Nos últimos dias temos assistido à polémica em torno do tão prometido choque fiscal. Afinal a redução só será de 200 milhões de euros. Acha que foi propositado ou as contas foram mal feitas?
Acho que as contas não foram mal feitas. Creio que estamos perante uma comunicação que induziu em erro, que não era suficientemente clara para se perceber que o que estava em causa era uma redução fiscal em cima daquela que já tinha sido decidida em sede de Orçamento para 2024. E causada a interpretação de que se tratava de uma redução de 1.500 milhões de euros não houve diligência suficiente para desfazer de imediato esse equívoco, deixando ficar no ar a ideia de que se tratava de um choque fiscal. Nesse sentido, o Governo não prestou um grande serviço à transparência e à clareza da informação que devia ter prestado.
Os portugueses ficaram com a ideia de que iria haver uma redução generalizada nos escalões de IRS…
Sim, com certeza há o apelo a essa interpretação, mas depois houve o comunicado que saiu da presidência do Conselho de Ministros que falava em relação a 2023, mas isso requer um conhecimento mais técnico, daí o Governo não ter sido suficientemente claro, porque uma coisa é a interpretação dos conhecedores nestas matérias, no entanto, o comum dos cidadãos não dispõe de conhecimento técnico que lhe permitisse perceber que o que estava em causa eram 200 milhões em cima dos 1.300 milhões.
Houve um oportunismo do lado do Governo em ‘aproveitar-se’ dos 1.300 milhões?
Para ser franco e se me permite um sentido um pouco anedótico quando ouvi isso, e depois ouvi os esclarecimentos, lembrei-me de uma anedota que é a história do rato que vai ao lado do elefante numa estrada de terra batida e ao fim de algum tempo, o rato vira-se para o elefante e diz: ‘Eh pá, já viste a poeira que estou a levantar’ ou a história dos cucos que põem os ovos nos ninhos dos outros. Mas, saindo deste registo um pouco mais humorístico, acho que houve pouco cuidado, não quero de forma alguma dizer que o Governo teve a intenção de enganar. Creio que foi mal comunicado, suscitou dúvidas e o Governo não foi suficientemente diligente em esclarecer essas dúvidas. No próprio debate parlamentar, a Iniciativa Liberal levantou questões porque achava que o que estava em causa era muito pouco e o primeiro-ministro deu a entender que não, sublinhando ainda mais a interpretação errónea daquilo que tinha acabado de dizer.
Na quarta-feira houve um debate no Parlamento e o ministro das Finanças esteve ausente…
É pena, mas talvez perceba esta ausência, o ministro das Finanças foi a uma reunião do Fundo Monetário Internacional. É pena que não tenha estado presente, até porque está em início de funções e é importante o estabelecimento de uma boa relação com o Parlamento. E, como sabemos, este Governo vai precisar muito de dialogar no Parlamento.
Disse que a IL questionou, na altura, as conta do Governo. Estranhou o silêncio por parte do PS que acabou por reagir mais tarde?
Não sei se o PS se apercebeu de imediato do que estava em causa e talvez também tenha interpretado que era um choque fiscal que iria reduzir em 1.500 milhões de euros o IRS das famílias portuguesas. Em boa verdade, depois do esclarecimento que o Governo deu, percebe-se que o choque fiscal que estará nas intenções do Governo será feito em sede de IRC. Penso que o Governo estará a pôr as fichas aqui, se me permite a linguagem.
Haverá uma maior aposta na redução do IRC em detrimento do IRS…
É desejável que haja um alívio da carga fiscal, quer para as famílias, quer para as empresas. Mas, em primeiro lugar, é preciso ver as prioridades e, no meu entendimento, deve ser dado às famílias e depois às empresas e depois é preciso saber como isso é feito. É importante proceder a uma grande simplificação do IRC, estamos perante um regime de tributação que tem muitos ‘buracos’, usando uma linguagem comum. Há muitos regimes de isenção, de redução, o que torna o regime de tributação das empresas pouco transparente, difícil de entender e não facilita muito a vida às empresas e aos investidores. É importante levar a cabo uma grande simplificação do sistema, no sentido de reforçar a sua transparência e a sua simplicidade, depois até seria possível aliviarem a taxa de tributação. Tivemos um excedente que de alguma forma terá o seu quê de extraordinário em 2023 e o Governo no programa de Estabilidade que apresentou esta semana antevê que esse excedente irá reduzir já este ano.
