Cavaco Silva. Um ano de reptos, conselhos e críticas ao Governo de Costa

No último ano, o antigo primeiro-ministro e Presidente da República tem marcado o debate político com as suas intervenções face ao que identifica como os problemas estruturais do país e os erros da governação socialista.

Aníbal Cavaco Silva sempre preferiu a palavra escrita. Nos últimos anos, tem lançado para a arena política textos com críticas fortes tanto ao Governo como ao PSD, sem nunca dar uma entrevista ou fazer uma intervenção pública. Mas desde que o PS de António Costa alcançou a maioria absoluta, o ex-Presidente começou a intervir um pouco mais, intensificando a sua assertividade face ao que considera serem os erros da governação socialista. Ao ponto de ter até aberto uma exceção para discursar num evento partidário, algo que não fazia há quase 30 anos, depois de ter deixado de ocupar o cargo de primeiro-ministro.

Certo é que, quando o ex-Presidente da República faz uso da palavra, o país escuta-o atentamente para de seguida dar início a um debate acalorado suscitando uma grande vaga de comentários de apoiantes e críticos. Prova do poder e influência política que Cavaco Silva continua a deter, algo que não é de estranhar sendo, apenas atrás de Mário Soares, o político mais votado da democracia portuguesa, com cinco vitórias eleitorais entre as legislativas de 1985 a 1995, que resultaram em duas maiorias absolutas, e em presidenciais entre 2006 e 2011. É, por isso, grande o impacto da sua mensagem.

 

O primeiro repto

Há precisamente um ano, numa carta dirigida ao atual primeiro-ministro e publicada no Observador quatro meses depois da vitória do PS nas eleições legislativas de 30 de janeiro de 2022, Cavaco desafiava António Costa a fazer “mais e melhor” do que ele, agora que eram “colegas” no “que à conquista de maiorias absolutas diz respeito”.

O texto carregado de ironia não era mais que uma resposta ao discurso de tomada de posse do XXIII Governo, quando Costa disse ter feito parte de uma “geração que se bateu contra uma maioria existente que, tantas vezes, se confundiu com um poder absoluto”, numa referência evidente aos governos de Cavaco Silva.

Depois de dar os parabéns pela maioria absoluta nas últimas legislativas e de pedir desculpa pelo atraso da felicitação, o antigo chefe de Estado começava por recordar as suas maiorias “dialogantes”, enfatizando o facto de que a segunda se deveu “à obra realizada pelo Governo” e não a “benesses”, deixando por fim um recado a Costa: “Estou, aliás, convicto de que o senhor primeiro-ministro é capaz de fazer mais e melhor com a sua maioria absoluta e não tem qualquer razão para ter complexos”.

Lançado o repto, foi deixando metas a Costa, recordando como os seus governos conseguiram “a redução da inflação”, “o aumento real dos salários e das pensões”, uma “elevada taxa de crescimento da economia” e a “aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE como nunca mais voltou a acontecer”.

Ao longo do texto, Cavaco lembrava ainda que avançou com revisões constitucionais (1989 e 1992), questionando se o primeiro-ministro “teve conhecimento da intensidade e da profundidade do diálogo entre os representantes do PS e do PSD” na altura, contrapondo com “o nível de crispação partidária e a rudeza da linguagem nos debates entre os responsáveis políticos na Assembleia da República” da atualidade.

Referindo depois a Lei de Bases do Sistema Educativo, a Lei das Finanças Locais, a primeira Lei de Bases do Ambiente ou a Lei de Segurança Interna, recuperava a memória de um “intenso, profundo e frutuoso diálogo” dos seus governos de maioria absoluta com os parceiros sociais para desferir novo golpe: “Pelo que observei nos seis anos de governo da ‘geringonça’, V. Exa. considera certamente um exagero o meu entusiasmo e valorização do diálogo e da concertação social”.

