Nunca o viu mais gordo? E não lhe soa sequer o nome? Não se penalize por isso, leitor. É fácil neste tempo ser-se a «pedra com sangue no ouvido», sempre o mesmo triste veneno diário, o de uns escribas que não aquecem nem arrefecem. Nunes da Rocha nem faz questão de ser notado: sujeito discretíssimo, poeta lá com os seus botões… Mas, se formos ver bem a coisa, os dele são os nossos botões, e não é preciso muito para, lendo-o, darmos por nós subitamente descamisados, a gabar-lhe a competência para «construir uma astronomia com torcicolo», entretecendo na cadência mastigada «indecências mitológicas». E a culpa lança ele às costas do vinho, que o faz falar assim, com aquele arrasto ora doce, ora acre. Fomos encontrá-lo por onde pára, voltejando, «sem deuses donos ou patrões», ali pelo centro bairrista da Amadora, à porta de um tasco, na palheta, na alegria de quem está com os seus. Mas depois, falando com ele, atrás das lentes, anima-se a íris, o olho voraz, raiado, e do desgaste, do cálcio sombrio que tritura o ar entre as articulações, vai-se notando o lucro nos rabos atados das frases sucessivas, emendando, «com estilo e feérica contenção», esse mesmo jeito que se lhe nota nos versos, e pressente-se a safra de tanto ter a alma vomitada e recomida às colherinhas.
Entre casquinadas, vai fazendo a descrição sincera dos seus desaires. Aos 61 anos, tem dois filhos, passou à justa em três inspecções que a morte lhe fez e o fígado, que já nos tinha apresentado gordo, trá-lo como a um vaso de hortelã ao lado, ao qual parece sussurrar: tem paciência, bicho. Vai mais um copito? Vai. Nisto, o mundo surge-nos cruamente exposto, entre golpes de rins, mas com o humor e a traquinice do miúdo que sobrevive com toda e tanta velhice de volta, neste país que parece só estar bom para velhos. Quanto à paisagem, está conforme, boa para moscas… Num dos versos do seu novo livro também nos adianta: «Eu que sou Mosca tudo conheço porque a merda é um lugar sem fronteiras». O livro tem o título As Moscas de Sileno – Zig et Zig et Zag (Averno, Janeiro de 2019). São oito poemas, entre o breve e o longo, num salto à vara espantoso. Cabe tudo em trinta páginas – uma plaquete, portanto –, mas que desacato, que bulha nos chama a vir em socorro de tantos dos seus lados, e que modo de sair ao estalo, a pisar, morder, rindo de tudo. Foi o pretexto para esta conversa, com um poeta que há muito despediu a pose, e sabe como a poesia que hoje se escreve não faz melhor figura que o beletrismo, e anda por aí gloriosamente empalhada, e enquanto se discute mais as questões de pontuação, Nunes da Rocha deixa uma ou outra sugestão («ide regar estrelas»). Ou então «aguardemos outro acordo ortográfico/ pensamentos lídimos concordâncias barrocas/ boas maneiras para morrer sem imaginação»…
Quando ia começar a entrevista, foi necessário recuperar o atraso da volta para que foi com a fotógrafa, Mafalda, indígena também ela daqueles bairros, entusiasmada por conhecer o poeta vizinho de quem nada sabia.
Então, onde ia a conversa?
Estava a contar que não gosto de viajar, e que ando sempre pelos mesmos sítios. Estava a explicar à Mafalda porque me agrada este giro pelas redondezas, e porque sou assim, que é por me deixar a cabeça livre. Como lhe disse, posso sair de casa sem nada, sem a carteira, sem telemóvel, por esquecimento ou não, e compro o jornal, bebo os meus copos, compro tabaco, faço tudo, e ninguém me pede dinheiro. (É claro que vou pagar essas coisas depois, mas estou sempre à vontade.) Isso liberta-me a cabeça para outras coisas. Não ando a fazer contas, a pensar onde devo ir e o que é que hei-de comer. Simplesmente, vou aos sítios, e o que houver come-se.
Não lhe agrada ir mais longe, andar sem referências?
Tenho uma memória péssima, mas há dias dei com uma frase que dizia qualquer coisa como: o turismo desencanta as pessoas porque quando chegam ao destino este só pode frustrar a mística que as atraiu até lá. Acho o turismo uma das mais perniciosas misérias característica deste tempo. O turismo de massas, quero dizer. E nesse sentido prefiro “viajar” como o Pessoa, ou seja, perdendo países. Prefiro esburacar-me, viajar cá dentro.
E a escrita?
