Catarina Pazes diz que legislar sobre este tema antes de garantir cuidados paliativos à população é “perverso”. Só 30 por cento dos doentes têm acesso e apenas 10 por cento das crianças em situação de sofrimento beneficiam de cuidados paliativos.
Como analisa todo o processo legislativo referente à morte medicamente assistida?
É uma discussão que dura há muitos anos e o tema tem sido muito debatido. Mas a meu ver o debate fugiu sempre às questões absolutamente essenciais. Tais como o que é de facto o pedido de morte antecipado, o que é a morte provocada a pedido do próprio perante uma doença grave e em fase avançada que provoca sofrimento intolerável? Devia ter havido um debate profundo sobre o que isto significa objetivamente. Quando se avança para aquilo que são as opiniões, quando estamos a discutir pontos de vista éticos, deontológicos, profissionais, etc., devíamos estar todos a falar do mesmo. Mas aquilo que se passou foi um debate político, de conflito partidário, que acabou por descartar o conceito. O que dificultou e prejudicou a compreensão. Extremaram-se posições e em momentos cruciais, nomeadamente na Assembleia da República, continuaram a verificar-se confusões ao nível do próprio conceito, confusões sobre aquilo que estamos a legislar e o que é que estamos a garantir às pessoas que têm uma doença grave e com sofrimento que é considerado intolerável, sendo, por isso, que lhes é dada a possibilidade de pedirem a morte. O resultado é a lei que temos aprovada.
Como é que a qualifica?
É uma lei que parece ter vários crivos e numa primeira análise previnem a tal rampa deslizante. Mas todos sabemos que este foi também o início da legislação nos outros países que acabaram por descer por essa rampa deslizante. Hoje, é apenas permitida esta opção às pessoas adultas com determinado tipo de doença, lúcidas, orientadas, conscientes, que reiteradamente solicitam a morte a pedido e só depois de serem avaliadas. Só que na realidade sabemos que o processo vai sendo simplificado ao longo do tempo, à medida que vão surgindo situações concretas e vão sendo pedidas alterações à lei, até chegarmos a um ponto em que o processo e o acesso é muito simplificado. É isto que tem acontecido noutros países e é a grande preocupação relativamente a esta lei.
Considera, então, que com esta lei se abriu uma caixa de Pandora?
É isso mesmo. Nós estamos a falar de sofrimento intolerável que decorre de uma doença grave e, ao mesmo tempo, não estabelecemos como obrigatória a consulta em cuidados paliativos, uma consulta feita por uma equipa especializada a um doente que pede antecipadamente a sua morte por causa desse sofrimento. Estamos a falar de sofrimento que decorre de uma doença e é exatamente isso que nós fazemos: tratar e prevenir o sofrimento através das equipas de cuidados paliativos especializadas. O pedido de antecipação da morte é um critério de alta complexidade em cuidados paliativos e implica logo à partida o acesso a uma equipa especializada. A lei tem de prever o acesso deste doente a uma equipa especializada, deve ser esta equipa a avaliar o pedido e explicar o que pode e não pode oferecer.
Existindo essa intervenção, é garantido que muitos desistiriam dessa opção de pedirem a morte antecipada?
O que eu sei e posso seguramente garantir é que muitas das pessoas consideram intolerável o seu sofrimento porque não têm e não tiveram acesso a cuidados paliativos de qualidade. Isto está estudado, nós temos essa experiência com muitos doentes e temos outra experiência que também nos parece fundamental neste processo.
Que tem a ver com o desconhecimento?
Sim. A lei prevê a oferta de cuidados que o doente pode ou não requerer, ou seja, o médico assistente explica ao doente que tem acesso a cuidados paliativos e ele logo escolhe. Mas a nossa experiência mostra que isso não é suficiente para nos dar a garantia de que tudo está a ser feito para que o doente tenha um alívio do seu sofrimento. Existe um grande desconhecimento geral da população sobre o que são cuidados paliativos, mas também por parte dos próprios profissionais. Só depois da primeira consulta de cuidados paliativos progressivos é que muitas pessoas dizem “Agora percebo o que vocês fazem e sei que devia estar a ser acompanhado há mais tempo”. E, muitas vezes, quando lhes é oferecido, já é tarde demais.
