificuldades daquela área da Justiça.
Mas deixe-me só fazer uma pequena pergunta, um exemplo muito concreto. O caso do Túnel das Amoreiras. Alguém apresenta uma queixa e aquilo está parado uns anos mas a seguir avança e já se perderam uns milhões. É um campo muito complicado. Os políticos são eleitos para governar, mas os tribunais não.
Um governo quer construir uma autoestrada. Certo? Diz aos cidadãos que se ganhar as eleições vai construir. Naquilo que tem a ver com a oportunidade e com a conveniência um tribunal nunca pode dizer que o Governo não pode construir a autoestrada porque acha que esse dinheiro é mal gasto. Se isto fosse possível, estávamos claramente a distorcer aquilo que é a separação de poderes. Mas um Estado para fazer uma obra tem que cumprir a lei, não pode atropelar direitos de cidadãos, não pode atropelar direitos de empresas, não pode atribuir a obra a uma empresa de uma maneira pouco clara ou obscura. É aí que entra o tribunal. Mas não conheço as razões nesse caso.
No caso do Túnel das Amoreiras foi por razões ambientais.
Se o Estado não cumprir integralmente as normas de natureza
ambiental, que são muitas, as exigências ambientais são cada vez maiores porque estamos inseridos numa ordem jurídica europeia que produz diretivas e legislação ambiental a toda a hora. Também compreendo que, às vezes, é uma camisa de força para o Estado conseguir fazer qualquer coisa porque há de morrer sempre uma andorinha, um gafanhoto, não sei onde e não se consegue construir nada. Mas mesmo aí estamos no plano da legalidade. Ou seja, aquilo que o Tribunal Administrativo faz é avaliar se determinada obra deve avançar ou não. Onde é que começa o problema? O simples facto de alguém a questionar já a pára. Atribuiu-se ao simples facto de ser aceite a providência a possibilidade de, em certos casos, a obra poder para e isso pode ser problemático, até porque mais tarde pode vir a apurar-se que não havia nenhuma irregularidade. Mas mais uma vez, o problema principal é o Estado não ter um tribunal que decida rápido. Porque se o tribunal conseguir decidir rapidamente, o prejuízo existia mas não era o mesmo se se conseguisse uma decisão em seis meses em vez de esperar anos. Por isso também a este plano interessava ter uma máquina judicial que fosse muito mais rápida a avaliar estes casos
Há outros casos em que é fundamental uma Justiça célere.
Por exemplo, o Plano de Recuperação e Resiliência que prevê não sei quantos mil milhões de euros de atribuição de fundos para empresas e câmaras municipais vai ter milhares de processos em tribunal, porque há muitas empresas que vão dizer que o dinheiro que a Câmara adjudicou a uma determinada empresa deveria ter-lhe sido entregue porque apresentou uma melhor proposta. Como o sistema não está preparado quando esses casos forem para tribunal, arriscam-se a ali morrer. E nós avisamos: ‘Atenção, vêm estes milhares de milhões, então é preciso criar nos tribunais estruturas que permitam que, havendo impugnação, possa haver uma decisão em tempo útil. Aqui está um exemplo de como a celeridade é fundamental.
Com os vistos gold, foram obrigados a voltar atrás depois de termos noticiado que já que havia empresas que estavam a processar o Estado porque a lei tinha efeitos retroativos e havia investimentos de milhões e milhões em aldeamentos turísticos, etc…
O problema não é o Estado, o problema não é o Tribunal Administrativo intervir, é ter condições para, quando se intervém, ter uma decisão rápida, porque também ninguém quer ter um sistema em que o Estado possa fazer o que entende ou os governos possam fazer o que entendem
O que Portugal ganharia em termos financeiros se tivesse uma Justiça mais célere?
