«Lembro-me de uma lei das rendas, em que as pessoas idosas recebiam uma carta, e, se não respondessem em 30 dias, a renda aumentava para qualquer valor e podiam ser expulsas. Eu vi idosos a serem expulsos, eu conheço o pânico que era receber uma carta do senhorio. Eu vi o sobressalto da minha avó ao receber cartas do senhorio, porque não sabia o que é que lhe ia acontecer, e essa foi uma responsabilidade do PSD, que esvaziou as cidades». Foi desta forma que Mariana Mortágua apontou o dedo a Luís Montenegro por causa da ‘Lei Cristas’. Uma declaração num debate que já fez correr muita tinta e até a pôr em causa a própria existência da dita avó. Ainda esta semana, a líder do Bloco de Esquerda viu-se obrigada a explicar novamente a história quando confrontada por André Ventura, dizendo apenas: «Eu não minto».
Ao Nascer do SOL, o politólogo José Filipe Pinto chama a atenção para o facto de este último debate ter sido feito entre um populista identitário, André Ventura, e uma populista socioeconómica, Mariana Mortágua. «Cada um deles vai pretender falar para o seu povo, que serão aqueles que vão ser os seus eleitores». Já no caso do encontro entre a líder bloquista e Luís Montenegro, entende que a primeira «vai tentar sempre vitimizar-se para procurar captar o que se chama lado emocional do eleitorado, mostrando-se como representante dos desprotegidos, daí trazer para cima da mesa o caso da avó. É evidente que é uma tentativa de captar o sentimento e a simpatia de um grande grupo da população portuguesa que está a envelhecer, que não se está a renovar e que representa uma fatia cada vez mais numerosa do eleitorado».
Uma ‘história’ que, de acordo com o politólogo, em vez de dar pontos a Mariana Mortágua só lhe trouxe desvantagens, já que está a ser questionada a sua veracidade. «Todos os líderes populistas criam imagens e mais do que lançarem uma imagem esperaram a reação do público e, sabendo que neste momento há problemas sociais muito graves em Portugal e que também afetam a população mais idosa, utiliza um exemplo na primeira pessoa para conseguir captar este eleitorado e mostrar o seu lado mais humanista e de empatia com este grupo etário. Quando é que as coisas correm mal? Quando há a possibilidade de se verificar os factos e esta história da avó é uma narrativa que se vira contra a própria Mariana Mortágua».
Também Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários, lamenta que a líder do Bloco de Esquerda tenha trazido a debate uma situação que não corresponde à verdade. E lembra que, nestes casos, a lei prevê que não haja qualquer transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU). Bastava dizer que tinha mais de 65 anos de idade. «A ideia de que essa pessoa poderia ficar com um contrato a prazo não faz qualquer sentido relativamente a situações deste género, o que demonstra é que esta questão não teria qualquer possibilidade de acontecer», refere ao nosso jornal, recordando que, mesmo que não tivesse essa idade, mas uma incapacidade superior a 60% também tinha direito a um contrato vitalício. «A lei protegia uma série de inquilinos. Havendo uma avó com mais de 65 anos nunca poderia ter algum receio, bastava responder ao senhorio a dizer a sua idade e enviar uma cópia do cartão de cidadão e automaticamente o contrato não transitava para o NRAU. Não se justificava esse sobressalto como referiu».
O responsável aponta ainda o dedo à líder bloquista em relação às contradições quando um vereador do seu partido, Ricardo Robles, foi alvo de fortes críticas por ter «conseguido que os contratos de idosos passassem para oito anos», referindo que, na altura, se pronunciou e mostrou-se contra por considerar que era ilegal. «Nessa mesma altura, se bem me lembro, Mariana Mortágua apoiou totalmente Robles e até disse que tinha sido uma boa iniciativa, o que demonstra bem a situação contraditória que tem caído».
E vai mais longe ao afirmar que se trata de «uma falsidade relativamente ao caso», quando a considera a principal responsável pela crise da habitação em Portugal por ter criado o adicional ao IMI, o também chamado ‘imposto Mortágua’. «Um imposto que incide só sobre os prédios de habitação que afasta as pessoas do investimento em habitação. É um imposto de uma injustiça extraordinária porque, por exemplo, um proprietário com um património imobiliário acima de 600 mil euros que tenha um prédio com rendas congeladas de 15 ou 30 euros paga esse imposto, mesmo que não receba o suficiente para o pagar. Mas, se estivermos a falar da sede de um banco ou de um centro comercial, não o paga. Esta é a forma mais fácil de conseguir afastar as pessoas da habitação e fazê-las investir em comércio e é imposto que é da sua responsabilidade».
‘Capuchinho Vermelho’
José Filipe Pinto admite que Mariana Mortágua vê-se ‘obrigada’ a encontrar uma explicação para a deixar «minimamente confortável com uma situação que criou e que é da sua inteira responsabilidade, mas, como diz o povo, ‘o tiro saiu-lhe pela culatra’». No seu entender, este caso revela que, «quando um líder populista cria imagens sem se preocupar com a sua sustentação, é evidente que, num primeiro momento, surte o efeito, capta o lado emocional das pessoas e sensibiliza-as, mas, num segundo momento, quando a racionalidade dos factos se impõe, quando os factos são descortinados e quando se descobre que não correspondem à verdade, é evidente que vem toda uma teoria de justificação no sentido de tentar corrigir o sentido inicial das palavras».
E, segundo o politólogo, todas as justificações dadas por Mariana Mortágua «não esclarecem minimamente a situação, nem ilibam a sua enorme responsabilidade de criar essa imagem que depois se vira contra o autor», acenando com a história do Capuchinho Vermelho. «Apesar da simpatia que Mariana Mortágua revela pela avó, dizendo que é uma pessoa que a marcou muito, o que mostra uma uma visão revisitada do Capuchinho Vermelho é evidente que esta avó não é vitima e não é o caçador nem o Capuchinho que a vai libertar. A verdade é que o Capuchinho trouxe a avó para um jogo para onde não devia ter trazido».
O responsável aponta ainda o dedo a Pedro Nuno Santos por ter sido o primeiro a trazer para esta campanha a história de ser neto de sapateiro – e não dizendo ser filho de empresário. «Percebemos que há aqui duas culturas: uma é recuperar a ligação ao operariado, ao mundo do trabalho, mas, por outro lado, há uma tentativa de mostrar de que conseguiu subir na vida a pulso. Ao surgir como neto de sapateiro, apresenta-se como alguém que chegou à situação em que está, não renega as suas origens, mas também tem orgulho no trajeto que foi feito, permitindo chegar onde chegou. Esta situação de focar a subida social da família representa uma tentativa de afirmação de pertença ao povo para se aproximar de um eleitorado que se revê naqueles que sobem a pulso e este é mais um exemplo de jogar com os sentimentos das pessoas».