André Ventura e Marcelo Rebelo de Sousa não morrem de amores um pelo o outro, como é sabido, e a notícia do Expresso, em vésperas de eleições, segundo a qual o Presidente tudo fará para que o Chega não integre um Governo com a AD, ajudou a azedar ainda mais a relação entre ambos. «A dois dias de escolher um Governo, dizer que não quer o Chega no Governo é um ato pouco democrático. Em Portugal, não é o Presidente que escolhe quem vai para o Governo», disse Ventura no dia em que saiu a notícia.
O Chega acabaria por ter mais de um milhão e cem mil votos no dia 10 de março, e Ventura foi recebido em Belém, esta semana, à semelhança de todos os outros líderes parlamentares com assento parlamentar. À saída da reunião, Ventura fez uma declaração que fez e fará correr muita tinta: «O senhor Presidente da República desmentiu cabalmente e categoricamente que tivesse manifestado qualquer intenção de impedir que o Chega fizesse parte integrante ou liderante ou de qualquer outra forma do Governo da República».
Tudo parecia ter, aparentemente, acalmado, mas eis que a Presidência da República, horas depois, emite um curto e lacónico comunicado:«Como tem repetidamente afirmado, o Presidente da República não comenta declarações de partidos políticos nem notícias de jornais».
Eanes, Balsemão e Marcelo
Questionado pelo Nascer do SOL sobre o comunicado de Marcelo Rebelo de Sousa, André Ventura teve resposta rápida: «Fiquei estupefacto, levei quatro pessoas por causa disto, para ouvirem o que eu ia ouvir. Mais, o PR disse-me que não falava com aquela jornalista [Ângela Silva] há não sei quanto tempo».
Mas então qual a razão para o comunicado? Ventura responde, dizendo até que o Presidente pode estar a querer esconder alguma coisa. «Se era para não comentar, não dizia nada, porque assim gerou novas interpretações. O que acho que devia ter feito? Das duas, uma: ou assumia que era o que tinha dito, porque disse perante quatro pessoas, todas ouviram o mesmo, ou então não dizia nada, e deixava a coisa rolar. Isto mostra que o Presidente, potencialmente, pode estar a esconder alguma coisa».
Não será difícil imaginar o gelo que estará entre os dois nas próximas reuniões. Ou será que ambos vão usar a tática de Ramalho Eanes, então Presidente da República, e Francisco Pinto Balsemão, então primeiro-ministro, eleito pela AD, que, nos anos 80, nas reuniões institucionais, levavam ambos gravadores para registarem a conversa? Curiosamente, nessa altura, o diretor do Expresso era precisamente Marcelo Rebelo de Sousa, que fez a ‘vida negra’ ao proprietário do jornal, tendo este chegado a afirmar que tinha mais problemas com o jornal do que com o Governo.
Marcelo obrigado a depor em comissão parlamentar
Como é natural, a relação entre Marcelo e Ventura tem tudo para vir a transformar-se numa espécie de Guerra das Rosas. O Nascer do SOL apurou que o Chega se prepara para levar adiante uma comissão de inquérito parlamentar sobre o caso das gémeas brasileiras que receberam um tratamento que custou cerca de quatro milhões de euros no Hospital santa Maria em que o filho de Marcelo Rebelo de Sousa é acusado de ter tentado ‘meter uma cunha’ pelas bebés que sofrem de uma doença rara, atrofia muscular espinhal. No caso da comissão parlamentar de inquérito avançar, Nuno Rebelo de Sousa, bem como Marcelo Rebelo de Sousa, entre muitos outros, terão de depor. Ventura não desmente a informação, mas esclarece que nada está decidido. «É uma hipótese que vamos avaliar, agora que temos condições para isso, e se não houver os devidos esclarecimentos, que entendemos que são necessários, podemos vir a avançar com a comissão de inquérito».
E isso tem alguma coisa a ver com vingança?
«Não, não faço política assim. Tem a ver com um caso que nós achamos objetivamente que toca num tema que temos vindo a abordar, que é o turismo da saúde em Portugal, e o que é que os contribuintes estão a gastar para casos como esse».
