A pensar no futuro. Foi desta forma que Fernando Medina apresentou a proposta de Orçamento do Estado para o próximo ano, justificando que «há um dia de amanhã», em troca da ideia das ‘contas certas’. Segundo o ministro das Finanças, o Produto Interno Bruto (PIB) deverá crescer 1,5% no próximo ano, indo ao encontro das últimas estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), mas abaixo dos 2% estimados no Programa de Estabilidade. Quanto à inflação, o Governo está mais pessimista e prevê que a taxa caia de 8,1% em 2022, para 5,3% em 2023 e 3,3% em 2024. O documento dá ainda nota de que o Governo prevê atingir o melhor saldo orçamental da história da democracia este ano e aponta para um excedente de 0,8% do PIB e 0,2% em 2024.
Ao Nascer do SOL, João César das Neves reconhece o clima de incerteza apontado pelo governante, o que, no seu entender, «dificulta o cenário». Ainda assim, refere que «as previsões estão dentro do razoável», considerando tratar-se de «um crescimento medíocre, mas relativamente plausível», para defender que o Governo não está a ser «demasiado otimista» e descartar a ideia de que poderá ser necessário avançar com um Orçamento retificativo. «O Governo tem neste Orçamento o maior aumento de despesa total da história (ajudado pelo PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] ), só com grandes surpresas pode haver um suplementar», disse.
Já António Bagão Félix lembra que, tendo sido o Estado o grande ganhador com a inflação, a questão central que se coloca «é a de encontrar um mix mais justo e eficaz entre redução fiscal, apoio social diferenciado e seletivo sobretudo para as famílias que não são abrangidas pelo IRS, um grau de equilíbrio das contas anuais e a redução da dívida pública, ou seja, alguma desoneração do encargo a pagar pelas próximas gerações». No entanto, reconhece que o documento apresentado fá-lo com alguma prudência, até atendendo a riscos que não são controláveis. «As previsões macroeconómicas com os dados conhecidos podem considerar-se dentro de um intervalo de razoabilidade. Mas poderia ter ido mais longe nas medidas tributárias», diz ao nosso jornal.
A receita fiscal deverá avançar 4,8%, para um valor recorde de 60,13 mil milhões de euros, puxada não só pelos impostos diretos (mais de 14,6 mil milhões), mas também pelos indiretos (mais de 2,7 mil milhões). Números que não surpreendem César das Neves: «O ministro chamou toda a atenção para a multidão de pequenas medidas nos impostos diretos (IRS e IRC), porque aquilo que realmente está a acontecer é nos impostos indiretos (IVA, ISP, etc.), que ajudados pela inflação, aumentam 3300 milhões. Isso, junto ao aumento das contribuições gera de novo um aumento na carga fiscal (o máximo foi 38,% do PIB em 2022, descera para 38% em 2023 e sobe para 38,2% em 2024)».
No total do ano, o IRS deverá render 18,07 mil milhões de euros (abaixo dos 18,15 mil milhões de euros esperados este ano), com esta evolução a ser justificada pelas medidas de desagravamento fiscal do rendimento das famílias por via da atualização dos escalões, redução de taxas, reforço do IRS Jovem e alargamento do mínimo de existência. No seu conjunto, estas mudanças vão retirar cerca de 1,3 mil milhões de euros à receita do IRS em 2024 (mais do dobro do que estava previsto e que eram 525 milhões de euros).
Bagão Félix destaca como aspetos positivos a redução das taxas dos primeiros cinco escalões do IRS, o IRS Jovem, o tratamento fiscal dado ao reforço de capitais próprios das empresas, a melhoria do abono de família e do complemento solidário para idosos, o reforço do FEFSS, Fundo de Equilíbrio Financeiro da Segurança Social. «Já quanto ao aumento das pensões, o Governo vai cumprir a lei, o que, no ano passado, tentou não fazer. Recordo, a propósito, que então a ministra da Segurança Social disse que, caso se atualizassem as pensões nos termos legais, se anteciparia de uma década a rutura do sistema É caso para lhe perguntarem que milagre aconteceu para afinal – e bem – se cumprir a lei em 2023 e em 2024)».
Como aspetos negativos, destaca a não atualização da dedução específica dos rendimentos de trabalho no IRS, bem como das deduções à coleta, a não existência de medidas fiscais ou outras para estimular a poupança, a manutenção das taxas do IRC e das derramas, a rigidificação da despesa pública, com um crescimento real do consumo público de 2,3% – atualmente há 745.707 funcionários públicos contra 649.450 em 2015, ou seja mais 14,8% – e a inexistência de uma verdadeira política de reforma da despesa pública. «Por fim, e mais significativo, é um novo aumento da pressão fiscal em percentagem do PIB, sobretudo à custa do aumento do peso dos impostos indiretos (IVA, ISP e IUC, entre outros) que passam de 12,45 do PIB para 13%. No total de impostos e contribuições, há um maior esforço fiscal de 35,2% para 35,5% do PIB, de todo injustificável».