Não sou gajo para me sentar à mesa e obrigar-me a escrever um poema. Ando pela rua, vou vendo as pessoas, estando com elas – e tenho a fama de ser muito despistado, e muitas vezes vêm atrás de mim: “olhe o chapéu”, “olhe o caderno”… –, mas tenho, ao mesmo tempo, a liberdade de andar por aí, neste desarrimo. Basicamente, este é o meu método: ando com um enxame na cabeça, depois só tenho de esperar um dia ou uma tarde, uma circunstância qualquer em que saco a abelha-mestra, e assim que o faço, depois, o resto é trabalho de escritório, digamos assim. Mas até lá recuso-me a entrar no escritório. Prefiro andar pelas ruas a fazer nada, que é uma das coisas de que mais gosto. Portanto, esta maneira de andar livre é uma forma de ter a cabeça ocupada. Depois há um clique e, então sim, com a abelha-mestre na mão é hora de ir buscar a colmeia toda e ir por aí fora.
O que traz aí?
Ando com este bloquinho [saca de um pequeno caderno azul que vomita rabiscos], que é um bocado inútil, e onde o que acabo por apontar mais são números de telefone, mas às vezes lá me ocorre uma frase que pode ser a abelha-mestre. Muitas vezes estou ali naquele tasco onde estivemos, e a que chamamos o ‘Pata Larga’, que é a alcunha do dono… Todos nós aqui temos alguma alcunha.
E referem-se ao tasco pela alcunha do dono?
Sim. Ele não gosta muito.
Porquê?
Tem uma mãozorra (risos). Quando a coisa transborda, digamos que não deixa pôr o pé em ramo verde. Às vezes, se há copos a mais, futebol a mais, coisas assim do género, ele põe ordem nas coisas. Mas antes deste bloco, o que eu sempre trouxe no bolso, com a caneta, era uma folha A4, dobrada, isto quando tinha a sensação de um zumbido, de qualquer coisa que andava a rondar, e aí ia tomando um esboço, para depois, em casa, deitar-lhe um contorno, e se não levasse a coisa nenhuma, sempre mantive um arquivo impecável, que é o caixote do lixo. Faço o mesmo com os livros. Um livro que não presta merece a reciclagem. E um poema também.
E já nasceu aqui, na Amadora?
Nasci em Lisboa, Forno do Tijolo, Bairro das Colónias… Na Rua Heliodoro Salgado, mais precisamente. Bom, nasci na MAC, como toda a gente, mas, curiosamente, a casa dos meus pais ficava nas traseiras da MAC, na Rua do Viriato… Vivi em Lisboa até aos meus 12, 13 anos. Depois fomos «expulsos» para a Brandoa, onde vivi muitos anos, num bairro clandestino, e dali para aqui ainda passei por muitos sítios, por causa dos trabalhos que fui arranjando… Desde Torres Vedras, Alentejo, Cacém… Mas boa parte da minha vida tem sido aqui, na Amadora, e identifico-me com este ambiente.
O que faziam os seus pais?
A minha mãe, que já cá não está, era mulher-a-dias, e o meu pai canalizador. Julgo que isso transparece: as minhas raízes. Tento que transpareça de um modo ou outro o sentido de classe, do qual me orgulho bastante. Afinal, nestas minhas voltas, e entre as pessoas que frequento aqui na Amadora não tenho amigos ditos intelectuais, ou pessoas com preocupações ao nível das leituras. São todos orgulhosamente trolhas, canalizadores, electricistas, gajos que não fazem nenhum… tráfico também, parasitas… que é uma actividade que me parece excelente também. E é com essa gente que me identifico, e creio que isso transparece no que escrevo. Aqui praticamente ninguém sabe que escrevo. A alcunha que tenho é o “Prof”, e só recentemente tive alguém a vir ter comigo curioso depois de se ter dado conta de que eu tinha uns livros publicados. Dá-me algum descanso estar num lugar e saber que ninguém me vai chatear com merdas sobre poesia, ou o meio literário, que, como todos sabemos, é a tristeza que é… Certa vez fui queixar-me ao Cesariny que o meio literário era uma casa de putas. E ele: “Casa de putas mas pequenina, porque se fores a Paris é muito maior.”
E como é que acabou a dar aulas de Português?
Não havia mais nada para fazer.
Cursou Humanidades?