Cavaco também não se esqueceu de apontar ainda o dedo “à deterioração da qualidade dos serviços prestados pelo Serviço Nacional de Saúde durante o tempo do governo da ‘geringonça’” e também aqui quis sinalizar a sua convicção de que ao Governo de Costa não iria faltar “a coragem para fazer mais e melhor” do que foi feito pelos seus governos na área da saúde.

Já a concluir, e recorrendo às palavras de Costa que originaram a reação, Cavaco afirmava que fez “parte de uma geração que se bateu contra a estatização da economia, a atrofia da sociedade civil e a queda do poder de compra dos portugueses, que se orgulha de ter contribuído para dar um passo significativo na aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE”.

A reação do líder do Executivo socialista surgiu dois dias depois, tendo António Costa optado por desvalorizar as palavras do antigo líder social-democrata. “Cavaco Silva preocupa-se com o seu lugar na história, eu estou preocupado sobretudo com o futuro dos portugueses.”

 

O balanço dos primeiros seis meses

A segunda investida de Cavaco Silva no último ano surgiu quando se assinalaram os primeiros seis meses da maioria socialista, em setembro do ano passado.

Num artigo de opinião no Público, o antigo Presidente da República fazia uma avaliação negativa do Executivo e apontava para “um conjunto desarticulado e desorientado de ministros desgastados, sem rumo, sem ambição e vontade reformista”. “Um governo à deriva navegando à vista”, resumiu.

Reprovando a falta de “reformas decisivas” que permitissem colocar Portugal numa “trajetória de crescimento sustentável”, traçava novamente objetivos claros para o Governo: aumentar salários, aumentar pensões de reforma e melhorar a qualidade da saúde e da educação.

Além de criticar o “imobilismo” do Executivo socialista, afirmava que era expectável que um Governo com apoio maioritário no Parlamento “adoptasse como uma das suas primeiras prioridades o desenvolvimento de uma estratégia reformista de médio e longo prazo”, deixando novo desafio a António Costa para liderar “uma mudança de atitude” na governação.

Outra das suas preocupações tinha que ver com a “credibilidade” do Executivo devido aos “comportamentos politicamente reprováveis de alguns membros do Governo”. No texto destacava dois casos: a “afronta política” do então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, em torno do polémico despacho do novo aeroporto, e a reação da ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, às críticas da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) sobre a falta de apoios públicos para o setor.

Relativamente a Pedro Nuno Santos, Cavaco criticava o primeiro-ministro por não ter demitido o ministro, acusando Costa de “falta de força política” e de ter posto em causa “a sua autoridade” e “a credibilidade” do restante Executivo.

O artigo mereceu a reação de Pedro Nuno Santos, que acabou por apresentar a sua demissão a António Costa três meses depois, na sequência do caso TAP e da indemnização à ex-secretária de Estado Alexandra Reis. Em resposta às palavras de Cavaco, o ex-ministro considerou “injusto” acusar os governos de António Costa de não promoverem reformas estruturais no país, devolvendo críticas ao antigo primeiro-ministro por ter “abandonado” e “desinvestido” na ferrovia e por ter “esquecido” a área da habitação nos dez anos em que governou o país.

 

O combate contra a eutanásia

Já em novembro, na semana em que o Parlamento se preparava para votar os projetos de legalização da eutanásia, Cavaco voltou a saltar para os holofotes da arena política. Numa declaração à Renascença, defendeu que a despenalização da morte medicamente assistida era “mais um sinal da deterioração da qualidade da nossa democracia”, considerando que “o modo displicente como alguns dos nossos políticos tratam a retirada da vida a um ser humano” era “condenável e assustador”.

“Num país como Portugal, com um dos piores riscos de pobreza e exclusão social da União Europeia e sem uma rede de cuidados paliativos a que os doentes de famílias mais desfavorecidas possam ter acesso, num Portugal em que se acentua o empobrecimento em relação aos outros países, a prioridade dos deputados é a legalização da prática da eutanásia, autorizar um médico a matar outra pessoa”, criticou, insurgindo-se contra a gestão de prioridades dos deputados, nomeadamente da bancada socialista capaz não só de aprovar a lei como de contornar o veto do Presidente da República.

