Maria Lamas, Invisibilidade e imigração

Fosse hoje viva Maria Lamas, e ainda teria muito por onde cartografar trabalho invisível – tão duro quanto essencial.

Dar um saltinho à Gulbenkian, para ver a exposição As Mulheres de Maria Lamas, é uma opção a considerar para os tempos livres, mais a mais é grátis e não se gasta muito tempo a vê-la. Além disso, tende a estar bom tempo e a Gulbenkian junta o útil (serviço público) ao agradável (o lugar). Boas fotografias, exposição bem feita e, para quem estiver interessado, um mar de aprendizagem e de reflexão. Aposta ganha, portanto.

Recomendo especialmente a jovens urbanos entediados na abundância e/ou horrorizados com o futuro, porque ver as coisas em perspetiva, numa educativa diacronia, embora não dê de comer nem converta o ennui em felicidade, sempre pode dar outro sabor aos alimentos e outra cor aos folguedos da atualidade. Maria Lamas retrata a vida dura como ela era. E não era assim há tanto tempo. E era assim para muitíssima gente. Não faz mal olhar e tentar ver, e pode ser que a comparação os/nos alegre alguma coisa sobre o umbigo do presente e o suposto negrume do futuro.

Mas a quem recomendo mais dar lá um pulinho é aos cultores do discurso anti-imigração – que, a meu ver, é idiota por várias razões, e nem preciso de entrar na questão humanitária. Posso começar pela afirmação de que os argumentos de natureza, digamos, cultural não têm ponta por onde se pegue, seja o patriotismo ou a identidade, seja o idioma, seja a dita integração. Para começar, o que é isso de identidade? Comer cozido e dançar o corridinho? Todos esses argumentos esquecem, além do mais, a História, que nos mostra uma amálgama de gentes e de fluxos, de influências, de movimentos e de costumes, e mostra também que o Estado fez a nação (seja lá isso o que for) e não o contrário. E o idioma não é mais do que um organismo vivo, e nem precisamos de imigração para o rechear de novidades e de desafios, às vezes aliás bebendo alegremente pela palhinha do embasbacamento, como diria o Eça, o que o comboio, o retângulo mágico ou as redes trazem das Franças deste mundo. Portanto, idioma que emprenha de ouvido melhor pode emprenhar de convivência. E pátria que se fez e faz de camadas melhor se sedimenta com mais uma quantas. E tudo se move, até a Terra, como diria Galileu a cegos entrincheirados. Preciso é (saber) viver e deixar viver.

Mas há também os argumentos económicos, ainda mais idiotas, e é aí que entram as fotografias de Maria Lamas. Ela cartografou o trabalho – tão duro quanto essencial – das mulheres do seu/do nosso país, tentando tirar essas mulheres e esse trabalho da invisibilidade. Fosse hoje viva Maria Lamas, e ainda teria muito por onde cartografar trabalho invisível – tão duro quanto essencial. E retrataria não apenas mulheres, mas também homens, a grande maioria imigrantes. No mar, no campo, nas serras, nas cidades, agarrados ao carro de carvão, ao utensílio agrícola, à rede de pesca, nas sombras e nos restos, a fazer o que ninguém mais quer fazer. Seguramente desfilariam pelas suas hipotéticas fotografias milhares de imigrantes. Aqueles que os discursos anti-imigração não querem, os que, alegadamente, perturbam a pátria, põem o idioma em nervos e a cultura em sobressalto. Mas, digo eu, postos ou mantidos fora os imigrantes, quem faria esse trabalho? (E, já agora, quem trataria da demografia?) Quem ocuparia essa invisibilidade? Quem se ocuparia das entranhas da máquina que não pode parar mesmo quando vamos à Gulbenkian espairecer num ameno sábado de fevereiro?