Criado pelos pais com «uma grande liberdade», desde muito novo se habituou a assumir responsabilidades. Com apenas 12 anos, fugiu de um campo de férias no Norte de Espanha e andou uma semana por sua conta em Salamanca, vivendo de arrumar carros e engraxar sapatos, como conta no livro de memórias Geração D – Da ditadura à democracia (Porto Editora), agora publicado. Carlos de Matos de Gomes nasceu em 1946 em Vila Nova da Barquinha e estudou em Tomar, onde conheceu Salgueiro Maia. Desportista nato, fez natação, montou a cavalo, jogou hóquei e futebol. Depois da Academia Militar, entrou para o curso de Comandos. Entre 1967 e 1974 fez comissões em Moçambique, Angola e Guiné, onde se encontrava quando se deu o 25 de Abril, tendo participado em operações como a Nó Górdio e a Ametista Real. Integrou o movimento dos capitães, e, de regresso a Lisboa, decidiu que não voltaria a vestir o camuflado, mas o seu amigo Jaime Neves convenceu-o a ser fundador da unidade de Comandos da Amadora.
Também se tem dedicado à escrita. Sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz (que adotou em homenagem a um tio) publicou os romances Nó Cego (1982), Os Lobos não usam coleira (1995, adaptado por António-Pedro Vasconcelos ao cinema, com o título Os Imortais) e Angoche – Os fantasmas do Império (2021).
Combateu em África, tendo feito a sua primeira comissão em Moçambique. Como se prepara um jovem de 20 anos para ir para uma guerra?
Desde sempre a preparação dos guerreiros obedece aos mesmos princípios. Em primeiro lugar é necessário haver estabilidade emocional para poder continuar a raciocinar e a deter todas as suas capacidades num ambiente de grande tensão. Há pessoas emocionalmente mais estáveis, outras menos, mas isso é uma questão que também se treina. Quanto à aptidão física, tem duas finalidades. Uma é dotar aquele guerreiro de força e resistência para enfrentar o ambiente hostil dos campos de batalha, seja num deserto, seja numa zona pantanosa, seja numa floresta, seja na guerra urbana. A outra finalidade é dotá-lo de confiança em si mesmo: ele saber que tem condições físicas para ultrapassar um obstáculo, transportar um peso ou qualquer outra coisa que seja necessária. Dá autoconfiança e, aliás, é o que se faz também com os atletas de alta competição.
Por falar nisso, há quem diga que nunca se pode treinar a marcação de penáltis, porque não há maneira de recriar todo o ambiente e a pressão de um estádio cheio, numa final em que tudo se vai decidir com aquele pontapé.
Sabemos que o treino que fazemos num cenário real tem uma eficácia de apenas 30%. A minha geração viveu a experiência de saber que, chegando aos 18 anos, iniciava um percurso que iria terminar sete anos depois, e que incluía uma passagem por um cenário de guerra, com maior ou menor violência – porque havia os que iam combater diretamente e havia os que iam combater em áreas de retaguarda, ou estar ligados aos apoios de serviço, à logística, etc.
Como é que se prepara um jovem com 20 anos para o dilema de matar ou morrer?
As pessoas não se preparam para isso. Isso é uma decorrência da nossa situação. Nós não nos preparamos para a morte, embora o ser humano seja o único que sabe que vai morrer. A guerra tem grau de incerteza maior do que outro tipo de atividades. Mas a experiência e o treino ajudam a suportar e a conviver com essa incerteza.
Um dos problemas do Corpo Expedicionário Português na Grande Guerra, em 1917-18, foi precisamente a falta de preparação. Houve o chamado milagre de Tancos, porque foi muito rápido, mas depois percebeu-se que os soldados não tinham recebido uma formação adequada…
Mas aí ninguém estava preparado. Tanto que se dizia: ‘Já vamos passar o Natal a casa’ e depois a guerra durou quatro, cinco anos. Foi uma guerra em que as tropas se enterraram porque houve uma alteração tecnológica decisiva. A introdução da metralhadora impediu o movimento das tropas apeadas, porque eram ceifadas, e obrigou-as a enterrarem-se. E a guerra só se resolve depois com a introdução do carro de combate. Tinha a blindagem, que defendia da metralhadora, e tinha as lagartas, que permitiam passar por cima das trincheiras. É essa alteração que faz com que a guerra tenha durado aquele tempo, e tenha terminado naquelas circunstâncias.