A pressão de Cavaco e a ampla discussão em torno das suas declarações foram, contudo, em vão, como o tempo veio a confirmar.

 

Os conselhos sobre o pacote da habitação

O ex-Presidente voltou à carga em março para arrasar a política do Governo de António Costa para o setor da habitação.

Durante uma cerimónia promovida pela Câmara Municipal de Lisboa para assinalar os 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER), manifestou “muitas dúvidas” quanto ao sucesso do programa “Mais Habitação”, apontando um “problema de credibilidade” no pacote apresentado pelo Executivo.

“Como o historial do Governo dos últimos sete anos não é positivo em matéria de cumprimento de promessas feitas, o novo programa de habitação sofre do problema de credibilidade próprio das políticas do atual executivo”, atirou, deixando um conjunto de conselhos para fazer face à crise na habitação.

Além de uma sugestão para que as autarquias sejam colocadas no “centro da resolução” do problema, Cavaco instou o Governo a afastar “a absurda ideia de fazer do estado um agente imobiliário ativo, substituindo os empresários e os proprietários das casas” e a perceber “que os senhorios não são um instrumento de política social”.

Indiretamente visada nas declarações, a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, preferiu responder que as críticas eram bem-vindas se fossem “construtivas”, considerando que a apreciação do ex-Presidente não correspondia à realidade.

 

O convite à demissão e o endorsement a Montenegro

Praticamente em silêncio nos meses que se seguiram, Cavaco aguardou pela ocasião certa para se pronunciar sobre os mais recentes desenvolvimentos em torno da governação socialista, nomeadamente sobre as polémicas que a comissão parlamentar de inquérito à TAP tem gerado.

A jogar em casa, no encerramento do encontro nacional dos Autarcas Social-Democratas (ASD), no sábado, dia 20, o ex-líder do PSD fez a intervenção pública mais dura contra António Costa que se lhe conhece.

“O Governo socialista é especialista na mentira e na propaganda política”, descreveu, utilizando palavras como “desarticulação”, “desnorte”, “falta de rumo”, “falta de visão estratégica” e “incompetência” para classificar as políticas da governação socialista.

Convidando o primeiro-ministro a, “num rebate de consciência”, apresentar o seu pedido demissão, acusou Costa de ter perdido a autoridade de não desempenhar as competências que a Constituição lhe atribui.

Sem nunca nomear Marcelo Rebelo de Sousa, Cavaco aproveitou a ocasião para contrariar o seu sucessor, que tem insistido publicamente na tese de que não existe ainda uma alternativa política aos socialistas, como argumento para justificar as suas reservas em relação a uma eventual dissolução da Assembleia da República. O antigo Presidente da República considerou que “é totalmente falsa a acusação de que o PSD não tem apresentado políticas alternativas ao Governo do PS”.

“O PSD é a única opção credível para todos os eleitores que querem libertar o país do PS e de uma oligarquia que se julga dona do Estado”, sublinhou, deixando depois o seu apoio declarado ao atual líder dos sociais-democratas. “Em democracia não há vazios de poder. O PSD está preparado. E Luís Montenegro está tão ou mais bem preparado do que eu estava.”

Passados dez dias, o impacto do discurso ainda se faz sentir, com várias figuras da história política recente do país, como o ex-presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, ou o ex-primeiro-ministro José Sócrates, a virem de novo a público para comentar as palavras do antigo chefe de Estado.

Na generalidade, as hostes socialistas reagiram às críticas de Cavaco Silva em tom agressivo, acusando o antigo Presidente da República de falta de sentido de Estado e de as suas palavras terem sido antidemocráticas e ofensivas.

Por sua vez, António Costa quis desvalorizar a intervenção de Cavaco, falando de um “frenesim” da direita em querer alimentar uma “crise artificial”, com o objetivo de que os portugueses “não sintam plenamente os benefícios da recuperação económica”.