O meu percurso escolar foi uma coisa muito esquisita. Voltamos à questão da classe, da condição social. Eu era para ter sido um mecânico, ou coisa que o valha. Sou do tempo em que se criou para os filhos dos trabalhadores a quinta e sexta classe, e eu fiz isso. Obviamente, quem terminava a sexta classe ia trabalhar. Mas depois entre os professores e o meu pai lá chegaram à conclusão de que eu nem era assim tão burro e quiseram dar-me uma outra hipótese. Então, fui para o [Liceu] Passos Manuel. Fui para o terceiro ano, com uma série de disciplinas em falta, e que era obrigatório ter, e foi por sacrifício de uma professora, que abdicava das horas de almoço para me dar as bases – no meu caso, Francês –, para que eu pudesse continuar no liceu. Devo-lhe bastante… Entrei directamente para o terceiro ano, isto ainda antes do 25 de Abril, que se deu quando eu tinha 16 anos, e punha-me a olhar para os chavalos que estavam a sair do sétimo ano, e admirava-me, perguntando-me se teria capacidade para fazer o sétimo ano. Fiz o quinto ano à rasca, que foi quando veio o 25 de Abril, e toda a gente passou… Eu ia chumbando, e o 25 de Abril safou-me nisso. Depois a coisa continuou – sexto e sétimo ano –, depois inventaram o ano cívico, que eu não apanhei, mas o que apanhei foi o ano propedêutico, em que houve bofetada com a GNR porque o Ministério da Educação tinha dificuldade em fornecer aos alunos os materiais escolares… Quando contava isto aos meus alunos, eles ficavam intrigados: Como é que é possível andar ao estalo com a GNR na luta pelo material para ir estudar!? Foi o que fizemos. Depois chegou a altura de ir para a tropa. Eu podia ter adiado, mas já estava farto de estudar. Fui chamado pela Marinha, perguntaram-me se queria ir dar uma voltinha ao Vale de Zebro [Escola de Fuzileiros]… Fiquei lá dois anos. Saí de lá meio desaparafusado, durante uns tempos fui vendedor de carros, depois voltei a estudar. Mal acabei o primeiro ano da Faculdade, tinha as nove disciplinas necessárias para me candidatar a uma vaga de professor provisório, fi-lo. Candidatei-me como professor de Português, numa escola secundária, e fui parar a Santiago do Cacém. Nem sabia onde era… Telefonei para lá, e perguntei ao director da escola como é que ia para lá. “Vem de autocarro, como toda a gente”, disse-me ele. “Mas eu não tenho onde dormir!” E ele: “Não interessa. Dormes, nem que seja em minha casa.” E fui dormir para casa dele. Fiquei por lá uma semana até arranjar casa. Depois enquanto dava aulas fui fazendo o curso, dando aulas; foi uma doideira, demorei muito tempo. Entretanto tive uma filha… Depois separei-me, tive um filho de outra mulher.
Está casado?
Não.
E que idade tem esse filho?
Vai fazer 18 este mês. E a minha filha já tem 26.
E eles dão pela sua escrita?
A minha filha, sim. Está em artes… Ele também. Mas nunca o exibi, nem fiz as coisas de tal modo que eles pensassem que o pai é um escritor. Sabem que escrevo, mas, de qualquer modo, aquilo que escrevo, verdade seja dita, não é coisa que deixe as pessoas encantadas… Por isso até desaconselho a leitura das coisas que escrevo. Aquilo que escrevo é feio. Ou por outra: não é bonito, nem é para ser. Não é para agradar.
Nasceu em que ano?
Em 1957.O ano em que a RTP começou a transmitir. Foi também o ano em que o Sputnik foi colocado em órbita. Tenho 61 anos; faço 62 em Junho.
Falou do ‘Pata Larga’, uma alcunha curiosa e que me parece poder aplicar-se à sua escrita: muito do que escreve é tremendamente culto, no uso das referências, no desembaraço como traz à liça a tradição literária, e faz a coisa de uma forma saborosíssima… mas com pata larga, ou seja, sentimos que estamos a ler alguém que vem por aí com o casco a fender o macadame.
Isso sempre foi um objectivo meu. Para todos os efeitos, a verdade é que tenho um mestrado e um doutoramento em Teoria da Literatura, portanto, forçosamente tenho de ter alguma bagagem nessa coisa. Mas sempre gostei de partir da ideia de que um livro meu deverá poder ser lido por um trolha que esteja na disposição de ler um livro, e que ache ali umas estórias ou frases que puxem por ele. Mas se chegar um académico ou uma pessoa com uma formação intermédia, há-de identificar outro nível de leitura, e se chegar um desses profissionais de leitura, ele irá encontrar isso que acabaste de dizer: este menino sabe da poda, mexe em coisas para as quais é preciso ter noções mais profundas.
É uma espécie de programa?
É intencional. Ou seja, escrever o livro de quem chega ao balcão, manda abaixo uns copos com o intuito de embebedar-se, mas não tem isso como objectivo final, antes abre margem para que o discurso tenha outras latitudes que não o balcão. O balcão é, por assim dizer, um ponto de partida. Muitas vezes acha-se mais humanidade no balcão de uma tasca… mais gente ali se cruza do que nesses lugares onde o que há mais é a partilha de uma superioridade face à gente que se refugia nas tabernas. Num balcão de taberna nunca tive receio de cometer um lapso, nem de citar Wittgenstein e rematar a coisa num foda-se. Se calhar quem está comigo ao balcão desliga-se do Wittgenstein e encontra mais substância no foda-se. E esse desespero que cedo fica sem palavras muitas vezes interessa-me mais do que o que oiço quando tento ter-me de pé nas nuvens dos salões literários.
E à poesia como chegou?
