Para a historiadora, independentemente da solução que irá sair nas próximas eleições, os conflitos sociais não irão diminuir e acredita que iremos assistir a mais greves e protestos, defendendo que ‘temos uma classe política muito medíocre que está muito desvinculada da população’. Raquel Varela pede ainda a construção de uma alternativa de esquerda, ‘mas que seja verdadeira alternativa’, acusando o PCP e o Bloco de quererem ser ‘uma espécie de consciência crítica do PS’.
Vamos voltar a ter eleições e tendo em conta a elevada taxa de abstenção que tem existido como vê este distanciamento dos portugueses em relação à política?
Acho que é profundamente construído. Acho que as classes dirigentes e os políticos profissionais, na sua maioria, gostam deste distanciamento da política. Estive recentemente em Londres e há reuniões diárias por bairro, em que as pessoas discutem a situação na Palestina e, a partir daí, discutem a geopolítica mundial. Debate-se se o orçamento público deve ir para a saúde ou para o armamento. Discutem a relação dos países com Israel. São alguns exemplos, mas poderiam ser muitos outros.
Isso não acontece em Portugal porquê? Por falta de informação, por falta de interesse?
Portugal é um país onde o Estado tem um peso absurdo na vida pública. Não há sociedade civil, política, associativa. Nos próprios partidos temos taxas de militância e de participação política residuais. Por exemplo, porque é que no PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]se decide que são colocadas não sei quantas eólicas, não sei quantos parques solares em zonas de montado? Porque é que se decide que existe agricultura intensiva no Alentejo ou estufas de plástico em Odemira? Porque é que não se chamaram as populações locais e discutir ‘O que é que faz falta ao país?’. Estamos numa situação em que não temos emergências de maternidades abertas e achamos que a política são os empréstimos do PRR para ir pôr eólicas onde havia montado? Primeiro, de ecológico não tem rigorosamente nada. Segundo, essas são as nossas prioridades? Porque é que isto não se discute com as pessoas? Porque se assume que as pessoas são estúpidas e que não têm direito a ter uma palavra nas suas próprias vidas. Digo isto sem nenhuma demagogia, quando ouvimos as pessoas coletivamente sobre o seu trabalho, elas têm ideias extraordinárias. Façam uma redação de jornalistas que podem falar livremente, sem medo de ficar desempregados, etc. Uma reunião de médicos num hospital sobre como é que deve ser gerido um hospital. Entrem numa escola e perguntem aos professores o que é que está mal no currículo e como é que deve ser organizada a escola. As pessoas não são ouvidas e, portanto, acham sempre que vem aí um D. Sebastião. Há um Messias, um novo, que vai aparecer e vai resolver os problemas ou porque é muito encantador e tira fotografias com toda a gente, Marcelo Rebelo de Sousa, ou porque o que isto precisa, na verdade, é de uma mão autoritária e, portanto, chama-se o fascista de turno para se resolver. Nunca há a perspetiva que é a verdadeira essência do que é o 25 de Abril e os meses seguintes de que devolver às pessoas a sua ação. No 25 Abril tivemos coisas absolutamente extraordinárias. Gente que vivia em barracas, analfabeta, que se junta para construir escolas e para discutir onde é que vai ser o teatro. Por exemplo, as companhias de ballet iam às fábricas dançar.
Estamos a assistir a uma regressão…
Não tenho dúvidas nenhumas.
O que está à espera das próximas eleições?
Acho claramente que há uma vontade de quem tem mais poder no país de decidir os destinos do país. Estamos a falar aqui das grandes corporações, de grandes empresários e, evidentemente, a União Europeia que têm um papel central que é ou fazer um bloco central entre o PS, PSD e, eventualmente, o CDS ou poderá sair daqui um Governo de direita com o neofascismo ou não. Temo que a vontade seja de continuar com a austeridade, chamando outros nomes, como cativações, sacrifícios, ser bons alunos ou procurar soluções cada vez mais autoritárias e bonapartistas, que, é bom dizer, não começam de hoje. António Costa já fez várias requisições civis e até fez uma requisição militar contra greves. Esta ideia de que quando os trabalhadores exigem condições de trabalho se responde com mais autoritarismo não faz sentido. Devia-se repensar porque é que as pessoas estão a trabalhar há 20, 30 anos e não ganham o suficiente sequer para pagar uma renda de uma casa. Essa é que é a discussão. Quando falamos de regressão social estamos a falar disto. Estamos a falar hoje de um médico em Lisboa, e um professor muito menos, que não consegue pagar uma renda de casa. E, portanto, evidentemente que o país está numa decadência profunda.