Não consigo quantificar, consigo empiricamente e com base naquilo que são as opiniões dos economistas mais reputados que falam nisso, uma Justiça que responda mais atempadamente, nomeadamente nas questões entre particulares ou empresas se o Estado, ou nas questões do comércio ou nas insolvências, naquelas áreas que tocam mais com como com o funcionamento da economia e com o investimento externo, Portugal ganhava porque tinha mais investimento, com certeza. Eu admito que uma empresa que diga assim eu tenho 50 milhões euros para fazer uma fábrica e avalia dois ou três países. E se perceber que em Portugal vai levar um ano para fazer um licenciamento, se tiver um problema com um trabalhador levo um ano para o conseguir despedir etc então toma uma decisão de investimento que é desfavorável a Portugal. Angola, Marrocos, todos os países em que não há democracias, não tem sistemas de Justiça independentes e não foi por causa disso que, em certos períodos áureos, não tiveram volumes de investimento muitos elevados. Ou seja, não é possível também estabelecer uma relação de causa e efeito direta, dizendo se tivermos uma Justiça eficiente e rápida, o investimento vem todo. Agora ficar sentados durante 30 anos a olhar para o problema, a descrever o problema e a lamentar o problema e não atuar, isso é que me parece excessivo. E nós hoje já temos na nossa democracia, de 50 anos, tempo suficiente para ter percebido que há fatores de entorpecimento nesses processos que estão ligados ao poder das pessoas e o poder económico e a influência que têm e que precisam de ser eliminados
Receia, como disse no congresso, que se não houver uma reforma da Justiça atempadamente que o país, com a extrema-direita a crescer, o descontentamentos provocado pelas dificuldades económicas, que possamos cair numa ditadura?
Se o sistema não dá uma resposta satisfatória, havendo um contexto político favorável, evidentemente que está mais frágil. E, portanto, também nesse plano, é importante que a Justiça dê os passos necessários para estar mais adaptado a responder melhor àquilo que são as exigências e os anseios dos cidadãos. Dou-vos um exemplo: Israel tem 500 mil pessoas na rua todos os sábados a dizer que não querem a reforma da justiça. Estamos a falar de uma sociedade com um grau de educação e de perceção cívica muito superior, por exemplo, à da Polónia. Aqui foi exatamente o contrário. A Polónia tinha problemas na Justiça. O Governo contratou uma empresa a quem deu não sei quantos milhões de euros numa ONG, uma ONG para fazer cartazes à porta dos supermercados contra a Justiça, para desenvolver uma campanha publicitária durante um ano a dizer que a Justiça era corrupta, que não dava resposta, que se chama reformar e depois foi só fazer a lei. E aqui está uma Justiça frágil, que não tem a confiança dos cidadãos. Foi imediatamente destruída, ou pelo menos as estruturas importantes estão a ser minadas. E do outro lado, há Israel, onde as pessoas confiam no sistema e acarinham o sistema e não querem que o poder político o mude. E eu, olhando para estes dois exemplos, acho que é mais saudável para a democracia o exemplo de Israel do que um exemplo como o da Polónia.
E se os grupos parlamentares fizerem ouvidos moucos às vossas propostas?
O poder político tem a responsabilidade de resolver a situação. E se não resolver tem que dizer ao cidadão por que não resolve. Agora o que me interessa é que as forças políticas percebam que houve um levantamento daquilo que nos parecem ser as áreas em que um Estado devia de investir para o futuro, para preparar a Justiça para o futuro, e não sei se nos partidos políticos haverá coincidência total ou parcial em relação àquilo que nós propomos agora. Repare que as propostas dos juízes são também propostas internas e há muitos juízes que provavelmente não gostam do que está aqui.
Quando concorreu à presidência da Associação Sindical disse que esta precisava de uma lufada de ar fresco. Já está a terminar o segundo mandado. E agora?
Todas as organizações precisam de uma mudança geracional. Nessa altura era evidente que precisava e veio a ter. E agora também precisa. Foi por isso que disse no Congresso que ia desaparecer. O meu plano é desaparecer. Desaparecer porque as estruturas de representação da Justiça precisam que eu desapareça. Mas vai valer a pena. Vou dedicar-me à minha vida profissional e pessoal como estava antes. Deixo de ter responsabilidades associativas e não tenho nenhum dever de interferir na condução de quem me substituir. Gostava de deixar uma semente e que os juízes percebessem que uma gestão da representação menos corporativa é mais vantajosa do que uma gestão mais corporativa.