José A. Ferreira Machado. ‘Estão dois partidos divididos por questões que são amendoins’

Em causa está o IRS Jovem e a redução do IRS. ‘Estamos a discutir coisas muito pequenas e com pequeno impacto na vida das pessoas’. Para Ferreira Machado, ‘não há drama nenhum haver ou não haver Orçamento’.

Como vê a economia portuguesa? Os últimos sinais apontam para um abrandamento e ainda esta semana o Fórum para a Competitividade cortou a previsão de crescimento para este ano. A fórmula de sucesso está gasta?

Quando falamos em sucesso e em números, estamos a falar de coisas um bocadinho diferentes. Se até ao fim do ano vamos crescer mais meio ponto ou mais um décimo de ponto, estamos a falar de coisas de curto prazo. A Europa está a abrandar, por isso, não me surpreende muito, nem me causa motivo de particular preocupação esse abrandamento, nem acho que haja muito que os Governos possam fazer ou que se calhar devam fazer para contrabalançar ou contrariar essas flutuações cíclicas da atividade económica. No entanto, quando falamos em sucesso estamos a falar da nossa capacidade de crescer sustentadamente ao longo de períodos mais amplos de tempo acima, não da média, mas dos países que estão no nosso grupo de pares na União Europeia. Nunca fui alguém que me preocupasse com as previsões até ao final do ano do Fórum da Competitividade ou com as previsões do Banco Portugal para o próximo mês, pois sempre achei que era espuma dos dias. Ainda assim, quanto à capacidade de sucesso, não vejo motivo para ser otimista. Na altura, escrevi no SOL que o programa Acelerar a Economia é mais outro que dedica 2/3 do seu conteúdo a uma atividade que já passou além do campo ótimo que é o turismo.

Nos últimos anos temos andado a reboque do crescimento do turismo…

O único projeto que existe em Portugal é construir hotéis e atrair turistas.

Sabe muito a poucochinho para uma economia que tem de crescer?

Não é poucochinho, é mau, porque não podemos aumentar o nível de vida sem aumentar a produtividade, sem acelerar o crescimento da produtividade. E no turismo, como em todos os serviços, a produtividade é algo que é muito difícil de aumentar. O turismo alimenta os salários baixos, porque só assim é competitivo. O turismo é um bocadinho como o ouro do Brasil: soube bem na altura, mas, de facto, tem efeitos muito nefastos a prazo. Não sou nada entusiasta do turismo.

Está assente em salários baixos e em precariedade?

Só pode, os problemas da imigração, em grande parte, são derivados de um número excessivo das necessidades do turismo e também de certas atividades de agricultura intensiva no Alentejo. Tem todos estes efeitos secundários e não acho que se possa dizer que poderemos ser a Florida da Europa, porque a Florida tem uma indústria aeronáutica e outras atividades, não é só turismo, nem reformados. Vai muito mais além, não vejo grandes motivos para estar otimista, mas também não tenho grandes soluções. Portugal é um problema complicado. Agora, ouvimos discussões em torno da estrutura fiscal. Estão dois partidos divididos por questões que são amendoins, que é o IRS Jovem, que não vai ter efeito nenhum, e uma redução minúscula no IRC. São questões que são totalmente acessórias, enquanto grandes reformas do sistema tributário, da justiça, entre outras, não são encaradas. Acho que há um grande bloqueio político e isso tem consequências. Essa discussão em torno dos argumentos que existem para votar a favor ou contra o Orçamento não fazem sentido, mas também não acho que seja drama nenhum haver ou não haver Orçamento. Não é por isso que o país vai ficar mais pobre ou mais rico. Claro que pode ter importância em termos de distribuição. Há pessoas que perdem se não for aprovado o Orçamento, nomeadamente, as pessoas que são beneficiadas por certos aumentos de prestações sociais ou por certas reduções fiscais. Mas isso é essencialmente um jogo redistributivo, tirar a uns para dar a outros. Não me parece que nada no Orçamento seja decisivo em relação ao crescimento económico e mesmo o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] continuará a ser executado quer haja ou não Orçamento.

O país pode viver em duodécimos, mas não pode contemplar determinado tipo de despesas extra. E faz sentido o Governo de outra cor política continuar a implementar um Orçamento que não é dele?

Em teoria, não faz, mas também ninguém acha que haja muita diferença no Orçamento de Fernando Medina do Orçamento de Miranda Sarmento. Não acho que haja opções radicalmente diferentes e, por isso, podem viver com o Orçamento um do outro.

