Um inédito de Fernando Pessoa num tempo em que seria de se exigir “pão para os vivos”

O culto de mortificação que se constrói hoje de forma simétrica ao regime da consagração literária voltou a ser exposto quando os jovens editores de uma revista literária sentiram necessidade de ir buscar uma banalíssima composição inédita de Fernando Pessoa para obterem um destaque nos jornais.

Das duzentas e tal páginas de um recente número de uma nova revista literária uma delas conseguiu o feito de ser notícia num jornal. E se isto parece uma coisa rara, basta referir que o chamariz foi um poema inédito de Fernando Pessoa, desencantado da sua mítica arca sem fundo pelo seu biógrafo Richard Zenith, surgindo acompanhado de uma nota deste investigador e que nos informa que este consta “no verso de um dactilografado com um texto em prosa de Álvaro de Campos, “Novela Curta”, publicado em O “Notícias” Ilustrado, de agosto de 1929″. Através deste expediente, foi possível aos editores da revista Lote obter da parte do Observador uma espécie de publicidade gratuita, e isto não nos esclarece sobre outra coisa a não ser quanto a uma noção muito clara das regras do jogo. Só à sombra de Pessoa ou de algum outro desses outros imponentes autores do passado parece ainda ser possível aos novos requererem alguma atenção.

Como Cesariny havia há muito assinalado, vigora entre nós esse princípio da sufocação, de um espaço demasiado estreito e que não admite que a diversidade se construa no campo literário, e assim vemos ser dado destaque a uma composição tão breve quanto banal, “um rubai, que é um formato poético vindo da Pérsia”, esclarece Zenith. “Consiste numa quadra, uma estrofe de quatro versos, em que o primeiro, o segundo e o quarto verso rimam”, adiantaria depois Tomás Gorjão, editor da Lote, ao Observador. Zenith esclarece ainda na dita nota que Fernando Pessoa produziu “perto de duzentos” rubaiyat. Sobre o interesse que o dito poema inédito possa ter, o texto do Observador não chega a pronunciar-se, e este nem chega a ser reproduzido, talvez por receio de fazer uma espécie de “spoiler”, uma obsessão com essa sequencialidade narrativa própria das ficções que hoje nos são servidas pelos canais de streaming e que parecem ser o único culto que nos resta, pela sua capacidade de agregar as audiências em torno de uma mesma relação com um objecto ou produto.

Ora, face a isto, num intuito de provocação, com muito mais proveito se publicaria o seguinte poema fazendo-o passar por mais outro descoberto agora na arca e atribuindo-o a um dos mais preclaros heterónimos de Pessoa: “Pedem-me sempre poemas inéditos./ Ninguém lê poesia/ mas pedem-me poemas inéditos./ Para a revista, o jornal, a performance,/ o encontro, a homenagem, o sarau:/ um poema, por favor, mas inédito./ Como se soubessem de cor o que escrevi./ Como se estivessem cheios da minha poesia/ e precisassem agora de algo inédito./ A poesia é sempre inédita, disse o poeta num poema,/ mas eles ignoram-no porque não lêem poesia,/ só pedem poemas inéditos.”

Este poema é na verdade do mexicano Fabio Morábito, tendo esta tradução sido vertida por Vasco Gato para a nossa língua. Mas não deixa de ser necessário contrapor estes versos aos da tal quadra inédita. “A ave canta livre onde está presa./ O servo dorme e o sonho lhe é surpresa./ Liberta-te, mas nega a liberdade./ Poder e não querer, eis a grandeza.” Pois bem, aqui, e descontado o esmero formal desta variação de um mote já muito glosado, a reacção mais comum será ficar-se um tanto decepcionado com o inédito de Pessoa, e isto porque a sua celebridade zomba da maioria dos seus feitos. Da grande poesia espera-se sempre esses vislumbres a que aludem os supostos sábios dos sonhos, desdobrando-se em parágrafos soberbos sobre as maravilhas que estão para lá do portão que não permite regresso. Mas talvez seja isso mesmo o que prepara a nossa tremenda decepção.

Convém sempre falar-se dos grandes mestres mantendo as suas revelações debaixo de um véu, manter uma distância cautelosa, gerir as ênfases e um certo sigilo, sendo este o chamariz dos chamarizes, e isto para que, no momento em que somos entregues de novo à tortura diária do lugar-comum, este nos provoque agora a sensação de uma epifania qualquer. “Poder e não querer, eis a grandeza.” Pode-se sempre conduzir o juízo através de uma série de passagens em que se organiza um percurso recomplicado por meio de uma série de abstracções, produzindo um efeito de profundida e uma espécie de melodia e sageza no tom, sem chegar a dizer nada, apenas glosando um mote há muito empalhado, isto é um dos efeitos retóricos mais comuns da mais estafada das poesias. Mas até aqui nada de mais agastante se coloca diante de nós. O problema só se põe devido à monumentalização da Obra e da própria figura de Fernando Pessoa. Como notou Alexandre O’Neill numa das suas crónicas, o culto que se tem servido dele passa menos por lê-lo do que por apropriar-se dele para os seus próprios fins: “Estou a pensar no pobre do Pessoa e, pensando nele, dedico-me a imaginar quantos homens e mulheres conhecerão mesmo a obra pessoana em si, quantos maduros se entregarão ao prazer de ler os poemas e as prosas de um homem com o qual a bem-pensância nacional, sempre à procura de tralha para mobilar e decorar a sua cabeçorra, fingiu, durante anos, estar familiarizada.”

