O inquérito que visa António Costa foi aberto pelo Ministério Público na manhã de terça-feira passada, pouco antes de o primeiro-ministro se demitir: está em causa a suspeita de crimes de tráfico de influência para beneficiar os negócios de, pelo menos, um grupo empresarial que contratara Diogo Lacerda Machado (o seu ‘melhor amigo’), supostamente para a representar como advogado, mas que verdadeiramente atuava na sombra como consultor e influenciador.
Segundo o Nascer do SOL apurou, coube a José Fernando Duarte da Silva, o procurador-geral-adjunto que coordena os serviços do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), abrir o inquérito. Nestes autos, já constam as cerca de 20 escutas de conversas telefónicas em que António Costa foi apanhado de forma fortuita a falar com os arguidos da ‘Operação Influencer’ – nomeadamente, José Matos Fernandes, ex-ministro do Ambiente, João Galamba, ex-secretário de Estado da Energia e atual ministro das Infraestruturas, Vítor Escária, chefe de gabinete do PM, e Diogo Lacerda Machado. Essas conversas são de 2020 e 2021 e foram validadas – conforme previsto na lei, que estipula este regime especial para o primeiro-ministro e Presidente da República – pelos presidentes do STJ em exercício de funções. As três conversas mais antigas, entre Costa e Matos Fernandes, foram analisadas por Joaquim Piçarra, que as considerou irrelevantes só por si, tendo chegado a mandá-las destruir. O MP recorreu, argumentando que tinham de ser preservadas até ao final do inquérito pois poderiam ser relevantes para a análise da prova ao longo da investigação, e o então vice-presidente do STJ deu-lhe razão. As escutas mais recentes, 17, foram validadas pelo juiz-conselheiro Henrique Araújo, que sucedeu a Piçarra no cargo.
O coordenador do MP no Supremo solicitou, ainda no próprio dia de terça-feira, aos procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que conduzem a ‘Operação Influencer’ – João Paulo Centeno, Hugo Neto e Ricardo Correia Lamas – as restantes interceções telefónicas que incriminam os outros arguidos e em que estes implicam António Costa, referindo explicitamente que o PM interveio no desbloqueamento dos negócios que estão sob investigação.
Nas conversas telefónicas intercetadas, os investigadores ficaram com a convicção de que António Costa já sabia, ou pelo menos suspeitava fortemente, que estava sob escuta, pois chega a cortar o discurso de Matos Fernandes, dizendo-lhe que falarão mais tarde e pessoalmente sobre o assunto. Em declarações ao Observador, Costa negou que soubesse estar sob escuta.
Dinheiro em envelopes em S. Bento
As buscas realizadas na manhã de terça-feira é que apanharam mesmo toda a gente de surpresa, além de causarem um terramoto político.
Na residência oficial do primeiro-ministro, as equipas de agentes da PSP lideradas por um magistrado do MP também não contariam encontrar o que encontraram no gabinete de Vítor Escária – o ex-chefe de gabinete de José Sócrates, que António Costa foi buscar para a mesma função, apesar de todo o historial que ficou escancarado na ‘Operação Marquês’. O achado consistiu em nada mais nada menos do que cinco envelopes com notas, um numa caixa de vinho guardada numa gaveta da secretária usada por Escária e os outros nas estantes, entre livros. Um dos elementos da investigação embasbacou: «Parece que estamos num comércio de porta aberta ou uma casa de traficantes…». Perguntaram a Escária que dinheiro era aquele e este respondeu, de forma ainda mais surpreendente: «Não é meu». Ontem à tarde, o seu advogado, Tiago Bastos, aumentou o mistério: afirmou aos jornalistas que o dinheiro terá que ver com assuntos profissionais do seu cliente, não será nada de ilegal, e não com o que está em causa no processo. Costa exonerou ainda ontem Vítor Escária.
Depois de contadas todas as notas, os investigadores tiveram mais uma surpresa: em vez de um valor ‘redondo’, eram 75.800 euros, indiciando que algum dinheiro já fora gasto e que se estava perante um ‘fundo de maneio’, a típica ‘mala’ ou ‘saco azul’. Ou seja: dinheiro cuja origem não se pode saber e que é para pagar despesas que ninguém deve saber ou ter possibilidade de comprovar.
Muitos crimes, três negócios
Prevaricação, corrupção ativa e passiva (de titular de cargo político), tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem quanto a titular de cargo político e a alto cargo público são os crimes em causa no inquérito da ‘Operação Influencer’, iniciado em 2019.
