As contas públicas passaram, em três meses, de um excedente de 1.177 milhões de euros, para um défice de 259 milhões. A somar a este valor há que contar ainda com as dívidas da administração central a fornecedores aumentaram na ordem dos 300 milhões de euros, totalizando assim cerca de 600 milhões de euros. A ‘culpa’, de acordo com o novo Governo, deve-se às «decisões e compromissos assumidos já este ano pelo anterior Governo e, em muitos casos, após as eleições de 10 de março». Questionado pelo Nascer do SOL, o ministério das Finanças não revelou as medidas que contribuíram para este agravamento, mas esta quinta-feira, Miranda Sarmento, afirmou que o Governo socialista aprovou 108 resoluções em Conselho de Ministros.
«Estamos a fazer um levantamento exaustivo sobre as que têm cabimento orçamental»,acenando com três medidas que não o têm: 100 milhões de euros para apoio aos agricultores no Algarve e no Alentejo, 127 milhões de euros para aquisição de vacinas contra a covid-19 e 200 milhões de euros para a recuperação do parque escolar. «Temos um conjunto de despesa autorizada nos primeiros três meses usando reservas que normalmente o Ministério das Finanças usa a partir do verão. Em cima disso temos um conjunto de promessas, muitas em campanha, algumas depois das eleições, que não têm cabimento orçamental» disse o governante.
As críticas não se fizeram poupar por parte de Fernando Medina que acusou Miranda Sarmento de «inaptidão técnica» ou, em alternativa, «falsidade política». De acordo com o ex-ministro das Finanças, os recentes dados da Direção-Geral do Orçamento relativos à síntese de execução orçamental até março foram apresentados em contabilidade pública, quando o critério que releva para Bruxelas é o da contabilidade nacional.
‘Política de contas certas morreu’
Esta divergência de números não parece surpreender João César das Neves. Ao Nascer do SOL, o economista afirma que a «chamada ‘política das contas certas’ morreu com o Governo de António Costa». E acrescenta: «Depois de saber que ia cair, esse mesmo Executivo introduziu mais de cem medidas de alteração ao seu próprio Orçamento para 2024, mostrando com clareza a mudança de rumo».
Já em relação às medidas que poderão ter penalizado as contas públicas não hesita: «Não há uma ou duas, mas muitas medidas, em muitas áreas. Algumas são mais visíveis, porque as corporações conseguem capturar a comunicação social, mas o problema é transversal. Assim fica clara a fraude que sempre esteve latente na tal ‘política das contas certas’: nunca se fizeram as reformas de fundo que tornariam sustentável o equilíbrio orçamental, pelo que o alívio seria sempre transitória».
Também Paulo Rosa, economista Sénior do Banco Carregosa, explica ao nosso jornal que esta situação deve-se ao facto de assistirmos a situações marcadas por antecipação de eleições ou alterações de governos, o leva a «um aumento das despesas excecionais e diminuição de receita, influenciada muitas vezes por pagamentos diferidos».
O economista dá ainda como exemplo, despesas excecionais e queda da receita fiscal do Estado no primeiro trimestre, recuando 0,9% face ao mesmo período do ano passado. «Receita sobretudo penalizada pelos pagamentos relativos ao regime de ativos por impostos diferidos de IRC em fevereiro de 2024 e pela prorrogação do pagamento de IVA».
Raio-x
O analista da XTB, Henrique Tomé, lembra que nos primeiros três meses do ano, o equilíbrio orçamental em Portugal sofreu uma redução de 5.317,5 milhões de euros em relação ao mesmo intervalo do ano passado, culminando num défice trimestral. Este resultado foi parcialmente influenciado pela transferência das responsabilidades do fundo de pensões dos trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos. Ainda assim, excluindo esse efeito, o equilíbrio teria recuado 2.299 milhões de euros, devido à combinação de uma queda na arrecadação de 7,4% e um incremento nos gastos de 15,1%.
A arrecadação fiscal diminuiu 0,3%, mas a receita total aumentou 4,3% ao excluir a operação do fundo de pensões. Nos gastos, o aumento de 15,7% na despesa primária foi impulsionado por crescimentos nas transferências (23%), gastos com pessoal (7,8%) e aquisições de bens e serviços (7,2%). O acréscimo nas transferências deve-se aos encargos com reformas, que foram ajustadas este ano.