No programa de Estabilidade aponta para um excedente de 0,3% em 2024…
Isso mostra que a manobra do Governo é reduzida e está perante um conjunto de dossiês, em particular, no domínio da função pública, que o vai obrigar a assumir compromissos que se vão traduzir em aumentos permanentes da despesa. Estamos numa conjuntura de muita incerteza, o próprio FMI aponta para a necessidade de haver prudência por parte dos governos. Não sabemos o que aí vem e tendo em conta a conjuntura internacional, o Governo tem de ter cautela, não pode querer dar um passo maior que a perna, porque arrisca-se a que as coisas não corram muito bem do ponto de vista económico. É pena que o Programa de Estabilidade não tenha trazido nada de novo e para fazer o que foi feito mais valia não ter feito nada, pois não esclarece que medidas é que vão ser adotadas com que timings e com que impactos.
O Conselho de Finanças Públicas não emitiu nenhum parecer por não estarem contempladas as tais medidas adicionais…
Sim e o Governo dá a desculpa de que irá haver mudanças de regras ao nível europeu, o que não faz sentido. A avaliação das medidas e dos seus impactos tem de ser feita e não sei por que se vai esperar por setembro ou por outubro para apresentar. O Governo tomou posse há pouco tempo, mas anunciou durante a campanha eleitoral que já tinha estudado o impacto dessas medidas, que tinha um cenário macroeconómico, então não sei por que não apresentou um documento que ponha preto no branco as medidas que vai adotar, quais os impactos que vai ter em termos orçamentais para que todos saibamos com aquilo que podemos esperar e isso também é importante para as empresas saberem o que podem esperar no domínio fiscal, para as famílias também e seria muito bom para a economia que isso ficasse clarificado.
Defendeu que era preciso definir prioridades. O alívio de 200 milhões será para o sexto, sétimo e oitavo escalão. Concorda com esta prioridade?
Aí vai ao encontro com tudo o que foi dito durante a campanha eleitoral que era aliviar a carga fiscal da classe média e o alívio fiscal para o sétimo e oitavo escalão do IRS foi consistente com o que foi prometido em campanha eleitoral.
Não houve incoerência…
Nesse sentido não. O Governo anterior, na sua proposta de Orçamento, abraçou esse alívio fiscal também abrangendo parte da classe média com a redução fiscal até ao sexto escalão, o PSD entendeu que teria de ir mais longe e porventura também em sede de IRS. O PSD tem uma filosofia diferente do PS, mas de qualquer modo prometeu esse alívio fiscal para a classe média e também para os jovens, querendo mostrar que vai um bocadinho mais longe do que o PS foi.
O PS tem dito que também avançou com medidas para os jovens…
Mal fosse se os novos Governos desfizessem o que já tenha sido feito, pondo tudo em causa. Tem de haver uma certa lógica de continuidade, claro que podemos introduzir algumas mudanças que podem ser vistas como melhorias naquilo que foi feito e não vejo problema algum nisso.
Ainda esta semana, o INE anunciou que a carga fiscal do ano passado representava 35,8% do PIB…
É verdade, por isso disse que será positivo que haja um alívio da carga fiscal tanto para as famílias, como para as empresas. Agora, uma coisa é falarmos em alívio da carga fiscal, outra é falarmos numa redução significativa da carga fiscal no seu todo, porque aí estamos perante um problema mais sério e mais complicado já que a despesa pública tem uma tendência de subida porque os encargos com pensões e com a saúde tendem a aumentar à medida que o tempo passa. A população vai envelhecendo, o número de pensionistas aumenta, o valor médio das pensões pagas também tende a aumentar, o número de pessoas que requerem cuidados médicos também e as terapias tendem a encarecer e, portanto, essas despesas tendem a aumentar ao longo do tempo. E para pensarmos numa redução da carga fiscal como um todo temos de pensar também numa redução da despesa e vamos reduzi-la como? Em que setores? Em que políticas? Esse é trabalho bem mais complexo, porque vai desembocar numa discussão política que está relacionada com o Estado que queremos e com que funções é que queremos que o Estado desempenhe. Queremos que o Estado continue a desempenhar as funções que tem vindo a desempenhar na área da Educação, da Saúde, da Segurança Social ou vamos pensar num Estado diferente com menos responsabilidades nesses setores, aliviando assim a despesa pública?
Voltando ao programa de Estabilidade, acha que o excedente de 0,3% foi demasiado modesto?