Esse culto que ao mesmo tempo que o louva igualmente o profana, torna impossível ler e avaliar com algum critério a infinidade de textos que escreveu, tantos tão desnecessários que deveria haver mais cuidado sempre que se cede à tentação de dar mais outro à estampa. Se Almada Negreiros tinha já apontado a hipocrisia da “pátria onde Camões morreu de fome/ e onde todos enchem a barriga de Camões”, O’Neill vai mais longe, e desvela a podridão desses gestos de reconhecimento com os quais o país tapa a obra dos poetas e, assim, também as suas vergonhas: “É sempre emocionante saber que um Poeta pode ir parar com os ossos aos Jerónimos, mas uma pergunta me inquieta: será que a sociedade pensa que, com esse acto (com certeza ‘solene’ e ‘público’!), está a fazer justiça ao mesmo homem a quem denegou, escandalosamente, o primeiro prémio num concurso literário? Dir-me-ão: isso foi há muito, nos tempos negros da nossa história recente. Deixem-me ser pessimista: é que a sociedade que não teve a lucidez de reconhecer e premiar um génio é, para mim, na sua cegueira e pasmaceira, exactamente a mesma que, hoje, fascismo (ou o que lhe queiram chamar) à parte, quer ossificá-lo nos Jerónimos. Se não, vejam como ela – a sociedade – continua a guarnecer a sua cabeçorra com os mais lindos ornamentos da nossa arte e da nossa literatura, como ela continua a sentir a necessidade de TER GESTOS, de render preito e homenagem à cultura, que hoje é tudo, como sabeis: descascar cebola ou escrever uma obra…” Ou seja, todo este culto não tem apenas uma face e verso, mas o mais importante é analisar o seu reverso.

No país onde, já se sabe, não convém que nada aconteça, a não ser por referência ou reverência ao passado, ao já ido, já ensacado, frio, com os ossos no depósito, há algumas décadas que nos vamos dando conta de como a arca tem servido para construir uma espécie de labirinto infindável de ecos que, a espaços, cedem simplesmente ao gargarejo, e a partir desta avessa sobrevida, com esses restos que vão pingando e manobrando a curiosidade do público, que os investigadores conseguem garantir também que Fernando Pessoa continua a ser uma frutuosa carreira, um “emprego público”, como dizia Cesariny, “já que dá bolsas, viagens, congressos, pronto… foi escolhido para vítima”.

Ora, mesmo a esterilidade dos inéditos que ainda vão surgindo e expondo esse enrede de uma sucessão de fundos falsos na quimérica arca, o mais curioso é a dificuldade em se estabelecer uma linha entre o que é dele ou não, aquilo que é material novo, velho, requentado, ou mais algum borborigmo sem o menor interesse… Por outro lado, quem paga o preço desta indefinição toda de um poeta cuja vocação maior, no entender de Eugénio de Andrade, era mesmo para vítima sempre ao dispor das equipas de resgate universitário ("coitado: dá para tudo;/ e a culpa é dele, com aquela comovente/ incapacidade para ser ele próprio”), quem paga o preço são os poetas vivos, e sobretudo os jovens, que têm de contender e reger-se por esta forma de astrologia e de veneração do brilho cada vez mais distante de astros mortos.

No fundo, estamos ainda a deixar-nos reger por aquele instinto tão nosso para a saloiada, para deixar que seja o encanto dos estrangeiros sobre nós a definir as próprias linhas com que nos cosemos. E este regime manda, assim, que se faça grande fanfarra de cada novo texto ou achado como se fosse de enorme magnitude, mais até para soterrar e humilhar os vivos, para que o verdadeiro culto que entre nós se impõe, o ódio à poesia, ao seu esforço para inquietar e desassossegar as almas ande por aí desmoralizado. Prova disso é o facto de a tal quadra imitativa deste poeta grafomaníaco que era menos de inventar do que de fazer passar, traficar, falsificações e cópias, redundâncias ao infinito, é vizinha de um poema bem mais curioso e digno de nota, um poema de Luís Filipe Parrado que surge à esquerda e merecia melhor atenção do que o poema à direita, o tal rubai enfiado num vaso como um souvenir liofilizado de uma tradição distante. Ei-lo: “Nos seus poemas/ os poetas dizem muitas vezes/ que o mais importante,/ o que marca uma verdadeira diferença/ entre o antes e o depois/ é o apelo da beleza e do terror,/ o ímpeto de rasgar a o véu da carne/ para chegar ao osso./ Aí, onde dói./ Aí, onde o excesso de luz cega./ É o que dizem os poetas./ Muitas vezes./ Nos seus poemas./ Mas, para além de Homero/ e de Borges, diz-me tu,/ que outros poetas cegos conheces?”

E perante um poema como este, vale a pena lembrar um outro episódio referido por Augusto de Campos num dos seus ensaios, a propósito de uma geração de poetas, escritores e artistas russos da época mais violenta do estalinismo, e que veio a ficar conhecida como a geração dilapidada. Mas não foi só o terrorismo de Estado o que determinou esse efeito de descaso sobre tantas obras hoje tão significativas, e exemplo disso, diz-nos Campos, é o facto de, quando Khlébnikov morreu, à míngua, de septicemia, em 1922, Maiakovski ter reagido enojado com os obituários de última hora, escrevendo um texto veemente em que denunciava uma situação parecida com a que vivemos nós: “Depois da morte de Khlébnikov, apareceram em diferentes jornais e revistas artigos sobre ele, repassados de simpatia. Eu li-os com repugnância. Quando, finalmente, irá acabar esta comédia da cura dos mortos?! Onde estavam os que escrevem hoje, quando Khlébnikov andava vivo pela Rússia, sob os escarros da crítica? Eu conheço gente viva, que talvez não seja igual a Khlébnikov, mas que espera fim idêntico. Abandonem de uma vez por todas a veneração por meio de jubileus, centenários, a homenagem por meio de edições póstumas. Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!”