No país das cunhas

À consciência da humanidade, Portugal tornou-se num absurdo caso de estudo

O clientelismo político e a visão totalizante que saíram do golpe militar de 28 de Maio de 1926, originando um regime corporativo que se prolongou durante décadas, continuam a fazer-se sentir, relembrando que Abril continua por cumprir e, de um modo ainda mais perigoso, por exorcizar nas mentalidades que agora vivem em liberdade.

Nessa distorcida visão, o aparelho de Estado e os grémios corporativos representavam a maior fonte de informação do regime, onde os seus funcionários se transformavam em denunciantes privilegiados, negociando através da cunha, dos favores pessoais e da manipulação das decisões, o futuro imediato de qualquer cidadão. Quem segurava a caneta capaz de proferir um despacho num determinado sentido, detinha um poder incomensurável.

Este abuso permanece, chegando ao ponto de misturar os poderes teoricamente independentes entre si, condicionando a harmonia e o equilíbrio por parte do Chefe de Estado. Como a cortina de fumo persiste em aparecer, condicionando e manipulando decisões populares legítimas, talvez valha a pena institucionalizar esta prática reiterada de lobby, de uma vez por todas, de modo a conseguir punir o que é ilícito.

Façamos um exercício. Fechemos os olhos e imaginemos um país onde um Presidente da República e um primeiro-ministro, após um período de coabitação saudável, se desentendem por causa da permanência em funções de um ministro, originando um braço de ferro onde ninguém pretende ficar mal na fotografia. Uma luta de afirmação e de poder, apenas para demonstrar quem manda mais, tornando irrelevante o próprio ministro, porque o tema principal do diferendo nunca residiu em si. Logo depois, sucedem-se várias peripécias onde ninguém cede e a tensão cresce, caindo-se na tentação de proferir ameaças em praça pública, com recados através da imprensa. Até se chegar ao ponto de envolver a justiça. Nessa fase, surgem notícias sobre um alegado favorecimento para um tratamento milionário de gémeas luso-brasileiras, onde, alegadamente, o filho do Presidente da República teria recorrido a uma cunha para tal. Pouco depois, antes que tal caso tomasse conta da agenda mediática, são realizadas buscas e detenções de pessoas próximas do primeiro-ministro, na sua própria residência oficial. Sabendo por um parágrafo num comunicado de última hora que também estaria sob investigação, demite-se, parecendo derrotado após tantos rounds disputados. Porém, a situação das cunhas das gémeas regressa à tona através de um inquérito criminal aberto no preciso dia em que o primeiro-ministro se demitiu. E o Presidente da República tenta convencer o país que não fala com o próprio filho sobre um tema tão singular, nem sequer nos eventuais encontros de família.

Agora podem abrir os olhos e olhar em redor. Para além de se constatar que só o povo é prejudicado por mais uma crise política, vemos um antigo primeiro-ministro liberto de um país de cunhas e do compromisso pós-eleitoral de permanência imposto pelo Presidente da República, assim como um cenário futuro instável e preocupante. Algo muito vantajoso para quem nos habituou a estar sempre à frente dos demais. À consciência da humanidade, Portugal tornou-se num absurdo caso de estudo.