Diz que estamos a discutir coisas pequeninas, como a redução do IRC ou o IRS Jovem…

Até mesmo em torno daquela discussão em que a esquerda se uniu para aprovar até que escalões do IRS haveria reduções de taxas. O Governo queria que fosse até ao sexto ou sétimo escalão e eles queriam que fosse um escalão abaixo, mas, na verdade, estamos a discutir coisas muito pequenas e com pequeno impacto na vida das pessoas. Estamos a fazer pontos políticos. A esquerda recusa-se a reconhecer que temos excesso de progressividade e, por isso, é uma reforma importante e o centro direita não consegue passar a ideia de que temos excesso de progressividade, Portanto, andamos aqui num pequeno jogo de ajustamentos. Mesmo a redução do IRC, a que sou favorável, ninguém acha que uma redução desta magnitude vai mudar radicalmente a situação económica do país. Não me parece, honestamente, que nada no que está em jogo seja tremendamente importante.

A redução do IRC foi alvo de críticas, nomeadamente por ter pouco impacto nos trabalhadores.

Mas isso é uma visão errada, porque acaba por beneficiar sempre os dois lados. Uma coisa é a incidência legal, isto é, quem paga um imposto ou quem recebe o subsídio. Outra coisa é a incidência económica e uma redução do IRC também acaba por se traduzir em maiores e melhores salários e em melhores condições de trabalho. Acredito nisso e há um estudo que foi publicado pela Fundação Manuel dos Santos há muito pouco tempo que também mostra isso. Isto nunca é um jogo de soma zero. Isto é, o que eu ganho tu perdes, o que eu perco tu ganhas. E é possível em certos esquemas ganharem ambos.

O FMI alertou recentemente preocupações com algumas medidas como o IRS Jovem…

Não conheço em detalhe a reação do FMI, mas, se conheço o FMI, suspeito que estaria a pensar no impacto do encaixe da receita fiscal. A minha preocupação com o IRS Jovem é ter probabilidade zero de resolver o problema e aí sou muito perentório: o problema que se pretende resolver é travar a emigração de jovens qualificados. Mas não vai ter qualquer efeito aí e acho que as cabeças mais esclarecidas do PSD também sabem isso. Foi uma arma eleitoral, mas que não tem qualquer sentido económico, nem vai ter qualquer efeito prático. Então uma pessoa quando passa dos 35 para os 36 vai ser penalizada? Quando decido emigrar é para ter uma perspetiva de vida, olhando para frente, então fico cá para depois dos 35 para os 36 anos ter um aumento brutal de imposto? As pessoas têm uma visão, não são míopes e têm uma visão prospetiva das coisas e, nesse sentido, o FMI pode ter razão. É uma perda de receita que não tem o efeito pretendido. Ainda assim, acho que o IRS é alto e tudo o que seja redução do IRS não acho que seja mal vindo, mas não é pelas razões que se apontam.

Que tipo de medidas gostaria de ver contempladas no OE 2025?

A questão fundamental é: não se pode discutir seriamente a questão fiscal sem discutir a questão da despesa pública. E não se pode discutir a questão da despesa pública sem discutir o que é que o Estado vai fazer na economia. Esta é a conversa essencial que ninguém quer ter. A tributação em Portugal é muito elevada e, não obstante, Pedro Nuno Santos diz que podemos pagar as maiores taxas só que essas taxas começam em níveis de rendimento muito mais baixos. Nós pagamos muito para o nível de rendimento que temos. É muito fácil uma pessoa, entre impostos e contribuições para Segurança Social, chegar a níveis dos 40% e 50% de tributação. São taxas de tributação altíssimas, a cunha fiscal sobre os salários é elevadíssima e é das mais elevadas da OCDE. No entanto, somos um país que sempre fala em reduzir impostos, e não nos podemos esquecer que tivemos várias vezes na bancarrota.

A última intervenção da troika foi recente…

Ainda está na memória e não podemos falar seriamente em reduzir os impostos sem pensar no que queremos fazer em termos de controlo da despesa. Isso é uma luta. Isso é uma coisa difícil e é por aí que se devia ir, mas também é talvez a questão que mais fratura os partidos, daí ver sinceramente com muita dificuldade essa redução.

Mas temos vindo a assistir ao aumento da despesa e à redução da receita…

É tudo a aumentar a despesa. Estive a ouvir esta semana um programa na rádio Observador que falava das isenções e benefícios fiscais e estava um fiscalista a dizer, com alguma razão, que independentemente de dada isenção fiscal ou de dedução à coleta jamais alguém avaliou se essa medida tinha efeito ou não. Simplesmente, falar em tirar alguma coisa dessas é um anátema político. Todos os partidos o que querem é introduzir uma nova isenção, um novo benefício, uma nova dedução. E tudo isso vai aumentando a complexidade imensa do sistema. Mas são discussões apenas para ganho político e o ponto que ele queria chamar a atenção é que, sempre que se discutem impostos, os partidos estão interessados é no sound bite, em qual é o efeito político imediato dessa proposta ou dessa decisão. E ninguém está interessado em fazer um follow-up das consequências desta ou daquela medida ou avaliar se são positivas ou negativas.