Ainda a propósito de tabernas, mais do que o mundo académico, onde de facto me senti como peixe na água, e onde me forneceram uma arma cujo gatilho eu só tinha roçado vagamente, por intuição, foi no &etc [editora do subterrâneo que cessou a actividade com a morte do editor, Vitor Silva Tavares, em 2015]. Eu sou um fruto do &etc, e foi o Vitor que, nas folhas da minha ingenuidade, se apercebeu de que eu talvez fosse capaz de escrever umas merdas curiosas. E assim foi. Há uma espécie de trindade a orientar aquilo que eu fui fazendo. O Vitor, o Cesariny e, curiosamente, algo distante deles, o Ruy Cinatti. Como convivi com os três, e tinham os três modos diferentes de ver e pensar a poesia, de certa forma tentei ligar as coisas. O Vitor e o Cesariny mostraram-me que eu tinha uma arma que podia ser bem afiada: a ironia. Vim a saber há coisa de um ano que, numa carta escrita pelo Cesariny ao Vitor, em que lhe falava de mim, ele dizia: “Parabéns, acertaste mais uma vez. O rapazinho, com aquele modo mansinho de falar, mete a faca até ao outro lado do papel.” Já o Cinatti tentou fazer-me entender que há uma erudição que não nos obriga a comportarmo-nos, mas que nos é útil para o que quer que desejemos fazer.
Que experiências mais o moldaram na relação com estes poetas?
Deixa-me contar-te como foi da primeira vez que estive com o Cesariny. Isto passou-se em 1982 ou 83. Eu não o conhecia, nem de fotografias. Nunca me importei muito com saber o quem é quem das letras. Tinha lido a tradução que ele fez do Rimbaud para os Estúdios Cor… Aliás, a primeira vez que o fiz foi andando a pé de Algés a Oeiras e de volta. Então, já não sei bem como, arranjei o contacto telefónico do Cesariny, e liguei-lhe. Ele passou por todo aquele repertório de obstáculos… “Hoje não posso, amanhã não sei, depois talvez”. O meu objectivo era dar-lhe a ler as minhas “juvenílias”. Na altura ainda não conhecia sequer o Vitor. Um dia, mais tarde, lá lhe telefonei, e ele combinou comigo para mais tarde, às onze da noite, em frente ao Nicola, no Rossio. Na altura, era eu vendedor de automóveis, saí do trabalho, fiquei a fazer tempo e lá fui. Estava imensa gente no Rossio e isto passou-se tal como te vou contar. Pára um táxi em frente, ele sai de lá, vira-se para mim e diz: Entra. Se eu nunca o tinha visto, muito menos ele me tinha visto a mim.
E como o reconheceu?
Virou-se para mim e disse: Entra. E eu entrei. Fomos parar ao atelier que ele tinha na Graça. Já com o Cinatti, foi o Vitor que mo apresentou. Foi logo bebedeira. Fomos jantar: eu, o Cinatti e o anjo da guarda dele, que andava a controlar os amigos novos, sendo que alguns andavam a ver se lhe roubavam as coisas de valor que ele tinha. Fomos a Alcantâra, a um restaurante.
O anjo da guarda quem era?
Um talhante, que era vizinho dele. Chamava-se José Duro.
Como o poeta, que escreveu o “Fel”!?
É, é verdade. Vinha garantir que ele não era uma vez mais roubado como aconteceu com outras dessas amizades novas. O Cinatti era muito ingénuo; levava fosse quem fosse a casa dele. Estávamos a jantar, a beber, e há uma altura em que ele pega na garrafa de vinho e despeja-me metade pela cabeça abaixo. Eu continuei a comer, e isto com os empregados a olharem todos para nós. Continuámos a falar, a comer, e às tantas puxei do vinho e despejei o que faltava por cima da cabeça dele. E ele encantado. Vira-se para o José Duro: “Viste? O rapaz aguenta-se. Sim, senhor.” A partir daí foi uma amizade até à morte dele, em 1986.
E com o Cesariny?
Quanto ao Cesariny a nossa amizade passava mais pelas idas à casa dele. Até tenho em casa um livro dele com uma dedicatória: “para o Nunes da Rocha, o poeta-electricista”. Isto porque de uma das vezes que lá fui resolvi-lhe um pequeno problema com um candeeiro. E ele espantou-se: “Ah, mas tu és muito bom. Então tu sabes disto!” E eu: “Foda-se ó Cesariny é só uma merda de um defeito com a ficha, mais nada. Bastou ir lá abaixo comprar uma ficha nova.” E ele: “Não. Toma lá para te compensar”. É aquele volume, o Textos de afirmação e de combate do movimento surrealista mundial (1977).
O que vou ouvindo do Cinatti é que era uma figura profundamente lírica no seu modo de estar e encarar a vida.
