Poesia Quase Toda
Zbigniew Herbert
ED. Cavalo de Ferro
Se o conflito é a grande lógica que se inscreve no avesso destes dias, a nós, feitos de sangue e ilusão, cumpre-nos retirarmos alguma consequência de gestos esvaziados de sentido, à semelhança desse que «junta as mãos em concha como quem guarda uma memória/ sementes secas dos nomes dos mortos», com a confiança de que daí «outra floresta sobrevirá». Herbert foi um poeta que se guardou da desolação para traduzir aquela consciência sonante que faz a integridade de um homem, como uma moral cantante, mesmo que secreta, e que resiste como pode, que carrega em si a esperança de uma sublevação. Teresa Fernandes Swiatkiewicz volta a dar-nos uma tradução a partir do polaco que faz pela nossa língua o que muitos poetas não têm sabido fazer.
DVP
A Árvore Tocada pelo Raio
José Emilio Pacheco
ED. Maldoror
Não é na televisão, nem nos jornais, nem certamente na academia, que se pode ouvir falar a língua dos homens. Talvez só nas confissões inusitadas que alguns se permitem, carregados aos ombros tanto pelos seus anjos como pelos seus demónios, nesses momentos de trégua arrasadores… Num bar, nalguma cave, nessas esconsos onde os ossos aterram e descansam de todo o desamparo. Aquilo que se ouve no fundo do poço da existência será uma voz parecida com a de José Emilio Pacheco, o mais destacado poeta mexicano depois de Octavio Paz, e sobretudo o mais experimentado nessa coisa de raspar o que resta do homem do fundo de um poço para lhe dar, não uma nova vida, mas, pelo menos, outra consistência.
DVP
Na Morte de Erato
A.M. Pires Cabral
ED. Tinta da China
A oficina de Pires Cabral é das mais apetrechadas da poesia portuguesa contemporânea. E no entanto, por entre as fendas que o passado acumulado ainda consente no solo da invenção e do trabalho verbal, eis que salta a Musa – plena, inteira, só aparentemente em queda, pese embora uma ou outra ruga de cansaço que a ironia nem sempre apaga. É uma relação de décadas, com equívocos, caprichos, arrufos, incompreensões de parte a parte, tempos de afastamento, como em qualquer velho casal. Mas o que mais visivelmente emerge são as cumplicidades, os momentos de dependência feliz, as epifanias. A relação deste poeta com a musa ocupa o centro deste belíssimo livro, tão humorado quanto escuro. Espécie de balanço final, de confronto último, dir-se-ia que o anúncio da morte da musa é talvez manifestamente exagerado.
WIT – ensaios humorísticos
Roberto Benchley / Tradução: Júlio Henriques
ED. Tinta da China
Ver conviver no mesmo título, e de modo tão pegado, o género ensaio, habitualmente sisudo, e humor poderá suscitar estranheza, como se estivéssemos na presença de esferas desavindas. Roberto Benchley, «um humorista a quem os mestres chamavam mestre», talvez por funcionar várias dioptrias acima dos seus pares, mostra-nos que, dispondo de imaginação fluente, vontade de experimentação e olhar humorístico tudo é articulável: a quinquilharia objetiva e o essencial subjetivo, as pequenas minúcias quotidianas e os significados colossais. O seu olhar tanto se fixa nas convulsões do trabalho criativo como pousa nas cortinas da cozinha ou entra pela casa de banho. Tem talento e graça. E fabulosos planos para impedir acidentes, boa parte com origem nas preocupações humanas.
Origami
José Gardeazabal
Ao sétimo romance Gardeazabal não descansou. Enérgico, original, sorrateiro nas novas maneiras de dizer as velhas coisas, encharcado de memória literária, de uma sensibilidade tocante, sem alarde vocabular nem desnecessários andaimes dramáticos, Origami traz-nos a história de uma família disfuncional contada por um jovem adolescente, primeira figura numa galeria de nomes com ressonâncias difíceis de ignorar (Hammett, Desdemona ou Brutus). A eficácia das comparações, o lugar-comum – examinado nos seus componentes, desmantelado, sabotado com ofensiva irónica – é apenas um dos trunfos de um romance de grande irradiação temática e ofensiva irónica, que aceita o peso histórico da linguagem, os seus musgos, seus bolores, e faz dessa condição uma das suas forças.
Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís de Camões
Isabel Rio Novo
A figura de Camões parecia destinada a permanecer envolta num espesso véu de mistério que levou um seu estudioso a afirmar que sobre esta figura pouco mais de indiscutível sabíamos que isto: «escreveu Os Lusíadas». Isabel Rio Novo não se deixou abater por lacunas ou escassez de informação e entregou-nos a sua biografia, extravagantemente bem arquitetada, bem escrita, sempre afastada quer da linearidade simplista quer daquele efeito de acúmulo que nos fazem desaparecer certas biografias. Não agita o turíbulo mítico, não presta serviços de canonização. Oferece-nos o homem, nas suas complexidades e contradições. Batendo na portada do grosso volume, reparará o leitor que há gente para o receber. É entrar.
História do Surrealismo
Maurice Nadeau
ED. Assírio & Alvim
Este livro bem poderia ser um clássico no seu género, não tratasse ele de uma força impossível de ser contida entre contornos de ordem historiográfica, como um paciente a éter sobre a mesa de algum médico legista. Ao contrário de tantos outros movimentos ou escolas que não passavam de associações de literatos entreajudando-se para melhor atingirem os seus objetivos, o surrealismo não tem metas, e é hoje, mais do que nunca, urgente ao exigir que se crie um movimento nos espíritos de modo a que estes nunca mais busquem justificar o uso de certos meios para alcançar determinados fins, mas antes continuem a desbravar e a buscar novos recomeços.
DVP
Comité Invisível
A Insurreição que vem/ Aos nossos amigos/ Agora – AAVV
ED. Tigre de Papel
A publicação dos três livros do ‘comité invisível’ num só volume foi recebida entre nós com um silêncio embaraçoso, algo semelhante ao velho moralista que desvia os olhos de um corpo que dança. O projeto teórico que estes textos trazem, não só faz um mapeamento dos tumores que nos aprisionam, como nos dá a sentir os nódulos vivos da comunidade porvir. Desmascarando a construção ideológica onde vivemos amputados da potência dos nossos corpos, dos discursos de adaptação como escravatura, abrem-nos a perceção para os vínculos que contrariam a devastação existencial. O dilema não é escolher entre reforma ou revolução, entre teoria ou ação. «Não se trata de ocupar, mas de ser o território».
Um Artista da Fome
Histórias e Fragmentos Reunidos 1922-1924
Franz Kafka
ED. E-Primatur
Para os distraídos, habituados a ver o autor desmultiplicar-se em traduções e editoras, um novo livro de Kafka pode não parecer nada de relevante, mas o que a E-primatur trouxe a lume não é uma nova tradução de um livro que por aí andasse. Esta edição mostra-nos o processo criativo de Kafka, alternando fragmentos, contos, começos de textos, frases inspiradas ou simples observações. Para outro autor talvez esta revelação não tivesse muita importância, mas, para Kafka, a vida e a escrita são uma e a mesma coisa, não há existência para além da escrita, como ele próprio nos diz. Por isso, as mais pequenas frases têm por vezes uma forma oracular.
Patriota – Memórias
Alexei Navalny
Ideias de Ler
Como todos os regimes totalitários, a Rússia de Putin tem produzido a sua conta de heróis e mártires – figuras feitas de uma massa que já não se encontra no Ocidente. Alexei Navalny é uma delas. Mas, muito mais do que o relato da vida de um herói, Patriota é uma viagem pela história recente da Rússia e pelos meandros do seu cínico e impiedoso sistema judicial. De certo modo, um documento que está para o atual regime de Moscovo como O Arquipélago de Gulag está para o estalinismo. Talvez não se trate de uma mera coincidência que, um mês depois da morte do seu maior opositor numa remota colónia prisional da região ártica de Yamalo-Nenets, Putin fosse reeleito com 88% dos votos.