Redução da carga fiscal é ou não cumprida?
Luís Aguiar-Conraria admite que do ponto de vista macro há um maior aumento, mas reconhece que há uma troca de impostos – dos diretos pelos indiretos. «Se houvesse uma subida generalizada do IVA de 23% para 24%, não podíamos fugir a isso, porque temos de consumir. Agora, o que observamos é um aumento do imposto sobre sobre o álcool, sobre o tabaco, ou seja, são impostos que de certa forma só pagamos voluntariamente. As pessoas podem fumar menos, consumir menos álcool ou deixar de beber álcool mais caro».
Recorde-se que o Estado prevê arrecadar, no próximo ano, e por via dos Impostos Especiais de Consumo, cerca de 216 milhões com a subida do imposto sobre o tabaco (176,6 milhões) e do IABA – Imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas (39,6 milhões). «É melhor ter dinheiro em carteira, ou seja, tirar menos ao salário e aumentar os impostos sobre produtos específicos que podemos evitar se quisermos», salienta ao Nascer do SOL.
O economista reconhece que as maiores dúvidas dizem respeito à aplicação de uma taxa de quatro cêntimos relativos aos sacos ultraleves. «Neste momento podemos tratar isso como uma mera previsão. Quando foi criado da outra vez o imposto sobre sacos de plástico, as previsões estavam todas erradas porque as pessoas simplesmente deixaram de os usar».
Conraria aplaude, no entanto, o fim do IVA zero. Uma medida que, de acordo com o Governo, será substituída no início do ano por uma outra de apoio à alimentação das famílias mais carenciadas. «Aí há claramente um efeito de subida dos impostos. Sempre fui contra o IVA zero porque é um desperdício de apoios financeiros. Esta medida que custava cerca de 600 milhões por ano ao Estado é substituída por uma outra que se as contas não me falham deve ficar por 80 milhões, que é quase dez vezes menos e apoia, pelo menos, os 20% mais pobres».
Quanto à reforma do imposto único de circulação (IUC) – que vai penalizar os proprietários dos veículos de categoria A e E anteriores a 2007, que irá abranger cerca de três milhões de veículos com um limite de 25 euros por veículo em 2024 -, o economista não hesita: «Quase de certeza que quem não troca por carros mais novos é porque não pode. É óbvio o conflito entre duas políticas: o conflito de uma política agressiva do ponto de vista ambiental que terá impactos regressivos». Ainda assim, reconhece que não sabe «muito bem» como poderemos fugir a esta fiscalidade verde. «Qualquer que seja a transformação estrutural da sociedade quem se lixa são sempre os mais pobres. Acho isso uma parvoíce, porque a pessoa já paga impostos pela gasolina e pelo gasóleo que consome, que é o imposto sobre os produtos petrolíferos. Os carros que emitem mais emissões também são os que consomem mais gasolina e mais gasóleo, logo as pessoas já pagam o imposto ambiental na bomba de gasolina».
Sem surpresa foi o anúncio do aumento do salário mínimo nacional para os 820 euros. E estes, apesar das ‘ameaças’ iniciais de Fernando Medina, não vão pagar IRS. «O salário mínimo vai ter uma atualização de 7,9%. É um crescimento de 60 euros. Tanto quanto creio, é o maior aumento anual do salário mínimo alguma vez ocorrido», disse António Costa depois de ter assinado o acordo de concertação social, do qual ficaram de fora a CIP e a CGTP.
Apesar de não determinar os aumentos do setor privado, o Governo sugere que a subida seja na ordem dos 5%, alargando o universo de empregadores que poderão aceder à majoração em sede de IRC, nomeadamente os que deem aumentos acima do previsto na contratação coletiva.
No caso da Função Pública, o salário base vai subir 6,8%, para os 821 euros. Os restantes trabalhadores terão um aumento de, no mínimo, 3%. Estas duas medidas vão custar 847 milhões de euros aos cofres do Estado.
Também a partir de 2024, os jovens não terão de pagar IRS sobre os rendimentos do seu primeiro ano de trabalho. A proposta prevê ainda um reforço do IRS Jovem através do aumento dos limites máximos do benefício, em cada ano. No primeiro ano de trabalho, um jovem em vez de pagar 50% do imposto devido fica totalmente livre de tributação; no segundo ano, a isenção sobe de 40% para 75%; no terceiro e quarto anos, cresce de 30% e 20%, respetivamente, para 50%; e, no quinto, o desconto avança de 20% para 25%.