Disse que um dos objetivos da preparação é o soldado ter confiança em si próprio. Quando partiu para Moçambique sentia essa confiança?
A guerra é uma aventura, porventura a mais antiga aventura da humanidade.
Isso apela aos jovens?
Cada geração enfrentou as guerras de acordo com as experiências do passado. Mas é uma experiência única para cada um. Não há maneira de fazer ensaios gerais, vamos sempre deparar-nos com situações novas. Os navegadores portugueses, quando saíram daqui, também foram enfrentar uma situação desconhecida.
No seu caso, partiu com entusiasmo, com curiosidade, com receio…?
Penso que ninguém vai para nenhuma guerra com entusiasmo. Entusiasmo só nas claques de futebol. Agora, é criado à volta das partidas sempre um ambiente de grande tensão que tente suprimir exatamente as reações de receio, e que faça uma lavagem que ‘encandeie’ aqueles que que vão combater. É curioso verificar que as partidas para a I Guerra Mundial são muito parecidas com as partidas para a Guerra Colonial. Uns iam de comboio, depois embarcavam, havia sempre uma fanfarra, o barulho era importante, havia os apitos dos comboios, havia as famílias que gritavam, havia os discursos. É sempre criado um ambiente de falso entusiasmo, de excitação, que evita o receio e facilita a separação entre os que partem e os que ficam.
Uma certa encenação?
É sempre uma encenação. É a mesma coisa que os grandes espetáculos desportivos. Aliás, os grandes espetáculos desportivos representam os confrontos da guerra.
Não sei se usou a expressão ‘lavagem ao cérebro’.
Nós vivemos permanentemente a ser manipulados. Aquilo que nos é dito nunca é…
A verdade toda.
Quando nos dizem ‘Vais defender a pátria’, a primeira questão era ‘o que é a pátria?’. ‘Que interesses estão a ser defendidos pela pátria para eu ir defender esses interesses?’. E depois tenho que diabolizar sempre o adversário e valorizar os meus.
No seu livro descreve uma emboscada em que acabam por apanhar civis quando julgavam que iam passar ali guerrilheiros. Isso dá-se em 67, se não me engano. No entanto, diz que foi em Maio ou Junho de 71 que começou a ter mais dúvidas sobre o que andava ali a fazer.
Quando se dá o episódio da emboscada, essas dúvidas não começam a andar-lhe na cabeça?
Nós nascemos com dúvidas e depois crescemos com elas. [risos] A tomada de consciência de uma determinada situação até depois estabelecer a rutura é um processo em que nunca sabemos qual é a gota de água que faz transbordar o copo. A rutura que a minha geração faz com o regime deve-se, por um lado, à percepção de que aquela guerra não tinha saída. É um primeiro ponto. E só depois disso é que entendemos que aquela guerra é injusta em sentido lato, isto é, o objetivo dela era contrário aos ventos da história, ao caminho que Portugal devia percorrer, na medida em que éramos europeus e devíamos seguir a política geral do espaço civilizacional em que estamos inseridos. E depois havia a questão da violência directa que ali ocorria. Havia a violência sobre eventuais inimigos e havia a violência que nós recebíamos. Portanto, são estes três níveis de consciência que se vão juntando até se perceber que se tem que fazer uma rutura completa para alterar a situação.
Na altura em que lhe é entregue o comando de um grupo de combate tem 20 anos. Não se podia casar, não podia tirar a carta, mas podia comandar homens na guerra.
É verdade. Fui sempre criado com uma grande liberdade, tive a felicidade de os meus pais me terem dado muitas responsabilidades desde muito jovem. Fui educado a não pedir muitas opiniões nem muitos conselhos. Era eu próprio que tinha que analisar as situações e tomar decisões. E, portanto, assumi essas responsabilidades com bastante naturalidade. Sabia que se eu era o comandante, era eu que tinha que tomar decisões, e isto era independente da minha idade.
Não sentiu que teve de crescer e amadurecer um bocado de repente?
Os militares que iam comigo, os sargentos e os praças, olhavam para mim como o comandante, e portanto eu não podia ser imaturo, ninguém admitia isso. Tinha que pensar e decidir por mim como cada um daqueles homens, que eram todos mais velhos que eu, iam ter que reagir.
E eles aceitavam isso bem?
Aceitavam. Os exércitos não são instituições democráticas. Eu tinha uma carta patente, isto é, tinha uma autoridade dada pelo Estado Português para ser oficial das Forças Armadas e para comandar.