A investigação tem três eixos fundamentais. O mais consolidado centra-se no projeto de construção de um data center na zona industrial e logística de Sines, pela Sociedade Start Campus, a empresa que contratou Lacerda Machado como advogado, por 7.000 euros por mês, sem que haja, porém, até agora, qualquer documento jurídico com a sua assinatura. Os cinco arguidos detidos estão, aliás, todos implicados nestes negócios: além do amigo do PM, são eles Vítor Escária, Rui Oliveira Neves, advogado e um dos administradores da empresa Start Campus, Afonso Salema, diretor executivo da Start Campus, e Nuno Mascarenhas, presidente da Câmara de Sines. Todos têm pernoitado desde terça-feira no Comando Metropolitano da PSP e começaram ontem à tarde a ser ouvidos pelo juiz de instrução criminal Nuno Dias Costa
Os outros dois dossiês em investigação são as concessões de exploração de lítio nas minas do Romano (em Montalegre) e do Barroso (em Boticas), e a instalação de uma central de produção de energia a partir de hidrogénio em Sines, apresentado por um consórcio que se candidatou ao estatuto de Projetos Importantes de Interesse Comum Europeu (IPCEI).
No despacho de indiciação dos arguidos, o MP afirma que, «em data não concretamente apurada, mas anterior a outubro de 2020, pessoa que ainda não se logrou identificar, agindo sob as orientações e no interesse da Pionneer Partners LLP (empresa que tem Lacerda Machado como consultor), acordou com Diogo Lacerda Machado que, recebendo em contrapartida vantagens patrimoniais, e aproveitando-se da sua relação de amizade próxima com o PM, bem como da relação de proximidade que mantinha com Vítor Escária, iria exercer contactos e exercer influência e pressão sobre membros do Governo, titulares de órgãos de autarquias locais e de outras entidades públicas, com vista a determinar indevidamente o sentido de atos desses membros e titulares de forma a fazer com que os atos fossem praticados de forma mais célere, tudo em benefício do mencionado projeto da Start Campus».
O MP constata ainda: «Na verdade, a influência exercida por Diogo Lacerda Machado sobre os mencionados titulares públicos corria e decorre da circunstância de estes terem conhecimento da relação de grande proximidade ente Diogo Lacerda Machado e o PM e de bem saberem que, em virtude dessa relação, Diogo Lacerda poderia influenciar positiva ou negativamente a imagem dos referidos decisores junto do PM, consoante a sua atuação fosse ou não favorável aos interesses da Start Campus».
Os responsáveis da Start Campus são suspeitos de «estabelecer relações de proximidade e exercer influência» junto de João Galamba. O MP diz que Galamba aceitava jantares pagos pelos empresários e que chegou a apresentar no Conselho de Ministros documentos escritos por eles. Os administradores desta empresa terão conseguido «uma relação de proximidade e confiança» com Galamba, não só enquanto secretário de Estado da Energia, mas também depois como ministro das Infraestruturas. Afonso Salema e Rui Oliveira Neves contactavam-no com muita regularidade, reuniam com ele no Ministério, em encontros formais, mas também em almoços e jantares. Estes administradores da Start Campus mandavam escrever despachos de Governo, que Galamba fazia aprovar em Conselho de Ministros e depois publicar rapidamente em Diário da República.
Nos mandados de busca e nos despachos de indiciação dos arguidos, o MP fala da montagem de uma verdadeira «teia de influências para conseguir concretizar um negócio de mais de 3.500 milhões de euros» (o centro de dados em Sines, da Start Campus), «uma teia de ligações e empresários e membros do Governo que chegavam ao PM». Lacerda Machado, afirma, por ser o melhor amigo de António Costa, foi contratado para influenciar decisões a favor da empresa, recebendo cerca de 7 mil euros por mês para desbloquear contactos – ou seja, um lobista.
Diogo Lacerda Machado seria a ponte entre os cinco detidos e a amizade de 40 anos com Costa permitiu-lhe «influenciar o Governo na tomada de decisões». Estabelecia contactos regulares com o primeiro-ministro, com Vítor Escária e Galamba, mas também com os titulares de pastas-chave para os negócios em causa: Pedro Siza Vieira (ex-ministro da Economia) e Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente. Tudo «para tomarem decisões ilícitas favoráveis ao interesse da empresa e envidou esforços para influenciar as decisões daqueles, o que nalguns casos conseguiu».
Em relação a José Matos Fernandes, o MP constituiu-o arguido por três questões: quando era ministro do Ambiente, só convocou a Comissão Permanente da Seca (com vista à interdição da produção de energia em quatro barragens) e proibiu o uso de água para rega da albufeira da Bravura, em Lagos, dois dias após as legislativas de 30 de janeiro de 2022, havendo a suspeita de que o objetivo foi favorecer o PS perante a reação negativa da população. Ou seja: prejudicou o interesse público para beneficiar um partido político.
É ainda investigado por suspeita de ter beneficiado o consórcio H2 Sines (Galp, EDP, Martifer e Vestas), no projeto para a exploração de hidrogénio verde.