Dormi uma vez em casa dele; a casa estava sempre numa balbúrdia… E de manhã, antes de sair, colocava uma flor na lapela, o crucifixo ao pescoço, o seu chapéu, mala a tiracolo, e vinha sempre de máquina de fotografar… Uma vez estávamos a almoçar num tasco ali na Bica, estava lá uma rapariga muito bonita, e ele lá foi tirando fotografias, chamando por ela, e ela acabou por se juntar a nós. Depois, disse: “Agora vamos para minha casa.” Lá fomos. Ele senta-se no sofá e comanda: “Agora, leiam para mim.” Percebi que ela tinha alguma formação, e até estava por trás de uma revista na Guarda. E ali estivemos os dois a ler Álvaro de Campos para o Ruy. E ele deliciado. Dessa tarde tenho até uma fotografia. Estávamos a passar no Príncipe Real, o Cinatti viu o Agostinho da Silva por ali, meio enxofrado, e pôs-se a chamá-lo. Aflito, ele lá acedeu, sentou-se num banco para ser fotografado, e o Cinatti disse-me que eu e essa moça nos sentássemos também, e assim ficámos os dois, um de cada lado do Agostinho da Silva.
Ele meteu na cabeça que ia fazer de mim um gajo decente. Saímos de manhã, fomos logo beber copos (ele bebia bastante), voltávamos para casa dele, e ele dizia-me: “Agora vou descansar um bocadinho, e tu vais para o escritório, ficas com os livros e eu quero um poema quando acordar.” Então lá despertava e vinha saber: “O poema, o poema?”
Depois, nesta coisa de fazer de mim um ser mais sociável, de vez em quando, ele cortava relações comigo. Porque eu era um bocado boçal.
Boçal!?
Sim. Ele preocupava-se, tentava ajudar-me. Certa vez disse-me: “Amanhã, vamos todos para Peniche.” E eu: “Todos!? O que é que é todos?”. “Então: vou eu, vais tu, vai o Joaquim Manuel Magalhães e o João Miguel [Fernandes Jorge]…” Eu era muito tímido, sempre fui, e disse-lhe que sim, para não o ouvir mais. É claro que, depois, chegou a hora de ir e baldei-me. Ficou sem me falar um mês. Indignado: “Eu a esforçar-me, a tentar apresentar-te às pessoas, pessoas interessantes, e tu foges! És um boçal!” Ele estava realmente empenhado em civilizar-me.
Qual é o primeiro título que publica?
Tráfico de Rimbaud na Costa Portuguesa (1990). Já em 1985 o tinha entregue, mas o Vitor disse-me: «Olha, arriscas-te a ser o último, porque isto não está a andar muito bem.»
Esteve cinco anos à espera que o livro saísse!? Isso é um record.
Sim, cinco anos à vontade.
E não lhe tocou nesse período?
O Vitor tinha esta coisa que era a forma como te sabia guiar. Das primeiras coisas que me disse foi: «Olha, se quiseres escrever ‘caralhos’ e não sei o quê, vais à casa de banho, escreves isso na porta e já não precisas de encher os livros disso.» Mas o Paulo da Costa Domingos lá me foi encorajando para que eu não desistisse. Dizia-me que o Vitor, com todos aqueles reparos, tinha uma queda por mim. «Há aqui luzes», dizia-me, «mas ainda não lá chegaste. Volta para trás.» E eu levava e depois trazia coisas novas.
Hoje em dia essa relação já não é possível porque o autor vai a correr entregar a outra editora…
Pois, mas para mim era aquela a editora ou não era. Ponto final. Queria lá saber das outras.
Tinha de ser com o Vitor?
Sim, e não era porque ele já me conhecesse. Quando lá fui pela primeira vez para levar um pequeno molhe de papéis foi porque andava com o livro do Jean Cocteau, “Explicação dos Prodígios”, da série K… Vi onde era a morada e decidi-me: “É aqui que eu vou.” Pus-me a caminho, Rua da Emenda, trocámos umas palavras, ele olhou-me de esguelha, disse: “’Tá bem. Deixa aí os papéis.” E foi por aí fora. La fui aparecendo e foi-se criando um laço. Muitas das vezes que lá passava também levava cada injecção… Aprendi mais de literatura contemporânea com ele do que na universidade, isso é certo. Mas largamente. De cada vez que lá ia era cada escarolada, uma lavagem… Desde Cardoso Pires, Cesariny, António José Forte. Há um episódio que me marcou. Na altura ele bebia e fumava bastante. Nunca o tinha visto de lágrima no olho e vi-o. Vínhamos de mão dada, já com umas cervejas a balançar no bucho, e vamos a passar uma rua que segue do Parque Mayer e sobe, e o gajo baixa a cabeça, emocionado… E eu pergunto-lhe o que é que se passa. E ele: “Não vou levantar os olhos senão vejo-o lá.” “Mas vês lá quem, caralho?” E ele pergunta-me: “O António José Forte está lá em cima não está?” E eu disse-lhe que não, que não estava lá ninguém. Ele tinha uma amizade fortíssima com o Forte, e estava de lágrima no olho a pensar que se levantasse os olhos o outro estaria lá em cima a vê-lo passar.
Mas lá onde?