Estranho esta redução significativa do excedente, mas também convém não esquecer que, por um lado, houve políticas levantadas no passado que envolverão encargos este ano e, como tal, aumentam a despesa e, por outro lado, o crescimento da economia não vai ser tão forte porque no ano passado crescemos 2,3% e este ano a previsão é 1,5%, ambém a inflação não será tão elevada e o valor dos impostos cobrados depende quer do crescimento quer também do aumento dos preços e, como quer um quer outro, vão ter um ritmo mais baixo de evolução este ano é natural que a diferença não cresça de forma tão significativa. Por isso, posso perceber esta prudência da estimativa do excedente para este ano, mas de qualquer modo, não deixa de ser uma redução significativa, até porque, de acordo com os números que são apresentados no Programa de Estabilidade, aquele excedente de 1,2% no ano passado era quase inteiramente um excedente de natureza estrutural, isto é, tinha um caráter de permanência, de durabilidade. Neste sentido, esta redução suscita alguma estranheza, não sei se haverá algum intuito do Governo de ter uma prudência acrescida nessa projeção para baixar algumas expectativas em alguns setores que acham que agora tudo é possível por termos tido esse excedente.
Tendo em conta as promessas que foram feitas há dinheiro para todos?
Não chega para todos. Creio que o Governo pode ter o intuito, não sei quais são as suas intenções, de esfriar essas expectativas e de se colocar na posição negocial mais forte. Há uma coisa que é importante de salientar, não só o atual Governo, mas também outras forças políticas que nos discursos que foram desenvolvidos ao longo da campanha eleitoral face às reivindicações destes vários setores da administração pública foi no sentido ‘sim, senhor, têm todos razão, temos de acatar’ e isso enfraqueceu muito a posição negocial do Estado. Temos de ter consciência que não é possível acudir a tudo, não é possível responder positivamente e plenamente a todas as reivindicações e há que ter poder negocial para fazer ver isto aos interlocutores. Creio que o discurso que foi desenvolvido durante a campanha eleitoral enfraqueceu muito o poder negocial do atual Governo.
Deu a ideia de que afinal somos um país rico?
Deu a ideia que, de repente, porque tivemos um excedente, o país está rico e pode responder a tudo. Não podemos ignorar que ainda temos 99% de dívida pública, é uma dívida muito significativa e continua a ser um fator de risco de estabilidade financeira do país. Não nos podemos esquecer que o excedente acima de tudo – e é o que está na Lei do Enquadramento Orçamental – deve servir para reduzir a dívida pública. Por outro lado, se olharmos bem para a composição do excedente vimos que tem a ver com a Segurança Social, não tem a ver com a administração central, local e regional, porque o saldo das contas públicas da administração central, da administração local e regional é negativo. O saldo global é positivo por causa do excedente na Segurança Social e gastar o excedente da Segurança Social é estar a tirar dinheiro aos pensionistas que vão ver posta em causa a sustentabilidade do sistema de pensões e ameaçada a possibilidade de o sistema pagar as pensões no futuro.
O programa de Estabilidade aponta para um crescimento de 1,5%, mas fica aquém do que foi apontado pelo FMI que fala em 1,8%…
O FMI apresenta uma estimativa melhor, são mais de duas décimas acima da previsão anterior. De qualquer modo, se olharmos para as previsões do Governo, do Conselho das Finanças Públicas, do Banco de Portugal, do FMI vamos sempre encontrar diferenças de décimas entre essas previsões. Mas o que é importante salientar, e que é positivo, é que Portugal vai crescer mais do que a média da zona europeia. Portugal continua a ter uma trajetória de crescimento e, mesmo não sendo de grande crescimento, apesar de tudo, nos tempos de dificuldade que temos vindo a ter nos últimos anos, está acima da média europeia, o que é positivo para o país.
Como vê o facto de muitos não apontarem para a necessidade de avançar com um Orçamento retificativo? Isso significa que continuará a governar com um Orçamento socialista…
Em teoria, é um pouco insólito que um Governo da AD esteja a governar com um Orçamento do PS. Em condições normais faria sentido haver um retificativo até para o novo Governo poder dizer que está a governar com um Orçamento que tem a ver com a sua visão para a política e para as políticas públicas que tem de desenvolver. Agora também temos de compreender que estamos numa situação em que o Governo pode ser confrontado com dificuldades políticas de fazer passar um retificativo na Assembleia. E compreendo que para garantir alguma estabilidade e tranquilidade na governação, o Governo queira evitar colocar-se numa situação que o pode debilitar e está a guardar para ter esse confronto na discussão do Orçamento do próximo ano. Posso perceber isso como estratégia política atendendo a essa maioria frágil que sustenta o Governo. Sem dúvida que se houver medidas que o Governo quer implementar e que não sejam comportáveis no atual Orçamento terá de exigir um retificativo. Se não for esse o caso, não vejo mal algum que o Governo procure ir sobrevivendo.