‘Temos que escalar já ao PM’ – as escutas que implicam Costa
Os arguidos estiveram sob vigilância policial e a serem escutados durante um ano e meio. Ao longo deste período, os arguidos têm múltiplas questões cuja resolução passa por empresas e organismos públicos. António Costa é invocado por múltiplas formas – na sua autoridade, na necessidade de a ele recorrer ou mesmo na constatação de que já terá dado a palavra necessária para se avançar.
Por exemplo, em dezembro de 2022, Afonso Salema e Rui Oliveira Neves (Start Campus) discutem: «O que precisa o Rodrigo, de uma chamada do primeiro-ministro a dizer que ele precisa de fazer isso?». Referem-se ao presidente da REN, Rodrigo Costa. «O Rodrigo só precisa que lhe digam, que o Governo lhe diga que aquilo é para avançar», respondeu Rui Oliveira Neves. Salema sugere-lhe que, então, transmita a João Conceição, membro da Comissão Executiva da REN, que «vão ter de escalar com isto».
Noutra conversa, estes dois arguidos fazem um ponto da situação de questões técnicas do projeto que estão bloqueadas por falta de autorizações e que nunca mais se resolvem. Hesitam em ir diretos ao PM, através de Escária ou Lacerda Machado, ou irem primeiro a Galamba e só depois ao PM, senão Galamba ficaria «chateado» quando soubesse que andavam «a fazer queixinhas» a Costa. Acabam por decidir conforme sintetiza Afonso Salema: «Temos que escalar já ao primeiro-ministro».
«É preciso escalar» é uma expressão que se repete e com a qual os arguidos estão a ser confrontados nos interrogatórios perante o juiz de instrução.
Meses antes, em agosto de 2022, Afonso Salema disse a Diogo Lacerda Machado que «abordasse o Governo para suscitar junto da Comissão Europeia uma alteração em matéria de códigos de atividade económica para os data centres». «’Tá bem. Eu vou decifrar essa, se é economia ou finanças. Vou começar por aí e depois logo lembro como tomamos a iniciativa de suscitar e sugerir. Se for finanças, eu falo logo com o Medina ou com o António Mendes, que é o secretário de Estado. Se for economia, arranjo maneira depois de chegar ao próprio António Costa».
Também o próprio João Galamba coloca Costa em maus lençóis. Em conversa com um amigo, quando vem à baila o projeto do data center de Sines, diz que os empresários «querem apoio político e no licenciamento». O amigo questiona: «O primeiro-ministro já percebe a importância disto?». «Tem pessoas à volta dele que percebem», respondeu-lhe o ministro das Infraestruturas.
Noutro telefonema, dessa vez com a sua chefe de gabinete, Eugénia Correia, João Galamba contou-lhe que assistiu à apresentação do projeto, que seria «o maior investimento privado em Portugal desde a Autoeuropa», e que o investidor lhe agradeceu publicamente pelas políticas que tem estado a desenvolver. E acrescenta: «Um dos advogados deste megaprojeto é o grande amigo do PM. Como ele está nas reuniões e vê o que a nossa equipa está a fazer pelo projeto, ele conta ao PM, não é?».
Mais uma mudança de planos: sede do PS ficou de fora
A operação tem neste momento 14 arguidos.
As buscas, ao contrário do que tem sido dito por muitos comentadores televisivos, não foram precipitadas pela entrevista dada pelo presidente do STJ ao Nascer do SOL, na passada sexta-feira (2 de novembro). A data inicialmente fixada foi a de 24 de outubro. A única dificuldade desta investigação, que correu longe dos holofotes das televisões, prendeu-se, como é habitual, com a falta de meios: arranjar viaturas para 145 homens da PSP não foi tarefa fácil e a operação acabou por ser adiada para 7 de novembro, exatamente quinze dias depois. No terreno, estiveram 17 magistrados do Ministério Público, três juízes, dois advogados representantes da Ordem dos Advogados, nove elementos da Autoridade Tributária e os 145 elementos da PSP.
As instruções eram claras: encontrar documentos relativos aos procedimentos administrativos na base dos negócios em causa, à atividade das empresas, apreender suportes e equipamentos informáticos, telemóveis e eventuais «quantias em numerário que possam consubstanciar vantagem ou produto da atividade criminosa em investigação». As buscas, justificou o MP, «são proporcionais à muita elevada gravidade das condutas investigadas». O gabinete de Vítor Escária, acrescentou, «pelas funções exercidas, naturalmente carece de acrescida ponderação: por forma a compatibilizar as necessidades probatórias com os demais interesses em conflito, a busca será restrita ao espaço de trabalho do suspeito e à matéria factual em causa».
Segundo o Nascer do SOL ainda apurou, chegou a estar previsto fazerem-se buscas também na sede do PS, apenas no escritório ou gabinete habitualmente usado por Escária. Mas isso não aconteceu. Em julho deste ano, recorde-se, houve buscas à sede do PSD, no âmbito de um inquérito ao uso de dinheiros públicos para pagar assessores deste partido. «Todos os partidos ficaram de sobreaviso», comenta uma fonte judicial. l