Estávamos a passar à porta onde morava o Forte, que já tinha morrido. O Vitor tinha medo de olhar porque achava que o via se o fizesse. Depois deixou de beber, deixou de fumar. Bom, e isto para dizer que foi só quando ele achou que “agora, sim”, então disse-me: “Agora, sim, é a &etc que vem pedir o favor ao autor Nunes da Rocha se nos faz a honra de deixar que publiquemos o Tráfico de Rimbaud na Costa Portuguesa”.
Mas ainda esperou cinco anos.
Ainda esperei cinco anos.
Toda a gente o conhece como Nunes da Rocha, mas qual é o seu nome?
José Manuel Nunes da Rocha. «Nunes» da parte da minha mãe e «da Rocha» da parte do pai. Como sou produto dos dois… Comecei a usar esse nome e dispensei o José Manuel.
Ao ler este livro…
A capa é fabulosa.
É, é muito boa.
Eu disse ao Luís Henriques [o capista]: «Até me deixas envergonhado… Tenho medo que os meus versos fiquem bem atrás da capa.» A capa é extraordinária.
Lendo o poema “Pequena história deste lado do universo”, parece-me que conseguiu fazer aquilo que fez Cesariny nos seus poemas maiores: dar-nos um poema que tem lá tudo, e se torna uma aventura não só verbal e rítmica, mas uma visão, uma radiografia, uma crítica e um modo de alcançar a curva da terra, do tempo, da vida de um homem.
Tenho que admitir que o Cesariny tem uma importância decisiva naquilo que escrevo. Não é falar de escolas que, para mim, não tem interesse nenhum. Não sou um surrealista, mas, no surrealismo português, julgo que me inscrevo na corrente do abjeccionismo, aquele do Pedro Oom, e claro, do Cesariny. Para mim ele é mais abjeccionista do que surrealista. Surrealista era o António Maria Lisboa. O Cesariny, além do grande poeta da tradição portuguesa – e as pessoas esquecem-se muito disso, só vendo nele o surrealista, esquecendo o homem que traz o embalo das cantigas de amigo… Admito que o abjeccionismo é uma questão que eu tenho comigo. Como dizia o Pedro Oom: «Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?» Os tempos estão assim, estão cada vez mais assim. E acho que não há outro modo honesto de se estar na poesia.
Como chega aí?
Repara que hoje a maior parte do pessoal anda a escrever poemas curtos, poemas breves, e todos com aquele choradinho… Sou ignorante da maior parte do que se vai publicando, e não faço questão de estar muito informado porque não vejo nenhum interesse em seguir as tendências, as ondas… Porque isso faria de mim um manga de alpaca da literatura. O que gosto é de me virar às coisas que me incomodam ou me chateiam bravamente. Mas, fora isso, não vou nessas cantigas de que a poesia é uma arma, essas merdas do Manuel Alegre… Sempre achei isso uma estopada.
Como foi que a vida e a poesia tomaram um mesmo rumo para si?
Quando saí da tropa andava meio desorientado, digamos assim. Então, a minha mãe, farta das minhas maluqueiras, disse: «Vai-te embora, vai dar uma volta, vai para a província com os teus compadres…» E assim fiz. Na altura já tinha a mania que era poeta. Estive uns tempos na casa de um amigo, que só tinha uma casa de banho, e, como vivia com a namorada, eu não podia usá-la. Então eu ia para a do café, e era lá que lavava os dentes, fazia a higiene e tal. E, entretanto, tinha escrito um belíssimo poema à mesa do café, com toda aquela pose dos poetas, que um gajo olha de outra mesa e vê a auréola desenhada sobre a cabeça. Não é que me deu a vontade de ir à casa de banho… Fui, fiz o que tinha a fazer, mas quando olhei à volta não havia papel higiénico. O que é me safou? O poema. E usei o poema para a sua devida função: limpar o rabo com ele. (risos) Aliás, como muitos dos que aí se publicam, não vejo melhor função que essa.
Mas estava a dizer que hoje sente que a poesia além de breve e do choradinho, perdeu a sua urgência…
Do pouco que vou vendo parece-me que os poemas são muito semelhantes uns aos outros. Aliás, disse isso ao Manuel [de Freitas, editor da Averno]: que hoje, muitas vezes, para se distinguir um poema de um autor do de outro já é difícil, e que se qualquer um deles assinasse o do outro ia dar no mesmo. Acho, em primeiro lugar, que se publica demais. Hoje, qualquer traque serve…
E começa logo por ser impossível encontrar um poeta que aguardasse cinco anos para ver um livro publicado.
Ui, pois não, não. E esses cinco anos foram um período de valiosíssima formação. E a propósito da primeira vez que me encontrei com o Cesariny, quando fomos para o atelier dele, acho que esse episódio demonstra bem o que me faltava, o erro que eu trazia. O meu fito nesse encontro era mostrar uma série de poemas ao Cesariny, e isto quando eu não tinha lido ainda os poemas dele. Não tinha lido nada senão o prefácio que ele fez para a tradução do Rimbaud. Então, chegamos lá, a casa dele, perto da meia-noite, e estamos ali à conversa e é claro que ele pôs logo a mãozinha a ver se a coisa pegava e eu disse-lhe, “epá, não vale a pena, esquece lá isso, não vamos por aí…” Depois, mais à frente, e na altura eu era mais novo, lá volta ele: “Ah, mas tu és muito bonito.” E eu: “Obrigadíssimo, ainda não ouvi um elogio hoje, fico muito contente, mas esqueçamos isso.”