O aumento da despesa passou pelo descongelamento da carreira dos professores, dos aumentos para as forças policiais e militares…

Estamos a falar de um aumento grande da despesa. Mas toda a gente que está na função pública – e eu estou na função pública há muitos anos – acha que quem ganha pouco. E se aumento uns e não aumento outros estou a criar problemas. Mas percebo que, se calhar, a situação dos professores tinha de ser resolvida, mas também não foram os únicos funcionários que foram prejudicados.

Há o risco de abrir a caixa de Pandora?

Abre a caixa de Pandora, não digo que é fácil, mas não vejo passos nenhuns num bom sentido.

Disse que o facto de não haver Orçamento não iria pôr em causa a implementação do PRR, mas acha que o programa está a ser uma oportunidade perdida, como tem sido apontado por muitas vozes críticas?

Acho que o PRR foi muito mal desenhado. Foi desenhado com base naqueles documentos teóricos. Estive à frente da candidatura da universidade ao PRR e conseguimos, mas, basicamente, além de algumas residências universitárias, pouco vai ficar. Criaram-se coisas muito atomizadas, muitas medidas aqui, muitas medidas ali, que se calhar correspondiam à ideia que o ministro Costa Silva tinha como fazer as coisas. É um documento bonito, um documento inteligente, mas devia ter concentrado o dinheiro em fazer três ou quatro coisas que se pudessem executar. E depois o problema da execução é muito complicado. Só quem já teve que fazer obras por concurso é que sabe o problema que isso causa: as contestações, os vistos do Tribunal de Contas… Se bem que para algumas despesas tenha havido um mecanismo expedito de efetuar essas despesas, mas tudo isso atrasa. Havia muito boa gente que dizia que o PRR não ia ser o tal balão de oxigénio, o que faz sentido. Já recebemos tantas vagas de fundos europeus e o país mudou? Muitas coisas mudaram, como as autoestradas, mas não nos tiraram muito da cepa torta. Então por que haveria de ser o PRR a bola mágica?

Não representa o tal milagre económico…

Não é um milagre, nem podia ser, porque os milagres não estão em dinheiro que vem de fora. O problema não é a falta de dinheiro. O problema é sempre a falta de projetos, a falta de projetos ambiciosos e a falta de capacidade para os executar.

Nota que há falta de ambição?

Noto, há sempre uma enorme falta de ambição e depois uma enorme falta de rigor na execução, porque quando essas duas coisas se conjugam o dinheiro acaba sempre por aparecer. Fiquei muito impressionado com Nuno Palma com o livro As Causas do Atraso Português, que tem uma avaliação extraordinariamente crítica e extraordinariamente elucidativa do que foi o ouro do Brasil que afluiu a Portugal na primeira metade do século XVIII. Comungo muito da sua tese e acho que o turismo pode estar a ter um efeito semelhante, isto é, de dinheiro que vem do céu e que desvia a afetação de recursos. Por exemplo, só estamos a fazer o aeroporto que estamos a fazer porque achamos que o turismo vai ser a nossa salvação. A afetação de recursos está a ser influenciada por este novo ouro do Brasil.

É como o caso da ferrovia…

Sim, e tudo isto condiciona toda a afetação de recursos. É claro que vamos ficar com alta velocidade, vamos ter 300 novos hotéis no país, mas ninguém acredita que o país possa sair da cauda da Europa através do turismo. Não é possível. A matemática não funciona assim, porque é preciso aumentar a produtividade e a produtividade no turismo não se aumenta facilmente. Não vejo que seja o turismo que vá acelerar a economia, mas vai condicionar toda uma série de investimentos. A dimensão do investimento no aeroporto de Lisboa poderia ter começado de uma forma muito gradual, mas isso não aconteceu. Primeiro, vamos esperar dez anos, na melhor das hipóteses, ninguém acredita que sejam dez anos. Não sei se verei o aeroporto. Mas também não é motivo para estar desesperado, a vida não é terrivelmente má em Portugal. Temos um clima ótimo. Somos um país pacífico. Não somos ricos, mas somos os mais ricos dos mais pobres. Claro que é como a Liga de Futebol, vamos ter os melhores jogadores a irem jogar em outras ligas e aí a comparação com o futebol é interessante. Vamos atraindo alguns para trabalharem aqui, os melhores portugueses vão para outras ligas e isso tem impacto na economia. E vamos continuando assim. Só é dramático para quem tivesse uma ou outra ambição para o país.