O facto de ser apresentado como uma câmara de entrada para a morte, também leva a essa rejeição?
Os cuidados paliativos são muitas vezes oferecidos de forma depreciativa, dando a entender que é um recurso porque não há nada a fazer. Esta é uma forma errada, que leva as pessoas a rejeitar este tipo de cuidados. Quem está num sofrimento que considera intolerável, independentemente da forma de como irá morrer, deve ter acesso a um alívio ou pelo menos a uma consulta e a uma avaliação neste sentido. E o próprio decide se aceita, venha a sua morte a acontecer de forma provocada ou de forma natural. Até ao momento da morte qualquer pessoa deve ter acesso a um alívio e ao controlo do sofrimento que está a ter por causa da doença. Claro que muitas pessoas mudam de opinião depois desta consulta.
Acha que esta lei é necessária, tendo em conta essa função dos cuidados paliativos?
Face à situação atual no país, ao contexto do acesso a cuidados paliativos, à necessidade do desenvolvimento da rede nacional de cuidados paliativos, à ausência em algumas regiões de equipas comunitárias de suporte em cuidados paliativos, à falta de formação nesta área da totalidade dos profissionais de saúde, à iliteracia da população e dos profissionais desta área, posso dizer que esta lei é extemporânea. É uma lei que vem fora do seu tempo e o país não está preparado para ela. Também não nos parece que estejamos a trabalhar no sentido de uma regulamentação que de facto proteja as pessoas e impeça que sejam levadas para um caminho que não escolheriam se tivessem o acesso aos cuidados adequados.
Mas já não há muito a fazer, ou há?
A nossa preocupação agora, tendo a lei sido aprovada, é percebermos se o país está em condições de a regulamentar ou não. Devemos garantir os cuidados adequados às pessoas quando se encontram com uma situação complexa, grave, que provoca sofrimento. É esse o papel do Estado. No entanto, temos um Estado que não está a garantir isso; ao invés, temos um Estado que se prepara para permitir que as pessoas peçam a morte antecipada por causa desse sofrimento. E isso parece-me perverso.
Mas é inevitável?
Mais cedo ou mais tarde vai ser inevitável. Pode não ser agora. Mas há uma vontade política muito grande de avançar para que esta lei seja uma realidade. E nós, paliativistas e associação, não devemos enterrar a cabeça na areia e fingir que isto não está a acontecer. Temos de fazer aquilo que tem que ser feito para que sejam garantidos a todas as pessoas os cuidados paliativos quando estas se encontram numa situação de sofrimento e ao mesmo tempo fazer tudo o que esteja ao nosso alcance para prevenir para que não cheguem a uma situação de sofrimento intolerável. É esta a nossa luta: garantir os cuidados de saúde adequados para as pessoas. Se vamos ter ou não esta lei a regular as nossas vidas, não sei, mas temos de nos preparar para isso.
E quais são os principais desafios nessa luta?
Do ponto de vista deontológico vão ser levantadas questões determinantes. A deontologia médica e a deontologia de enfermagem são os temas mais polémicos. Provocar a morte a pedido do próprio passa a ser legal e isso implica que o direito a pedir a morte incluí o dever de alguém a provocar. O que choca com a deontologia profissional. Com toda a certeza que iremos ter debates, alterações e grandes discussões sobre esta questão.
Em relação, concretamente, aos cuidados paliativos. O que falta para conseguirem dar a resposta que considera adequada?