JCS
Cultura. Uma nova história do mundo
Martin Puchner
Temas e Debates
Depois do erudito e saboroso O Mundo da Escrita, Martin Puchner alarga os seus horizontes (e os nossos) numa obra em 15 capítulos e um epílogo, cada um dos quais funciona como um ensaio independente (entre nós, merece particular atenção o que dedica a Camões – ‘Um marinheiro português escreve uma epopeia global’). Não se trata já apenas de literatura, mas também de filosofia, religião, arte e política, todas sabiamente entrelaçadas. O foco nos empréstimos e contaminações culturais contribui para uma conceção rica, viva, colorida e dinâmica da história.
JCS
Canto do Aumento
Andreia C. Faria
ED. Sr. Teste
Têm faltado entre os poetas vozes que não se absolvam do esforço de caracterizar, definir ou denunciar esta época. Andreia C. Faria prova que os versos devem ser capazes de se desdobrar numa prosa aflitiva, que copie o ritmo do sangue exaltado ao passar numa aorta obscura, para se lançar sobre ele, não por mera audácia lírica, mas para ass(ass)inar o seu tempo, reconhecê-lo, provar e digerir a sua carne, ainda pulsante, pois uma poesia que fuja ao confronto essencial de se questionar sobre que tempo é este, não assume o verdadeiro desafio, sobretudo num período que opera pela camuflagem, que se mistura com o ruído para se furtar a um exame decisivo, e que corre para a dissolução. DVP
Dublin a Sul
Isidoro Blaisten
ED. Maldoror
Isidoro Blaisten, nascido em Concordia a nordeste de Buenos Aires é um dos grandes escritores argentinos da segunda metade do século passado. Quando lhe perguntaram porque só escreve contos, respondeu: «Pela mesma razão que Faulkner. Ele dizia que todos os romancistas querem primeiro escrever poesia, descobrem que não conseguem, e depois tentam o conto, que é a forma mais exigente depois da poesia. E, não conseguindo, começam a escrever romances. Eu não consigo escrever romances, mas o denominador comum é a poesia». O livro Dublin a sul, que nos chega numa tradução cuidada de Miguel Filipe Mochila, é uma pérola no meio da longa tradição de contistas argentinos.
O Espaço Literário
Maurice Blanchot
ED. Livraria Snob
Há um mal-estar na universalização da língua dos vendedores, nas imagens que substituem o mundo, na mudez que requer de nós apenas a mímica de figuras torpes e a repetição de afirmações, uma eternidade estagnada, onde nada se move e nada verdadeiramente acontece. Também a literatura vai sucumbindo e se entrega ao mito da espontaneidade e à confiança do poeta messiânico, imbuído de um saber inato. Esta obra de Blanchot é para este estado de coisas um livro impossível, e por isso necessário. Com a imagem da morte como operador interpretativo central, dá-nos a ver que a literatura se funda sobre um abismo, e que aqueles que os gregos chamavam ‘os mortais’ vivem numa frustração perpétua do seu desejo.
Colditz – Os prisioneiros do Castelo
Ben Macintyre
D. Quixote
Enquanto um pouco por toda a Europa ocupada se multiplicavam os sinistros campos da morte, no coração da Alemanha havia uma fortaleza medieval onde prisioneiros de guerra considerados especialmente valiosos eram tratados com respeito e dignidade. Dentro das suas grossas muralhas, num ambiente quase de internato, oficiais aliados recalcitrantes planeavam espetaculares fugas (às vezes com sucesso), organizavam jogos, encenavam peças de teatro e divertiam-se às custas dos guardas. Resgatando pormenores deliciosos, MacIntyre escreveu um livro que é uma ode à liberdade, à coragem e ao engenho humano.
JCS
De que somos feitos?
David Levitt
Lua de Papel
Não é segredo para ninguém que os divulgadores de ciência são exímios na arte de tornar simples e acessível o que é difícil e complicado. Com larga experiência na escrita de documentários para televisão, Levitt, como um bom cozinheiro, sabe combinar na perfeição as doses certas de humor, erudição e capacidade expositiva. E o que tem para nos contar, como anuncia o sugestivo subtítulo, é nada menos do que ‘A história dos átomos do seu corpo, desde o Big Bang até ao jantar de ontem’. Mas, paralelamente a essa história dos átomos (ou seja, do universo e de nós próprios), corre também nestas páginas a própria história da ciência e de como foram feitas as grandes descobertas, por espíritos inquietos, curiosos e iluminados.
JCS