Mas já tinha a ideia de que ele estava mais para meninos do que para meninas?
Uma vaga ideia. Também não era a primeira vez que era assediado, e também não era por aí que a coisa me fosse causar algum incómodo. Mas ali estávamos, na palheta, e às tantas eu lá aproveitei uma aberta, e puxei de um molho de folhas, e disse-lhe que tinha ali uns poemas, tal como lhe tivera dito ao telefone, e que gostava que ele lesse para dar-me uma opinião. E passo-lhe os poemas. E diz ele: “Mas tu já leste alguma coisa minha?” E eu digo-lhe que não, ao que ele naturalmente retruca: “Então, porque é que tu queres saber o que eu penso dos teus poemas.” E eu, envergonhado, tirei-lhe os poemas: “Epá, dá cá, esquece lá isso… Tens razão.” Mas ele, entretanto, levantou-se, foi buscar um LP de poemas dele, ditos por ele e pela Graça Lobo, e pôs a rodar. Ali estivemos um bocado, a ouvir. Chegámos ao final, e ele assim: “Agora que já conheces alguns dos meus poemas, dá cá os teus.” E eu lá lhos dei. Ele leu – ainda os tenho lá, com algumas notas dele – “isto está a mais, isto aqui, para que é?" –, e foi por ali adiante… Foi extraordinário.
Portanto, esses cinco anos foram essenciais à minha aprendizagem. Isto embora qualquer chavalo esteja em pulgas para ver a coisa cá fora… Mas o que eu mais queria era ver como é que se faz. E com essas pessoas foi muito bom. Aprendi como afiar os instrumentos para depois os utilizar. O Vitor nisso era também muito generoso. Tinha alturas, e eram poucas, em que me chamava a atenção: “Esta merda, isto!… Vê lá se arranjas aqui isto.” Mas nunca me dizia o que é que eu devia fazer. Dizia: “Vê lá que volta podes dar a isto.” E depois eu lá voltava com nova solução. E como pessoa também lhe devo muito. Aliás, sou um filho do Vitor. Atenção, não sou uma viúva, sou um filho.
Tendo lido este livro, o que me deu mais foi uma inquietação de tentar perceber de onde é que ele veio.
A inquietação é a melhor palavra que podes arranjar. É o chamado riso do Cesariny, esse de ter lavados e muitos dentes brancos à mostra. É um riso em que não nos estamos a rir por gozo mas sim de raiva. O álcool ajuda a rasgar por aí. Ora, para fugir ao Baco, fui buscar o Sileno. Já temos o Baco cantado pelo Camões… Para justificar a bebedeira anda tudo com o Baco pelo braço. Vamos então buscar o Sileno, que é mais antigo, e que foi o tutor de Baco. É até mais adequado à minha idade, pois também estou mais velho… Não uso o álcool nem o vinho como tema ou matéria, uso-o como impulso que uma pessoa, quando está com a neura, com os dentes já não brancos mas sujos de vinho, lhe dá para rir com maior desprezo pelo que vemos passar-se ao nosso redor. Boa parte da poesia hoje é escrita por gente que se leva muito a sério. Todos acham que vão ser o poeta que vai deixar a sua marca e chegar às próximas gerações. E nisto ninguém se ri. Hoje, não se ri nos poemas, e não se riem deles próprios. O que mais faço eu é rir-me, até porque sou parvo. Dos que riem, hoje, tens quem? O Cesariny, o Alberto Pimenta, que também se ri bastante de si mesmo, e que mais? Gajos que levem por diante a nossa tradição de escárnio e maldizer… praticamente não tens. São todos muito sérios, todos muito sorumbáticos. Eu também escrevo textos desses, é claro, mas se nos dá a cólica, e um tipo faz aquele esgar, depois o que este tempo também te ensina é que o melhor é estares-te a cagar para essas instituições e essa gente que não estão cá para mais do que encher-nos a paciência com a sua importância. É aí que o poema é útil: quando vais limpar o rabo nele.
Há uma cerimónia que faz e que já se tornou um pequeno mito… a de festejar a saída de cada livro fazendo o lançamento mas para o Tejo.
Ah, sim. Vou fazê-lo depois de amanhã, em princípio.
Costuma lançar ali no Cais das Colunas?