Uma das coisas que sobressaem no livro é uma personalidade um bocado individualista…
Muito.
É curioso que depois tenha escolhido uma carreira em que a disciplina é fundamental.
Mas a disciplina nunca é incompatível com o pensamento autónomo. Todos nós nos movemos de formas condicionadas. Eu, por mais individualista que seja, se tiro a carta de condução, tenho que conduzir pelo lado direito e tenho de cumprir o código da estrada. O 25 de Abril é um ato também de disciplina, isto é: nós cumprimos as regras e o Estado também tem que cumprir as suas. Se houver um conflito, esse conflito tem que se resolver por uma rutura. Mas, entretanto, eu sou livre dentro da minha esfera de ação, não tenho que estar de acordo com os meus comandantes nem com os políticos. Tenho é que cumprir as regras gerais da sociedade na qual estou inserido. E uma delas é ser livre para pensar e ser livre para decidir. Quando eu era capitão de uma companhia de comandos, houve um oficial superior, o comandante do batalhão, que disse: ‘Olhe, eu amanhã vou consigo fazer a operação’. E eu digo-lhe: ‘Se for para fazer aquilo que eu faço, faço eu, não preciso que o senhor vá. Eu preciso é que o senhor esteja aqui no posto de comando, porque se eu tiver necessidade de apoios, eu quero que o senhor esteja aqui, que é a sua função, e a minha função é ir comandar esta tropa em operações. Se o senhor for, ficamos os dois mal’. Isto é que é a exigência da minha liberdade. Eu tinha uma responsabilidade, e não queria que ele interferisse. E ele tinha a dele.
E como é que esse oficial reagiu?
Bem.
Imagino que quem está nos Comandos tem de fazer alguma coisa do tipo juramento de bandeira.
Os paraquedistas faziam, mas nós não. Os militares que vinham para os Comandos já tinham jurado bandeira.
A certa altura não começa a haver um conflito entre a ‘promessa’ que fez as dúvidas que começa a ter?
Essa é a grande questão da minha geração. Nós jurávamos à pátria e à sociedade, não jurávamos ao regime. A nossa lealdade era para com a sociedade portuguesa, para com o Estado Português. E quando havia, e houve, um desfasamento entre aquilo que nós entendemos que eram os interesses da sociedade, do Estado, e os interesses do regime, fez-se a rutura. A nossa lealdade era para com os nossos concidadãos.
O 25 de Abril fez-se em grande parte para terminar com a guerra. Mas a guerra não foi iniciada por Portugal. Podemos dizer que o colonialismo configurava uma situação injusta, mas não conhecemos muitos casos de potências que tenham aberto mão das suas colónias. O Reino Unido, por exemplo…
Abriu.
Só deu a independência à Índia depois de muita luta. A mesma coisa com a França e a Argélia.
A descolonização é feita num cenário pós-IIGuerra Mundial em que as potências europeias já não têm condições para dominar o mundo e registam, aliás, uma destruição nos seus territórios que obriga a utilizar os seus recursos na reconstrução e não propriamente no domínio ultramarino. O colonialismo inglês ficava caríssimo. Eles fizeram contas, coisa que nós nunca fizemos, e aquilo dava prejuízo. Em todo o lado, os ingleses deixaram a situação armadilhada. A armadilha na Índia, que ainda hoje se vive, é separar os hindus dos muçulmanos, que deu 1 milhão e tal de mortos, 16 milhões de deslocados… A divisão foi feita por uma criatura que nunca tinha ido lá, um advogado, Radcliffe, que traçou um risco para dividir aquilo que hoje é o Paquistão da União Indiana. Depois ficou o Bangladeche, que ninguém soube bem o que havia de fazer.
O que li é que o Gandhi queria que fosse um só país e o Jinnah [primeiro líder do Paquistão] é que impôs um Estado à parte para os muçulmanos.