Deve ser criada uma carreira própria para os profissionais que se dedicam à área dos cuidados paliativos especializados. No que diz respeito às equipas especializadas, temos de ter equipas, tanto dentro dos hospitais como na comunidade, disponibilizadas em todo o território. Para que isso aconteça, precisamos que os profissionais tenham as condições para escolher fazer este trabalho e que não sejam prejudicados na sua carreira por causa desta escolha – que é o que acontece agora. E ainda que seja criado um sistema de incentivo para que se possa optar por esta especialidade.
De que forma é que os profissionais são prejudicados?
Por exemplo, os médicos de Medicina Geral e Familiar, quando se especializam na área dos cuidados paliativos e escolhem integrar as equipas especializadas e fazerem cuidados paliativos a tempo inteiro, deixam de progredir na carreira. Uma vez que deixam de preencher os critérios de progressão da carreira, são prejudicados nos concursos. O mesmo quanto aos incentivos. Os incentivos que surgiram para que os médicos de família escolham ficar no SNS e avancem para USF Modelo B, o mesmo deve acontecer nos cuidados paliativos. Devia ser aprovada legislação no sentido de promover a escolha e o desenvolvimento de competências nesta área. Perante a escolha entre uma USF e uma equipa comunitária, quem escolhe a segunda por que é uma área onde quer mesmo trabalhar sabe que vai ser prejudicado. E isto, para nós, é inaceitável.
Quem integra as equipas comunitárias, além dos médicos?
Enfermeiros também especialistas na área da pessoa em situação paliativa. Estas equipas têm que ter competência diferenciada na área, porque não só prestam cuidados diretos aos doentes e às famílias, como são equipas procuradas pelos outros profissionais para dar assessoria, ajudar a tomar decisões, orientar a terapêutica, etc.. Incluem psicólogos, também eles com formação diferenciada em cuidados paliativos. E essa é outra coisa que defendemos: a especialização dos psicólogos e o assumir desta necessidade. Um psicólogo, para trabalhar com um doente que tem um sofrimento considerável por causa de uma doença grave, tem que ter competências para abordar várias questões que interferem nesse mesmo sofrimento do ponto de vista psicológico, emocional, espiritual, etc., o que implica formação específica. Por fim, temos os assistentes sociais, também com a mesma diferenciação. Mas cada vez mais estas equipas vão integrando outras especialidades, outras áreas de saúde, como fisioterapia, terapia ocupacional, reabilitação, nutrição, farmacêutica. Todos estes técnicos trazem para a resposta ao doente uma visão muito mais holística. Isto mostra que os cuidados paliativos são dirigidos a pessoas que estão numa situação de doença grave, mas que podem estar nessa situação durante muito tempo ou de forma passageira. Estamos a falar de uma intervenção que tem que estar disponível ao longo do tempo de doença e, portanto, devia ser fácil aceder a estas equipas.
Os cuidados paliativos são uma resposta apenas para os doentes em fim de vida, uma vez que se centra no alívio do sofrimento?
Os cuidados paliativos são uma resposta que melhora a vida das pessoas com enfermidades. Melhoram o fim de vida, melhoram a possibilidade da pessoa viver da forma como quer, ter acesso aos cuidados que quer e não ter aos que não quer, aumenta a possibilidade de as pessoas poderem tomarem decisões ao longo do processo de doença, aumenta a possibilidade de a pessoa ficar até o fim no sítio por si escolhido. Tudo isto melhora a qualidade de vida durante todo o processo de doença, aumenta a segurança e é um suporte para os cuidadores e familiares. Obviamente que tem interferência positiva no tempo de vida. Ou seja, as pessoas vivem mais, vivem melhor e com mais segurança na fase final da vida.
Hoje em dia temos quais são as necessidades?
