Depois de Lucília Gago procura-se o perfil ideal

Nos meios judiciais há preocupação com a escolha do novo PGR. Há quem defenda que deve ser alguém da casa e quem considere que não é obrigatório.

A procuradora-geral da República (PGR) termina o mandato em setembro e já anunciou que não está disponível para se manter no cargo. Num clima de ataque cerrado ao Ministério Público (MP), na sequência dos casos Influencer e Madeira, que levaram à queda do Governo de António Costa e do Governo Regional da Madeira, adivinha-se uma reforma na Justiça ao sabor dos acontecimentos.

A Justiça deve ser igual para todos, mas a história recente tem revelado ciclicamente que há sempre quem pense que há uns mais iguais do que outros. Um grupo de figuras públicas, algumas das quais já estiveram a contas com a Justiça no passado, lançou o Manifesto dos 50 e tem acusado a magistratura do MP de ter uma agenda política. Exigem a recondução do MP ao funcionamento hierárquico e o fim do exercício por parte dos seus magistrados de um «poder sem controlo». A ministra da Justiça também já veio a terreiro afirmar que é preciso um novo PGR que saiba «arrumar a casa».

Que perfil deve ter o novo PGR

O procurador da República Rui Cardoso, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do MP (SMMP), receia que a solução do Governo passe pela escolha de uma pessoa fora da ‘casa’, um jurista, e que isso mais não seja do que arranjar «um comissário político com um mandato que não é o da Constituição, nem da lei». Quem aponta a falta de hierarquia no MP, acrescenta, «o que pretende é implementar uma hierarquia quase militar». «Se o regime voltasse ao que tínhamos em 1987, como alguém já alvitrou, em que o juiz de instrução é que liderava a investigação, os magistrados passariam a ser meros subordinados da vontade de um único dirigente, o PGR, e o MP uma instituição altamente poderosa e perigosa», afirma.

João Palma, procurador-geral adjunto e também antigo presidente do SMMP, também prefere alguém de dentro da instituição para assumir o seu leme: «Se optarem pela escolha de um jurista, isso pode ser pior a emenda do que o soneto. O nosso MP, contrariamente a outros países, tem várias áreas de ação. A máquina é de tal forma complexa que a escolha de uma pessoa de fora, sem esse conhecimento, corre sérios riscos de falhar rotundamente». O antigo presidente do SMMP contesta que seja necessária uma eventual alteração do estatuto do MP: «Exatamente com o mesmo estatuto, tivemos um PGR que se queixou de ter os poderes da Rainha de Inglaterra (disse até que, no MP, só havia duques e marquesas…). No entanto, um dos seus sucessores, Joana Marques Vidal, nunca se queixou de falta de poder». No momento de substituir Lucília Gago, acrescenta João Palma, «o poder político terá de decidir de uma vez por todas se quer fortalecer ou não o Estado de Direito democrático e seguindo os princípios constitucionais gerais da República, decidir qual o lugar que se reserva ao MP no seio do poder judicial. O que não se pode fazer, quando não se consegue resolver os problemas, é alterações legislativas».

Já Euclides Dâmaso, ex-procurador distrital de Coimbra, entretanto jubilado, não fecha a porta a qualquer opção: «Independentemente de ser juiz, procurador ou académico, tem de ser uma pessoa com personalidade vincada e estrutura reconhecida ao nível judiciário. Alguém que saiba dialogar para fora e para dentro, que saia do gabinete e vá ao encontro dos magistrados no país. E, de preferência, que saiba direito penal a sério, de forma a assegurar o efetivo funcionamento da cadeia hierárquica nesta matéria e sem prejuízo da autonomia técnico-científica de cada magistrado. Terá de arranjar um vice-PGR que faça com ele e outros responsáveis hierárquicos da instituição uma boa equipa. O MP deve também aceitar e compreender as críticas internas ou externas que lha são feitas».

Os três magistrados concordam que a comunicação do MP tem de mudar e não deve estar inteiramente nas mãos do PGR. «A comunicação interna e externa é importante, mas, cuidado, essa não é a função principal do procurador. Se querem uma justiça-espetáculo, vão buscar o Pedro Marques Lopes ou o Daniel Oliveira», alerta Euclides Dâmaso. E «o PGR não pode estar sempre a aparecer, tem de se escolher alguém que seja porta-voz do MP e convém que seja um magistrado treinado para isso», acrescenta João Palma.

O socialista Jorge Lacão, que em 2019 esteve envolvido no processo parlamentar de alteração dos estatutos do MP sublinha que «o referido estatuto, estabelece ao procurador as incumbências de elaborar um conjunto de diretivas que devem ser públicas e publicadas em Diário da República. São as diretivas relativas à concretização da relação hierárquica e a diretiva relativa aos procedimentos que podemos designar como pré-processuais. Investigações preliminares, mas que precisam de ter o devido registo para que também se possa aquilatar da legalidade desses procedimentos». Para o antigo deputado socialista, o principal problema é o não cumprimento desde 2019 de procedimentos que são obrigatórios segundo os atuais estatutos e dá como exemplo a ausência do relatório de atividades que nunca foi entregue.

O social democrata André Coelho Lima, subscritor do Manifesto dos 50, não querendo interferir na definição do perfil do próximo PGR, considera, no entanto, que «não há nada na lei que obrigue a que seja um magistrado do Ministério Público e há um princípio político e democrático que todas as outras corporações seguem, que é, no fundo, poderem ser lideradas por alguém que não seja da estrutura». Coelho Lima acha que não deve haver tabus quanto à escolha, embora não considere que o facto de ser alguém de dentro ou de fora seja, neste momento a questão essencial.