Como uma aposta na indústria?

Um país industrializado ou tecnológico, como Silicon Valley ou uma Florida com toda a sua diversidade de indústrias e de atividades. Aí, quem tiver essa ambição sente-se um bocadinho defraudado, mas não é exatamente dramático.

Em relação à ideia das contas certas. Assistimos a uma mudança de discurso com a mudança de Governo?

Devo dizer que sou um crítico do discurso das conta certas porque isso entrou no jargão parecendo que é boa economia e não há nenhum manual de economia que diga que a regra de ouro das finanças públicas são contas certas. A regra de ouro das finanças públicas é que devemos ter défice apenas para financiar investimento, isto é, as receitas devem cobrir as despesas correntes, mas podemos ter dívida para financiar investimento. A dívida para financiar investimento produtivo é uma dívida virtuosa. Um país que tem assistido a um declínio do stock de capital público nos últimos 15 anos, como o que se tem verificado, um país que tem os níveis de investimento público em percentagem do PIB mais baixos da Europa, que assiste a uma degradação dos serviços públicos, é difícil dizer que contas certas é virtuoso. Dito isto, não parece que entrar em défice para dar subsídios a A ou a B com propósitos políticos óbvios seja uma boa prática em matéria de finanças públicas. Portanto, vejo com preocupação que já tenham sido comprometidos cerca de seis mil milhões de euros em despesas aqui e ali, tudo em coisas avulsas. Se me tivessem dito que esse investimento de seis mil milhões de euros iria ser usado em melhorar a infraestrutura ferroviária – não sei se é o melhor exemplo, mas é para dar um exemplo concreto do que seria o investimento em capital físico público – ou para financiar reformas antecipadas de funcionários públicos menos qualificados, diria que isso justificar-se-ia, porque é algo que, de alguma forma, pode aumentar a nossa capacidade de crescer a prazo. Agora, incorrer em dívida apenas para distribuir aqui ou ali parece-me mal.

Como vê a polémica em torno da TAP?

Não sei se há ou não ilegalidades, mas, pelo que consegui perceber, do ponto de vista de engenharia financeira a operação faz todo o sentido, como também não acho que seja verdade que a TAP tenha sido capitalizada com fundos próprios. Acho que houve um desconto comercial da Airbus na ordem dos 200 milhões para comprar 52 aviões. Podiam fazer o desconto no preço de venda, mas fizeram um abatimento ao preço dando 200 milhões. Ter aumentado o capital num dado valor pagando menos é uma forma de capitalizar uma empresa. Também não me espanta, já que era uma capitalização associada a um crédito comercial, que a Airbus tenha dito que no caso de não comprarem teriam de devolver o dinheiro. Se é legal, se não é, se houve as autorizações ou não, francamente não sei. Dito assim, acho que é uma operação de engenharia financeira que me parece lógica.

Estas incertezas penalizam a imagem da TAP e podem prejudicar a privatização?

Honestamente, não conheço o setor. Só pode complicar porque os aviões não foram todos entregues. Mas nós todos, a natureza humana, somos muito injustos porque esquecemos que uma coisa é uma tomada de decisão, outra são as consequências dessa tomada de decisão. O que quero dizer com isto? A questão é saber se, no momento em que a decisão foi feita, se essa decisão era racional. Depois, se produziu todos os efeitos previstos, é outra questão, já que entre o antes e o finalmente acontece muita coisa, o que faz com que muitas decisões que à partida faziam sentido acabem por parecer a posteriori decisões erradas, mas a posteriori é como prever os resultados de um jogo depois de o jogo ter acabado. A questão é antecipar os resultados do jogo.

A TAP foi alvo de uma recapitalização de 3,2 mil milhões, agora a Lufthansa está disponível para pagar 200 milhões por cerca de 20% da empresa. Faz sentido?

O facto de o Estado ter metido 3,2 mil milhões não significa que, em termos legais, a empresa valha isso. Se calhar meteu-se mais dinheiro do que se devia. Este dinheiro já foi. Imagine que a empresa tinha défices ocultos explícitos da ordem dos três mil milhões, significa que só sobrava 200 milhões, mas a questão do valor de mercado da empresa tem pouco a ver com o dinheiro que o Estado meteu, porque pode ter claramente posto dinheiro que não devia ter posto. Às vezes, queixamo-nos que alguém compra uma empresa por um euro, mas comprou uma empresa por um euro porque assumiu todo o passivo. O setor aeronáutico é um setor complicadíssimo, a TAP é uma empresa complicadíssima e a Lufthansa também pode ter interesse para começo de conversa avaliar a empresa por baixo.