As necessidades de cuidados paliativos da população são enormes e vão aumentar exponencialmente por causa do aumento da doença crónica e incidência da doença ao longo da vida que também vai crescendo com o envelhecimento da população. A OMS já disse que em 2060 vamos ter o dobro das necessidades que temos hoje. Segundo o que está no plano estratégico para os anos 23/24, temos uma estimativa de uma necessidade de 100 mil doentes por ano. No entanto, só conseguimos dar resposta a 30 por cento. Estamos a falar de 70 mil pessoas que todos os anos não têm acesso a estes cuidados. Em relação às crianças a desproporção ainda é maior: temos 8 mil crianças com necessidade e apenas 800 com acesso. Ou seja, 10 por cento.
Quer dizer que as deficiência da oferta aos adultos ainda é maior nas crianças?
Os cuidados paliativos pediátricos são uma área fundamental e não podem ser vistos como um luxo mas como uma necessidade. Que é aquilo que acontece. Nas crianças este cuidados têm características específicas nomeadamente ao nível do tempo do acompanhamento. Normalmente são crianças acompanhadas ao longo de muitos anos, porque têm situações neurológicas ou outras. Há a ideia errada de que os cuidados paliativos são apenas para pessoas com cancro, mas não é assim. Estes cuidados são para pessoas com doenças graves e que lhes ameaçam a vida, sejam elas quais forem. Ora, no caso das crianças, a maioria tem problemas neurológicos que surgem desde a nascença e que se prolongam muitas vezes até ao momento em que passam a adultos. São situações que trazem muitos momentos de crise, de angústia, muitas dúvidas, muitas hospitalizações, enorme necessidade de apoio e suporte para as famílias. O acesso às equipa de cuidados paliativos faz muita diferença a estes pais e a estas famílias. Esta é para nós uma prioridade.
E é uma prioridade para o poder político?
Eu acho que uma mensagem muito importante a passar é a de que os cuidados paliativos precisam estar na ordem do dia de quem está na política. Precisam de ser compreendidos de verdade por quem se candidata à Assembleia da República e as opiniões não ficar pela rama. É preciso saber do que estamos a falar quando decidimos. Quer-se tirar doentes dos hospitais ou dos serviços de urgência, mas andamos sempre à volta das mesmas soluções e não percebemos que se não apostarmos de facto numa resposta comunitária que vá ao encontro das pessoas, que se desloque ao domicilio, que consiga prestar cuidados onde as pessoas estão sem que elas se tenham de deslocar, não vamos conseguir tirar as pessoas dos hospitais nem das urgências. A maior parte dos doentes que estão nos hospitais são pessoas com doenças crónicas e com doenças em estado avançado. Mais, muitas destas pessoas vêm de lares ou estão em casa numa situação de dependência e precisam de uma atenção de cuidados diferente. A organização dos cuidados de saúde tem de sair de portas, tem que ir a casa das pessoas, tem de ir aos lares e tem que ajudar as equipas que prestam cuidados do dia-a-dia a perceberem quais os melhores cuidados em cada momento. Muitas vezes a deslocação ao hospital apenas aumenta o sofrimento e não traz benefício para o doente. Sem serem esclarecidas e sem saberem o que se está a passar, as pessoas não podem optar por ficar em casa, não podem. Pois aquilo que sentem não levando o seu familiar ao hospital é que estão a falhar.
Há algum modelo internacional que considere de referência dos cuidados paliativos.
O modelo inglês é aquele que nós consideramos de referência. É um modelo muito centrado nos cuidados da comunidade e onde existe de facto uma grande facilidade de acesso aos cuidados na comunidade. Há uma organização virada para a comunidade que facilita a chegada dos cuidados paliativos especializados ao domicílio ou ao local onde as pessoas estão viver. É um modelo integrado e ágil que permite o internamento e a passagem do doente entre domicílio, hospital ou unidades especializadas com grande facilidade. Este modelo é pode ser seguido por nós, pode-nos inspirar. Tendo sempre em conta as devidas adaptações à nossa cultura, à nossa forma de trabalhar. Por exemplo, no Reino Unido é impensável os lares não terem equipas de enfermagem 24 horas por dia. Por cá é o oposto.