Agora faço-o no Cais do Sodré. Porque agora barraram o acesso ao rio, as pessoas ficam sem acesso às águas, o que é um nojo… Dantes, quando os cacilheiros eram abertos, chegava ali a meio do rio, depois de ter escrito a dedicatória às Tágides, e lá ía ele. Depois chegava a Lisboa, bebia uns copos, e voltava. Até que fecharam aquilo. Houve uma vez em que ia fazer o lançamento e tive de abrir a porta, e atirar o livro. As pessoas ficaram todas a olhar para mim. Devem ter pensado: “Das duas uma: ou o livro é uma grandessíssima merda, ou o gajo é um porcalhão e está a ajudar a poluir o rio.” A partir daí comecei a fazê-lo ali no Cais do Sodré. Há ali uma nesga, e lá vai. Levo isto de tal maneira a sério que uma vez tinha tido uns poemas publicados na Colóquio Letras, mas porque aquilo custa um balúrdio, achei que não fazia sentido comprar a revista para a atirar ao rio. Tirei fotocópias e mandei para o rio. Não é que as gajas levaram aquilo a mal… As Tágides… Durante uma série de tempo meti na cabeça que tinham levado aquilo a mal e andei à rasca para voltar a escrever. Depois é claro que ultrapassei essa neura, mas nunca mais deixei de lançar os livros. Fico ali a ver o livro a afundar-se e é um ritual que me traz um certo contentamento. Acho que tem um pouco a ver com a minha infância, porque foi passada ali junto ao rio. Tenho uma fotografia minha junto à estátua de Dom José. Teria aí um ano, estava todo nu, a mexer na pila, naquele tempo em que, junto ao rio, estavam lá aqueles gajos a tirar fotografias à la minute, e o rio sempre foi para mim um espaço de recreio. Não passava muito tempo sem que eu fosse lá. Agora não. Um gajo vai até ao rio e é só obstáculos e gajos a correr de um lado para o outro… Não se percebe onde é que querem ir.
No que toca ao vinho, e além da inspiração, é uma entrega em que nem lhe preocupa que ele lhe acabe com a saúde…
Todos vamos morrer de uma coisa ou de outra. Já bebi muito mais do que faço hoje. Bebia muito e variadamente. Agora estou mais restringido ao vinho, até porque é mais barato. Se estivesse preocupado que o vinho me desse cabo da saúde não fumava dois maços de tabaco. Se calhar até morro aí a atravessar a rua. Levo com um carro… ou um piano. Já fui atropelado uma vez. Era miúdo, foi em Lisboa. Acho que é um bom exemplo do meu processo mental. Estava uma camionete a tapar a vista que eu tinha da rua, e não conseguia saber se vinham carros. Vê-me lá o que pensei: Não vou espreitar porque se meter a cabeça de fora ainda aparece um carro e leva-me a cabeça. Então, o que é que fiz? Tomei balanço à suicida, e atirei-me. Claro que levei com um carro.
E o que é que te aconteceu?
Acordei dentro do carro. O gajo queria levar-me ao hospital, mas quando ouvi a palavra hospital comecei a gritar que estava óptimo, que me largassem, e era o que eles queriam ouvir. Não parti a perna, mas andei à rasca um bom tempo.
Tinha que idade?
Seis, sete anos. Já tive a morte à minha frente três vezes. Uma delas por gás. Monóxido carbono. É das melhores saídas que pode haver. Se algum dia tiveres de escolher, é a melhor morte…
Como é que isso aconteceu?
Foi o esquentador na casa de banho.
Começou a delirar?
É uma coisa fabulosa. Entras num estado de tão grande bem-estar, de tal maravilhamento e de fraqueza que cheguei a ver o famoso túnel que dizem que as pessoas vêem quando estão a morrer. Via-se uma sombra lá ao fundo e ouvia uma voz a dizer “vem”.
E como é que se recusou a isso?
Bati com a cabeça, tinha perdido os sentidos… Era adolescente… A minha mãe entrou, foi-me buscar. Quando acordei estava dentro da ambulância, mas com uma cabeça de todo o tamanho, cheio de dores.
E da outra vez?
Foi em Porto Santo. E foi graças ao vinho que me safei. Estava a passar férias, na altura com a mãe da minha filha, e fomos para a praia. Era um dia muito ventoso e eu estava de ressaca. Cheguei à praia e estendi a toalha junto a um poste de cimento que indicava as zonas de jogos e não sei quê. Estava deitado e às tantas ergui-me só para tirar um cigarro de entre as minhas coisas. Nisto, estava toda a gente aos gritos e aquilo passou-me por cima, rente, e desabou mesmo onde eu tinha a cabeça quando deitado. Como estava de ressaca não me virei logo para ver porque é que estava toda a gente aos gritos e foi por isso que aquilo não me acertou. Sabes o que fiz a seguir? Agarrei no maço de cigarros, fui para uma tasquinha, mandei vir uma grade, fumei tudo e bebi tudo a olhar lá para baixo, para o lugar onde poderia estar o meu cadáver.
Por isso quando me dizem que o tabaco faz mal, que cada cigarro nos tira cinco minutos de vida, eu respondo: Já não é mau. Eu devo a minha vida a um cigarro.