E adie esse problema até outubro…
Entendo que esteja a evitar problemas e alguma instabilidade política por causa de um Orçamento retificativo e que se esteja a resguardar e a ganhar algum tempo porque o posicionamento, quer do Governo, quer das oposições durante estes próximos meses, vai ser importante. É preciso ver quais são os desenvolvimentos externos e o país precisa de diálogo, precisa de compromissos. Acho importante que o PS queira ser um partido de oposição, mas também não pode ser um obstáculo à governação. E não nos podemos esquecer que vivemos 50 anos num regime democrático e o que temos em termos de políticas públicas nos mais variados setores devem-se a muitos compromissos que foram alcançados pelos dois maiores partidos da nossa democracia – o PSD e o PS – e não vejo que o país possa progredir sem esses compromissos.
Caso contrário, o Governo fica refém do Chega…
O PS tem a perspetiva e a noção do que é governar, o que implica e o que incorpora, coisa que porventura não acontecerá com o Chega que é um partido de protesto, radical e que pode ser muito pouco razoável à mesa de negociações. Seria desejável que em matérias importantes e decisivas para o futuro do país seja possível que a AD e o PS possam aqui e acolá chegar a compromissos que permitam ao país progredir.
A carta enviada por Pedro Nuno Santos a Luís Montenegro foi um bom sinal?
Foi um bom sinal e espero que escreva muitas cartas. E que Luís Montenegro também esteja disponível a escrever algumas.
Falou-se em muitos casos e casinhos no Governo socialista. Com o novo Governo também já começaram a surgir. Estamos a ter um déjà vu?
Espero que não, acho que ainda vivemos um bocadinho no registo anterior de andar à procura de casos e casinhos para os explorar mediaticamente e politicamente. Espero que seja uma situação isolada e que não se repita para bem de todos e também para que o Governo tenha tranquilidade e tenha condições para governar.
Chegou a dizer que o PS não tinha aproveitado a maioria absoluta que teve…
O PS teve uma maioria, teve um pacote financeiro negociado com a União Europeia muito significativo e foi pena que não tenha tido capacidade de ir mais longe na governação. Por um lado, por razões que foram externas, em particular por causa da conjuntura internacional criada com a guerra na Ucrânia que criou um ambiente muito difícil, em que uma situação de emergência em curto prazo se impôs à política, mas também por se ter deixado desgastar muito com os tais casos que perturbaram a concentração que seria necessária ao Governo nos principais dossiês de política e de avançar com medidas importantes, a começar pela Saúde, pela Educação e por outros setores que estão ainda em discussão.
A gota de água foi a investigação do MP. Esta semana, o Tribunal da Relação diz que António Costa não foi influenciado por Lacerda Machado. Houve precipitação por parte do ex-primeiro-ministro em se ter demitido?
Não queria estar a comentar, posso compreender a decisão que tomou, mas só quem está nessas situações é que tem verdadeiramente condições de avaliar as decisões que tem de tomar. Temos que nos colocar um bocadinho na pele das pessoas. É muito difícil dizer se fosse eu fazia isto ou aquilo. Respeito a sua decisão.
Com Pedro Passos Coelho, o tema troika voltou a estar em cima da mesa. Continua a assombrar o país?
Não, a minha interpretação é mais de se tratarem de afirmações que procuram pôr em destaque, o papel que teve na implementação do programa da troika, salientando que era a pessoa mais credível em termos do Governo face aos interlocutores externos e penso que é um bocadinho querer granjear os méritos da implementação desse programa que, em alguns aspetos, foram conseguidos resultados que me parecem importantes para o país. E posso compreender que Passos Coelho queira chamar a atenção para esse facto e, como sabemos, nestes domínios da política não se dá ponto sem nó e certamente terá os seus objetivos políticos que com o tempo irá clarificar.
Muitas vezes foi acusado de ter ido além do programa da troika. Poderá quer limpar essa imagem?
Não entendo isso, pelo contrário, Pedro Passos Coelho tem orgulho no que fez e terá razões para ter esse orgulho e quer apresentar-se como alguém que cumpriu, que fez o que tinha de ser feito e que mereceu a confiança e o respeito dos interlocutores internacionais.
Mas as negociações foram feitas por si, enquanto ministro das Finanças, da altura…
As negociações com a troika foram feitas por mim e pelo Banco de Portugal, aliás, por mim e por outros Ministérios que foram envolvidos. Mas do lado do lado do Governo e na parte financeira era eu o interlocutor.
Para não corrermos o risco de um novo resgate financeiro é importante esta ideia de contas certas?
Convém não esquecer aquilo que o país teve de suportar e como se costuma dizer teve de ser. É bom que evitemos cair novamente numa situação como essa e o apelo à prudência apresentado esta semana pelo FMI deve merecer a nossa particular atenção.