Ventura não ficou esclarecido com o facto de os médicos já terem dito que qualquer criança com uma doença rara que chegue ao Santa Maria é acompanhada imediatamente, não necessitando de eventuais cunhas. pois acredita que há muito por explicar.
«A agenda do grupo parlamentar está com muita vontade de avançar com uma comissão de inquérito, nem seria o meu caso prioritário, mas, de facto, tenho de reconhecer que, se não fosse a queda do Governo com a Operação Influencer, e tudo o que aconteceu depois, nós tínhamos escrutinado muito mais o caso das gémeas brasileiras. Há uma ponderação no partido sobre se este é um tema que merece ser avançado, e também para respeitar o calendário da investigação que está em curso por parte do Ministério Público. A Comisão vai depender da evolução do próprio processo, e se os visados esclarecem alguma coisa ou não. E falta muito por se dizer, numa coisa que implica o dinheiro dos contribuintes. Acho que deve ser escrutinado pelo Parlamento», diz o líder do Chega.
E se a comissão parlamentar de inquérito avançar, quem será chamado?
«Se se avançar com a comissão de inquérito, inserida na tal história do turismo de saúde, não vejo como é que o Presidente, por escrito, o filho, o conselho de administração do hospital, Marta Temido, Francisco Sales, etc, não tenham de depor».
Questionado sobre as explicações que o Presidente já deu sobre o caso, tendo inclusivamente feito declarações onde nem falava na relação familiar, mas dizendo que se o «Dr. Nuno Rebelo de Sousa» foi falar com o secretário de Estado da Saúde foi porque não conseguiu nada da Presidência, Ventura pensa de maneira diferente. «Acho que oPresidente disse ainda quase nada, e trocou-se muitas vezes. Sobre se tinha falado ou não tinha falado com o filho, e acho que podia, honestamente, ter respondido ao Parlamento e ter dado os esclarecimentos sobre isso. Não quis dar, agora numa comissão de inquérito será obrigado a dar».
Uma guerra que vem de longe
A relação entre Marcelo e Ventura agudizou-se aquando dos debates presidenciais em janeiro de 2021, a partir daí, assumiram as distâncias. Vejamos algumas trocas de mimos entre os dois: «Há uma diferença entre nós, representamos direitas diferentes. Eu sou de uma direita social. Que se reconhece na doutrina social da Igreja, no Papa Francisco, na preferência pelos pobres, pelos explorados, pelos oprimidos, pelos dependentes. E tem posições, do ponto de vista social, que são diferentes de uma direita securitária, de uma direita do medo», disse Marcelo.
A resposta de Ventura foi violenta: «Sobre a questão da direita social e securitária, gostava de mostrar ao candidato Marcelo de Sousa esta fotografia. Mostra tudo o que a minha direita não é. Nesta fotografia o candidato Marcelo Rebelo de Sousa juntou-se com bandidos que tinham atacado uma esquadra policial. E quando o senhor Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Bairro da Jamaica, foi visitar os bandidos. Não foi visitar os polícias. Eu represento a direita, não a direita que está de mãos dadas com o PS mas a direita que nunca vai deixar os polícias, as forças de segurança estarem sozinhas».
Mas o que trouxe à tona a guerra entre os dois foi quando Marcelo disparou: «Não admito que o senhor deputado aqui diga o que não diz nas audiências em Belém»; Ventura: «Não é verdade»; MRS: «É verdade sim. Nunca me disse que eu era manipulado pelo Partido Socialista»; AV: «Fiz-lhe ver que o Governo anda nas suas costas a legislar»; MRS: «Nunca disse. Em Belém usa outro tom, outro discurso, outra conversa. É outro. É o deputado e presidente André Ventura».
Para fechar, uma pergunta inevitável para o futuro da governação em Portugal. Questionado pelo Nascer do SOL sobre se vai continuar a mendigar um lugar no Governo para o Chega, o líder do partido rematou: «Nós vamos continuar até ao Orçamento a acreditar que esse acordo de Governo vai ser feito. Se não for, a partir do Orçamento iniciaremos o caminho da oposição»