O analista diz ainda que houve também um aumento significativo de quase 8% nos gastos com pessoal, impulsionado principalmente por reajustes salariais e progressões de carreira. Esse incremento foi particularmente notável em diferentes setores: na justiça, o aumento foi de 22,8%; na área da administração, de 34,3%; e nas finanças, de 15,3%. Já na educação, os custos com pessoal cresceram 9,1%, enquanto na saúde o aumento foi de 5,1%.
E as dúvidas permanecem em relação ao futuro. «Neste momento, podemos entrar numa nova fase do ciclo económico, onde o Estado pode ter maior dificuldade de arrecadar receitas e ser obrigado a aumentar os gastos públicos. Desta forma, o aumento de gastos públicos, culminando com a estagnação ou diminuição da receita fiscal, poderá levar a défices orçamentais», diz Henrique Tomé, referindo que o aumento generalizado dos preços levou a que os Estados conseguissem arrecadar mais receita fiscal, mas agora, que a inflação começa a dar sinais de abrandamento é previsível que essa receita possa estagnar ou mesmo diminuir.
E acrescenta que «o abrandamento macroeconómico pode intensificar-se mais na economia real daqui para a frente e para além disso, temos um novo governo em funções que tem interesse em manter a sua reputação, o que pode gerar maiores diminuições de receita ou aumentos de gastos públicos, a fim de estimular a economia».
‘Pior que nos últimos 40 anos’
Ainda esta semana, o Instituto Nacional de Estatística (INE), confirmou que a economia portuguesa cresceu 1,4% em termos homólogos nos primeiros três meses do ano e 0,7% face ao trimestre anterior. Sobre o que esperar daqui para a frente, César das Neves defende que «dado que, com o fim do Governo de António Costa, se caiu numa situação de precariedade governativa, com um parlamento tripartido, a situação não é de todo favorável ao rigor orçamental. Podemos dizer que nessa frente estamos pior que nos últimos 40 anos».
Também o economista Paulo Rosa diz que a economia portuguesa «cresceu menos em termos homólogos, mas registou um crescimento satisfatório em cadeia», explicando que a base elevada do PIB no primeiro trimestre do ano passado, «quando a economia portuguesa cresceu 1,5% em cadeia, ou seja, relativamente ao trimestre anterior, retirou algum brilho à riqueza criada no primeiro trimestre deste ano de 0,7% em cadeia, mas de apenas 1,4% em termos homólogos». Por isso, diz que «em termos de receita fiscal, ainda não é de esperar uma considerável desaceleração».
Mas lembra que as elevadas taxas de juro «começam gradualmente a replicar os seus efeitos desfavoráveis no rendimento disponível das famílias e na tesouraria das empresas, penalizando o consumo privado e o investimento». E diz ser «provável que as elevadas taxas de juro continuem gradualmente a penalizar o rendimento disponível das famílias, contribuindo, eventualmente, para a crescente redução do consumo privado nos próximos trimestres, penalizando, assim, o contributo do consumo privado para o crescimento económico português, diminuindo a sua prestação na formação do PIB nacional. Mas é de esperar que o crescimento da população empregada e o setor do turismo continuem a suportar o crescimento económico nacional».
Por sua vez, Henrique Tomé é da opinião de que Portugal «tem vindo a crescer a um ritmo forte nos últimos dois anos (sensivelmente), no entanto, começa a notar-se algum abrandamento da atividade económica, tal como já tinha acontecido com os pares europeus». E defende que, tendo em conta que ao longo do último ano e meio a economia portuguesa «tem estado em contraciclo com os pares europeus, poderá haver uma nova mudança neste paradigma».
O analista avança que os pares europeus «têm demonstrado um abrandamento económico agressivo durante esse período, enquanto Portugal era dos que mais crescia dentro zona euro» mas que «o paradigma parece começar a inverter-se, com a economia portuguesa a dar os primeiros sinais de abrandamento, enquanto os pares europeus começam a dar sinais de recuperação».
No entanto, admite que este cenário «pode ser um catalisador para possíveis alterações tanto no lado da receita como no lado dos gastos, podendo contribuir para um aumento do défice».