Mais apoios às famílias
Uma medida que já tinha levado Luís Mira Amaral a dar cartão vermelho ao Executivo. «São umas festinhas no problema e não são mais do que cuidados paliativos», afirmou, acrescentando que «não é com esta política socialista que se cria futuro para o país, que está todos os anos a ser ultrapassado por países do leste europeu e está a caminhar para a cauda da Europa em termos económicos».
Também os apoios sociais vão ser reforçados e as pensões vão contar com uma «atualização histórica», subindo 6,2%, um valor que fica acima da inflação. Esta atualização abrange cerca de 2,7 milhões de pensionistas, e terá um impacto orçamental de cerca 2.200 milhões.
Ao Nascer do SOL, Eugénio Rosa diz que os valores da inflação do PIB, utilizados para calcular o aumento das pensões, são valores do passado. «A inflação é a anual de novembro de 2023, e o PIB é valor anual do 3º trimestre de 2022 e 2023, portanto estes aumentos das pensões é para compensar o aumento de preços já verificado». Lembrando que até setembro de 2023 a inflação anual era, segundo o INE, de 6,34%, acusa: «Os valores apresentados pelo Governo que são inferiores aos meus, não são definitivos pois neste momento não conhecemos os valores definitivos da inflação de novembro, nem do valor do PIB do terceiro trimestre».
O economista avança também que o Governo prevê uma inflação de 2,9% em 2024, «mas é um valor que não é credível, pois o aumento será certamente muito superior devido ao agravamento da crise internacional» que desarticula as cadeias mundiais de abastecimentos. Mas há outro aspeto que é normalmente ignorado ou escondido, segundo Eugénio Rosa: «É que a inflação para as classes de baixos rendimentos como são a maioria dos pensionistas (a pensão média, em 2022, de velhice, invalidez, sobrevivência, era apenas 432 euros, segundo o INE), a alimentação e as bebidas não alcoólicas representam cerca de 40% das despesas mensais destas famílias, enquanto na inflação utilizada pelo Governo é considerado 20%». E, em setembro, a inflação anual dos produtos alimentares era de 13,33%, portanto, o dobro do que o maior aumento das pensões em 2024.
Questionado sobre se o aumento é para todos, incluindo para os que entram na reforma em 2024, o economista responde que não. «Há uma situação de grande injustiça que devia ser corrigida, pois determina uma redução significativa do poder de compra dos trabalhadores que se reformaram ou aposentaram em 2023. E isto porque o Governo considera que esses pensionistas não têm direito a estes aumentos».
No que diz respeito ao abono de família, vão existir aumentos para muitos dos que beneficiam deste apoio. Até ao 4.º escalão e seis anos de idade, a componente base vai subir 22 euros. Uma medida que vai chegar a mais de meio milhão de crianças e jovens.
Sobre este assunto, Eugénio Rosa diz que esta subida corresponde a pouco menos de 70 cêntimos por dia. «É difícil encontrar algo que melhore a vida das crianças com tal aumento por dia, talvez mais uma carcaça». Mas os valores atuais dos abonos família «são tão baixos (entre 62,75 euros e 161,03 euros até aos 36 meses) que 20 euros tem algum significado e tem a vantagem de ser permanente e não pontual como o Governo tem feito».
Também há novidades para as creches. A medida da vaga gratuita passa a incluir todas as crianças com idade até aos três anos, o que deverá abranger 120 mil crianças e um custo orçamental de mais 100 milhões. São abrangidas as crianças nascidas a partir do dia 1 de setembro de 2021 e que completam os três anos até ao início do ano letivo 2024/2025. Além disso, a gratuitidade das creches abrange também todas as crianças de famílias que estão no 1.º e 2.º escalões de rendimentos.
Eugénio Rosa avança que, em setembro deste ano, das cerca 250 mil crianças que tinham direito a creches gratuitas, apenas usufruíam dessa situação 58 mil crianças, e até ao fim do ano letivo previa-se que se atingisse 70 mil. «O Governo não divulgou o número de crianças atualmente em creches gratuitas para a ocultar a realidade, mas prevê que, em 2024, 120 mil crianças estejam em creches gratuitas que é ainda menos de metade do necessário para que o compromisso do Governo fosse respeitado, mas, como já nos habituou, as previsões normalmente não são cumpridas». Uma situação que, no seu entender, «criou um forte descontentamento de muitas famílias por se sentirem enganadas».