Isso são depois as guerras internas, mas quem tinha na altura força para impor uma solução eram os ingleses, e não o fizeram. Em África, deixaram as coisas também bastante armadilhadas. A África do Sul, por exemplo, não entrou na Commonwealth e ficou na mão dos nazis do partido nacionalista sul-africano. A situação não foi de forma nenhuma brilhante. No caso dos franceses, a Argélia era considerada um departamento, não uma colónia. É um outro processo. Na nossa geração, conhecíamos bem essas situações de descolonização inglesa e da descolonização francesa, e a conclusão que tirámos é que se as descolonizações não forem feitas transformam-se rapidamente em banhos de sangue. A situação tinha que ser resolvida, até porque não há guerras eternas. A ideia de derrubar o Governo desenrola-se rapidamente quando Marcello Caetano entra em conflito com o general Spínola e proíbe qualquer tipo de relação que leve a negociações com o PAIGC [movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, liderado por Amílcar Cabral]. Quando nós estamos na Guiné e sabemos que o comandante-chefe está em rutura com o chefe do Governo, que lhe disse que preferia uma derrota honrosa a negociar com terroristas, com a situação militar a degradar-se permanentemente, pensamos: ‘Isto tem que romper por um lado qualquer e vai romper pelo lado deles’. Porque nós é que tínhamos a força. Esse é o processo que leva ao 25 de Abril e é pelo facto de a situação na Guiné ser a mais crítica que o núcleo duro do 25 de Abril é constituído na quase totalidade por oficiais que estiveram na Guiné. O Otelo Saraiva de Carvalho esteve na Guiné, o Vasco Lourenço esteve na Guiné, o Mário Tomé esteve na Guiné, eu estive na Guiné, o Manuel Monge, o Almeida Bruno, o Carlos Fabião, o Garcia dos Santos, o Salgueiro Maia, todos estiveram na Guiné. Nós, na Academia aprendemos a fazer estudos de situação: quais são os meus meios, quais são os meios do inimigo, qual é o terreno, qual é a missão. Fazendo essa análise clássica, dissemos: ‘Não temos nenhuma hipótese’.
Toda a gente refere que a Guiné era o cenário mais difícil. Isso deve-se a quê, à organização do inimigo, às condições do terreno…?
Deve-se a tudo. Por um lado, o ambiente físico era muito, muito desfavorável. Tem pântanos, porque com a mudança de maré um terço do território fica debaixo de água, com todas as dificuldades de movimentação que daí resultam, porque depois as terras emersas são relativamente pequenas e é onde está a tropa.
Ficam expostas.
Portanto são um alvo muito fácil. Depois o clima era tremendamente húmido e quente. E não havia nenhum recurso local, as tropas estavam completamente dependentes da logística daqui. Não havia frutas, não havia géneros frescos. Por fim, havia uma população muito diversificada, com 13 ou 14 etnias, cada uma com as suas idiossincrasias e, portanto, era muito difícil definir aliados e inimigos. Por outro lado, o PAIGC era liderado pelo político mais brilhante que existia entre os movimentos de libertação, o Amílcar Cabral, e tinha quadros melhores do que todos os outros, quase todos formados aqui em Portugal, que podiam operar máquinas e sistemas de armas muito mais evoluídos, o que acontecia com a artilharia deles, com a utilização de mísseis e mais tarde com a utilização de mísseis antiaéreos. E daí que a guerra fosse muito difícil. Em Maio de 73, as forças portuguesas na Guiné tinham à volta de 70 mortos, mais de dois mortos por dia. Isto, acrescido pela rutura que sabíamos que tinha existido entre o comandante-chefe e o presidente do Governo, dá uma situação insustentável.
É na Guiné que forma aquele batalhão de comandos africanos. Não é surpreendente que eles, apesar de tudo, se unam aos portugueses?
Não, a questão não é posta nesses termos. Aliás, todos os exércitos europeus que estiveram em África utilizaram tropas locais.
Mas aqui é-lhes dado um protagonismo especial.
Porque o general Spínola lhes atribui esse protagonismo. A tal rutura política com o Governo faz-se porque Spínola tem um programa de autonomia para a Guiné. Um programa em que ele lhes diz assim: ‘Vocês vão ter o futuro que escolherem’. E em seguida prepara um aparelho militar para sustentar as decisões que aquela população tomar. Formou a chamada Força Africana, um exército de guineenses que seria a grande unidade de intervenção e de poder. É este o projeto político que lhes apresentamos, e não propriamente ‘Tu vais-te juntar aos portugueses’.
Só que depois, com o 25 de Abril, eles ficam completamente ‘desamparados’.
Isso é um processo complexo, que tem que ser discutido noutro lado, que é como se lida com as africanizações – aquilo a que os franceses chamam ‘jaunissement’ – das forças. Em todas as descolonizações correu mal. Nesta podia ter corrido melhor. Mas foi assim.