Acredita então numa vitória do PSD, mas que terá de se coligar?
Das duas uma: ou o PSD vai governar com a direita, com a extrema-direita, ou o PS vai governar com o PSD. Não acredito que isso vá ter qualquer efeito na diminuição dos conflitos sociais. Temos uma classe política muito medíocre que está muito desvinculada da população. Não é só a população da política, é a política da população. E tirando aqueles quadros mais velhos que vêm do tempo da revolução há uma visão tecnocrática da política que é dominante nestes partidos todos, quase todos, que acreditam que isto se resolve tudo com propaganda, comunicação, conversa, quando os conflitos sociais em Portugal não vão diminuir, vão aumentar. Vamos ter cada vez mais greves, mais protestos, mais absentismo, mais desmotivação no local de trabalho, mais conflitos sociais do que tivemos no passado, porque a ideia de que uma sociedade miserável não se revolta é verdade em sociedades camponesas africanas, onde a maioria é analfabeta e onde não há cidades dignas desse nome. Em sociedades urbanas escolarizadas, regressão social implica conflitos sociais.
Antes da queda do Governo, os protestos tinham vindo a intensificar-se, desde os professores aos médicos…
Claro, não tenho dúvidas nenhumas que vai continuar. E não é nem um Governo de Bloco Central, nem um Governo de direita que vai impedir os protestos sociais. O único efeito que pode diminuir os protestos sociais é melhorarem as condições de vida das pessoas. E a maioria das pessoas em Portugal quando luta ou quando está em protesto não é para ter condições que consideraria dignas no século XXI é para ter condições mínimas de sobrevivência.
Ainda foi possível com este Governo aumentar o salário mínimo nacional, as pensões…
Mas a questão não é o salário mínimo, o salário médio não dá para viver. O salário mínimo antes da pandemia real estava calculado em 1.200 euros. Ou seja, hoje ninguém vive numa cidade com menos de 1.500 euros para pagar contas, não é para ir de férias para sítios bons, é só para pagar contas. O que temos é uma subida sistemática do salário mínimo, mas os outros salários estão todos congelados, ou seja, qualquer dia estamos todos a ganhar o salário mínimo, que é abaixo do mínimo necessário para viver.
Mas até às novas eleições vai ficar tudo em banho-maria…
É possível que se reduzam um bocadinho os conflitos. O Governo quer deixar os médicos em banho-maria, porque no dia 1 de janeiro os médicos voltam a ser obrigados a fazer as 150 horas extraordinárias, uma vez que, começa um novo ano. Agora está a tentar que as escolas se acalmem, mas evidentemente que isto vai tudo explodir mais rápido porque as pessoas não têm como viver. E, volto a dizer, as pessoas não estão a lutar por comer com muita qualidade, por ir para férias descansados, por os seus filhos terem uma casa estão a lutar para conseguirem pagar contas.
Como viu o processo das escutas da Operação Influencer?
A corrupção não é uma questão do indivíduo A ou B. A partir do momento. em que temos massivos empréstimos a entrarem no país, que é o caso do PRR, cujas decisões não são sujeitas ao tal escrutínio popular democrático, o que temos é uma disputa selvagem por esses recursos. E foi isso que se viu. Esta situação completamente deprimente do ponto de vista moral e ético é o resultado de algo que está a montante. Podem substituir estes por outros, mas o problema de fundo vai ser o mesmo. A decisão democrática sobre os dinheiros públicos não é feita.
Não ficou então surpreendida?
Não me surpreendeu absolutamente nada. O que me incomoda particularmente é que o Ministério Público atua quando há uma forte probabilidade ou uma forte suspeita social, digamos assim, a sociedade olha para as ações do Ministério Público e vê-as como desiguais. São feitas coincidentemente com crises políticas muito claras, quando o Ministério Público, na verdade, devia atuar sempre quando há casos de corrupção. O Ministério Público não anda a investigar o financiamento do Chega, fizeram isso os jornalistas. O Ministério Público não anda a investigar de forma sistemática as não sei quantas denúncias de tráfico de seres humanos nas estufas de Odemira. Não digo que o Ministério Público inventou um caso, digo é que o Ministério Público vira os recursos para um lado e não para o outro. E aí parece haver muito influência política.