O Orçamento conta ainda com uma série de medidas para apoiar o acesso à habitação das famílias. É um investimento de 1.092 milhões de euros. Uma das medidas mais relevantes é o alargamento da bonificação dos juros sobre o crédito à habitação, que deverá beneficiar cerca de 200 mil contratos de empréstimos à habitação, prevê o Governo. Segundo a proposta, a medida terá um custo de 200 milhões de euros no próximo ano e tem como destinatários os créditos à habitação, para a compra de casa própria e permanente, celebrados por famílias com rendimentos até ao 6.º escalão de IRS (rendimentos até 38.632 euros em 2023) e com património financeiro inferior a 62 IAS (Indexante dos Apoios Sociais).
O Governo decidiu rever e simplificar o benefício fiscal para as empresas que apliquem aumentos salariais de pelo menos 5%, alargando o universo de empregadores que poderão aceder à majoração em sede de IRC, nomeadamente os que deem aumentos acima do previsto na contratação coletiva. Sobre esta assunto, Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa, defende que «há uma potencial margem adicional de ganho para as empresas, mas a sua aplicação depende muito da robustez das contas de cada empresa e da sua política com os seus vários stakeholders».
Mais mudanças para as empresas
Uma das novidades do Orçamento prende-se com o facto de as startups começarem a ter uma taxa de IRC reduzida para 12,5% no próximo ano. Mas o corte neste imposto só se aplica às empresas cuja definição legal esteja em linha com a lei aprovada em maio deste ano, que definiu a noção de startups e scaleups.
Paulo Rosa explica que uma descida do IRC «permite às empresas aumentarem os seus lucros, no entanto, os constantes investimentos avultados das startups tendem a afastar estas empresas dos lucros, logo a não beneficiar deste apoio». E lembra que a startup deixa de o ser quando começa a gerar lucro e «alcança um estado maduro ao longo do seu ciclo de vida, logo este apoio tende a ser, de certa forma, paradoxal».
Por outro lado, a maioria das contribuições extraordinárias sobre vários setores vai manter-se em 2024. A Contribuição de Solidariedade Temporária (CST), destinada a tributar lucros inesperados no setor energético e no retalho alimentar, não se aplicará em 2024.
No que diz respeito à banca, a proposta prevê que o setor bancário contribua com 210 milhões através da contribuição extraordinária que foi criada no tempo da troika. A par disso, as instituições financeiras vão pagar 38,8 milhões no chamado adicional de solidariedade. Já no setor energético, a taxa extraordinária vai continuar em vigor. embora com algumas alterações.
Questionado sobre as contribuições extraordinárias da banca e da energia, Vítor Madeira, analista da XTB, diz que «é sempre questionável quando o Estado aumenta a carga fiscal», defendendo que é preciso «ter noção que os lucros extraordinários destas empresas acontecem derivado a fatores que não são controláveis nem pelas empresas nem pelo Estado e têm impacto em todos os agentes económicos».
No caso da energia, Vítor Madeira refere: «É cíclico e normalmente em períodos de inflação tende a beneficiar estas empresas. Já no caso da banca, a mesma beneficia com a subida das taxas de juro por parte dos bancos centrais». No fundo, «esta medida prejudica os acionistas destas grandes empresas, pois a distribuição de dividendos poderá ser afetada».
Quanto ao facto de o Banco de Portugal não pagar dividendos, Vítor Madeira diz que «não é uma empresa, trata-se de um regulador de mercado independente do Estado, pelo que não faria sentido pagar dividendos ao Estado». Já em relação à CGD, «dado que o Estado português já por várias vezes injetou capital no banco, o mesmo excedeu os 4 mil milhões de euros desde 2011 e sendo o único dono do banco, é uma medida que nos parece normal receber dividendos do seu próprio negócio».
Para já, a atualização das rendas ainda não está fechada. O Governo afirmou que ainda está em negociações com as associações dos inquilinos e dos senhorios. Mas, ainda nesta quinta-feira, a Associação Lisbonense de Proprietários (ALP) revelou que o impacto pernicioso já se faz sentir na confiança dos senhorios, com os rumores do travão imposto à atualização das rendas que, legalmente, em 2024, se deveria fixar em 6,94%. «Num eventual cenário de travão às rendas imposto pelo Governo em 2024, quase metade dos senhorios (46%) pondera denunciar os arrendamentos que tem no mercado assim que puder», salienta.
Por outro lado, a proposta não prevê a receita da privatização da TAP no quadro que determina as fontes de financiamento do Estado em 2024.