No último ano, Cavaco Silva não se tem coibido de intervir, com duras críticas ao Governo socialista, para grande incómodo de António Costa – em maio, o primeiro-ministro acusou o ex-Presidente de «descer à terra», «vestindo a camisola» de militante do PSD para «alimentar o frenesim de uma crise política artificial». Mas Cavaco Silva não parece querer remeter-se ao silêncio tão cedo e, desta vez, marca o arranque da segunda sessão legislativa desta legislatura com a publicação de um livro com uma série de conselhos dirigidos a quem chefia um Governo, incluindo um capítulo dedicado à forma como um primeiro-ministro deve relacionar-se com o chefe de Estado.
Coincidência ou não, em pleno clima de tensão na coabitação entre os inquilinos de Belém e de São Bento, Cavaco escreve: «[o primeiro-ministro] deve evitar responder em público às críticas [do Presidente da República] à política do Governo que considere injustas ou erradas e reservar-se para manifestar o seu desacordo na seguinte reunião de quinta-feira ou através de um telefonema pessoal, podendo então sublinhar o risco de o Presidente da República ser utilizado como ‘arma de arremesso’ na luta entre partidos».
Cavaco, que tem vasta experiência de dez anos em cada um dos dois lados da relação, avisa que nem o primeiro-ministro nem o Governo «beneficiam de um clima de conflitualidade com o Presidente da República», soando a recado direto para António Costa, que afrontou Marcelo Rebelo de Sousa quando insistiu em manter João Galamba no Executivo contra a vontade do Presidente.
O ex-chefe de Estado lembra igualmente que, «embora o primeiro-ministro saiba que o Presidente da República não dispõe de autoridade executiva e não pode publicamente apresentar alternativas políticas ao programa e à ação política do governo em funções», « o facto de ser eleito por sufrágio universal confere-lhe [ao PR] uma acrescida influência política e capacidade de expressar opinião própria sobre os assuntos relevantes da vida nacional».
Numa altura em queo pacote do Governo para a habitação vai ser discutido no Parlamento, com Marcelo a avisar que o diploma «não é um caso encerrado» com a confirmação do decreto na Assembleia da República, já que a regulamentação ainda terá de passar pelas suas mãos, Cavaco Silva diz que «a principal preocupação do primeiro-ministro no seu relacionamento com o Presidente da República deve ser o de evitar que o Presidente utilize os seus poderes para impedir o Governo de executar o seu programa e que tenha sucesso na sua ação».
Mas também acautela: «O Governo e a maioria parlamentar que o apoia têm legitimidade democrática para tomar medidas com que o Presidente não concorde». Contudo, continua, «são situações que o primeiro-ministro deve fazer o possível por evitar e que deve gerir com toda a sua habilidade política».
O dever de informação
Na receita de Cavaco para uma boa cooperação institucional entre os dois titulares de órgãos de soberania, «o primeiro-ministro deve fazer uma interpretação alargada do dever constitucional de informação ao Presidente».
A verdade é que até em matéria de informação, a relação entre Costa e Marcelo já viu melhores dias. Logo no arranque desta legislatura, o Presidente foi surpreendido com a orgânica e os nomes do Governo a chegarem à comunicação social antes de chegarem a Belém.
Insistindo neste fator decisivo para preservar a coabitação institucional, Cavaco refere, aliás, que «o primeiro-ministro deve ser exemplar na discrição relativamente ao teor de todas as suas conversas com o Presidente da República, nunca alimentando fugas de informação para a comunicação social».
PR não é figura ornamental
Neste capítulo do livro O primeiro-ministro e a Arte de Governar, que será lançado nesta sexta-feira, com apresentação de Durão Barroso, Cavaco dedica ainda alguns parágrafos ao papel do chefe de Estado. «O Presidente da República goza de um amplo espaço de intervenção pública que pode utilizar com mais ou menos intensidade, conforme o estilo e o modo como entende o exercício da sua ação política» e compete-lhe «pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República».
Citando os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, Cavaco lembra ainda que «no nosso sistema político, o Presidente ‘não faz parte da dialética maioria/oposição’, mas não é uma figura ornamental apenas para presidir a cerimónias oficiais e representar o Estado».
Apesar disso, salvaguarda que a conflitualidade com o Governo e o primeiro-ministro pode dar-se se o Presidente «cometer muitos erros ou extravasar claramente as suas competências e tal seja percebido pela opinião pública». Um exemplo que pode encaixar nos «erros» é o facto de Marcelo ter passado o primeiro ano desta legislatura a ameaçar constantemente dissolver o Parlamento, levando o seu segundo mandato num registo de contrapoder.
Cavaco não desenvolve esta ideia, mas acrescenta que «o mais importante para o primeiro-ministro é que o Presidente adote uma conduta marcada pela isenção e independência em relação às forças partidárias, não interfira no combate político e não atue como força de contrapoder relativamente ao Governo, antes lhe garanta cooperação institucional».
joana.carvalho@nascerdosol.pt