A troca de nomes e alguns erros que, entretanto, foram denunciados poderá fragilizar a base da investigação?
Acho que sim. Vai haver aí uma disputa em torno do que é que significa isto e que, evidentemente, está marcada à partida uma situação gravíssima em Portugal que impede qualquer exercício democrático da Justiça que é o tempo e o acesso à justiça. Evidentemente, que nada que dura dez anos pode ser justo e democrático e, portanto, já é a instituição levada menos a sério pela população, o que é gravíssimo, porque, no limite, são pessoas que podem ficar responsáveis pela restrição de algo tão importante quanto a nossa liberdade ou as suspeitas, ou a nossa honra. Agora evidentemente que vai haver tentativas de desacreditar um lado e outro. Mas volto a dizer, acho que a origem da crise política é uma disputa de uma burguesia dependente dos recursos. E essa disputa é feita através sobretudo dos quadros do PS, do PSD e do CDS. E as soluções que se apresentam não é abrir uma discussão pública sobre os destinos dos direitos públicos é legalizar o lobby, que é o que muitos andam a defender nestes últimos dias. É: ‘Então se há corrupção vamos lá legalizar a corrupção’, porque o lobby é a legalização da corrupção. É quem tem dinheiro para ir aos sítios, contratar assessores para jantares pomposos, oferendo os seus préstimos. Qual é a diferença entre fazer isto legalmente ou ilegalmente? Para mim nenhuma, é tudo vergonhoso. Eu quero discutir o PRR, nem sei se é preciso um PRR. Acho que o que é preciso é ter saúde, educação e trabalho com direitos. Mas essa é a minha opinião e a opinião dos outros 10 milhões? Vamos lá discutir isso. Isso não vai ser substituído por uns que são corruptos e outros que deixam de ser corruptos porque passa a ser legal que sejam corruptos.
De acordo com as sondagens, o Chega deverá crescer…
Acho que sim, mas aí há dois responsáveis maiores. É o neoliberalismo, quer do PS, quer do PSD que utiliza o Chega como o papão e levam-no ao colo mediaticamente. É absolutamente incrível. É completamente levado ao colo. E aqui a responsabilidade da imprensa e dos partidos políticos é gigantesca. A segunda tem a ver com os partidos de esquerda. Os partidos de esquerda não se apresentam como uma solução real à crise, uma solução real democrática e transformadora, tornaram-se uma espécie de apêndices catatónicos do PS. E a geringonça foi o culminar desse processo. Se queremos uma alternativa à crise temos que construir uma alternativa. Sou de esquerda, portanto, defendo a construção de uma alternativa de esquerda, mas que seja verdadeira alternativa.
A esquerda irá apresentar-se com novos líderes…
Isso mudou alguma coisa no papel dos partidos? A mim não me parece. A mim parece-me que querem ser uma espécie de consciência crítica do PS e não se apresentam com um programa alternativo. Desde logo, devo dizer que essa ideia de um programa alternativo feito a partir de um gabinete nem acredito nisso. Se quero fazer um programa para o Serviço Nacional de Saúde tenho que convocar centenas de médicos, de enfermeiros, de trabalhadores dos hospitais e dizer ‘digam me lá como é que isto deve ser?’ Se quero fazer um plano para a comunicação social tenho que convocar jornalistas, editores, donos dos pequenos jornais então digam lá o que é que acham? Se tenho um plano para a educação tenho que juntar professores, estruturas educativas. Há sempre esta ideia de que há umas cabeças muito inteligentes lá em cima que vão resolver a nossa vida. E depois isso cria uma coisa péssima, não só desvincula as pessoas da política, desvincula as pessoas da responsabilidade, porque quando chamo alguém para tomar decisões também estou a dizer que ela é responsável. Quando isso não acontece, as pessoas também acham que tem nada a ver com elas.
Em relação ao PS. Quem acha que sairá vencedor: Pedro Nuno Santos ou José Luís Carneiro?
Depende. Não conheço suficientemente o que é que se passa dentro do PS. Acho que a solução do Pedro Nuno Santos é para piscar o olho ao Bloco e ao PCP e tentá-los, outra vez, mantê-los ali como consciência crítica do PS. A solução de José Luís Carneiro é uma solução do Bloco Central.