A deserção do Bloco e um trabalho sério com o PCP

Divórcio consumado com bloquistas, ainda que haja abertura para negociar legislação laboral. Costa puxa por aproximações com o PCP.

O primeiro dia do debate sobre o Orçamento do Estado para 2021 revelou um divórcio consumado entre o Governo PS e o BE, com o primeiro-ministro e líder socialista a acusar os bloquistas de “desertarem” da esquerda e colarem-se à direita. Por contraste, António Costa reconheceu as divergências com o PCP, mas sublinhou que é possível um “trabalho sério” na especialidade para se fazerem aproximações e manter-se, desta forma, a abstenção dos comunistas na versão final global. “Enquanto há estrada para andar, há caminho para seguir em conjunto”, declarou António Costa no final da sua intervenção, em resposta ao discurso de Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP. Mais, o chefe do Governo assinalou as negociações “sem espalhafato” com o PCP. Dito de outra forma: Costa não esqueceu que os comunistas são mais discretos na hora de negociar, ao contrário do BE.

E, se o discurso foi duro com o BE, o primeiro-ministro também assinalou, numa das múltiplas respostas aos bloquistas, que o Governo está disponível “para assinar um documento com o BE para rever as leis laborais ao longo da legislatura”. Ficou uma porta aberta, ainda que a narrativa em público tenha azedado. José Manuel Pureza, deputado do BE e vice-presidente do Parlamento, quis rebater uma “inverdade” dita por António Costa logo no início do debate. O primeiro-ministro usou um powerpoint  do Bloco para dizer que o novo apoio social (para quem não tem direito a qualquer tipo de prestação social) desenhado pelo partido de Catarina Martins só incluía 100 mil pessoas, contra a versão do Governo (enviada domingo ao BE) para abranger 255 mil pessoas. Em causa está um apoio até 501 euros mensais. “Quem inscreveu 100 mil pessoas não fui eu, foi quem divulgou o documento. Sabe bem que ainda no domingo foi comunicado por escrito ao BE que o Governo aceitava um alargamento desta prestação social de forma a cobrir todos aqueles que não recebiam subsídio de desemprego e que estava disponível para abdicar da condição de recursos em algumas situações”, atirou António Costa, depois de Pureza ter dito que a proposta do BE abrangia 200 mil pessoas. E pediu para se distribuir o referido powerpoint do BE para provar o que dizia. Mais à frente, Joana Mortágua, do BE, acusou o Executivo de só fazer um reforço  de 0,03 por cento para o SNS. Isto depois de Costa ter dito que o SNS terá uma capacidade orçamental de 12 100 milhões de euros, um reforço de mais 805 milhões de euros. Na prática, será “ quase tanto como a bazuca europeia” em cinco anos, anunciou Costa. Depois, na resposta a Joana Mortágua, o registo azedou mais: “Concordo consigo, é preciso falar a verdade. Por isso fale a verdade”. Na discussão entre o primeiro-ministro e Catarina Martins não houve, contudo, uma troca de argumentos acesa. Esse trabalho ficou para deputados como José Manuel Pureza. Que ainda acusou “uma deserção sistemática do Governo para se juntar à direita” na área laboral. De realçar que o BE exigia a recuperação dos 30 dias de indemnização por cada ano de trabalho em caso de despedimento, recuperando a legislação pré-troika, de 2012.

Por seu turno, Mariana Mortágua, a quarta deputada do BE a intervir, falou de um orçamento de “remendos de curto prazo”. Mas sinalizou uma abertura de compromisso para a votação final global: “Se houver o bom senso de reforçar o SNS, se houver a razoabilidade de proteger quem está aflito no desemprego e na miséria, se houver o bom senso de protegermos o Estado da pilhagem financeira, teremos um bom Orçamento”. Este foi o único sinal de abertura do BE, depois de ouvir o primeiro-ministro recuperar  a demissão de Paulo Portas (numa resposta ao CDS) no tempo do Governo de Passos Coelho: “Não sei se a decisão do BE neste OE é tão irrevogável como a do CDS abandonar o Governo do PSD. Não me verá a ter menos consideração pela autonomia do BE quer vote à esquerda ou se se juntar à direita”.

Os temas do Novo Banco e da TAP foram sobretudo levantados pelo líder do PSD, Rui Rio, ao acusar o Executivo de “enterrar dinheiro” na transportadora aérea. “Para quando o plano de reestruturação da TAP, sendo que já o devíamos ter tido antes de o Governo enterrar dinheiro dos contribuintes?”, perguntou o líder do PSD, logo no início do debate. Costa avisou que o tema é sobretudo político e a questão que se deve colocar é: “Um dia gostaria de ouvir a opinião do senhor deputado, quer deixar falir a TAP ou não quer deixar falir a TAP?”, perguntou Costa a Rui Rio. O tema do Novo Banco só seria ressuscitado pelo BE (uma das linhas vermelhas) ao fim de mais de quatro horas pela deputada Mariana Mortágua. Mas de forma sucinta.  Já Jerónimo de Sousa, do PCP, insistiu que “é claro que este Orçamento não dá resposta aos problemas estruturais do país”. A frase motivou risos na bancada do PSD e em André Ventura, do Chega. Jerónimo de Sousa atirou: “Está a achar graça? não acho graça nenhuma”.

Numa resposta ao PEV, Costa admitiu ainda que pode ser necessário recalendarizar o programa de valorização dos salários da Função Pública, mas a meta de 3,5% mantém-se, “seja por via das novas contratações, seja por via das promoções, seja por via das progressões”. A abstenção do PEV também está condicionada a várias medidas que possam ser acolhidas na especialidade. Já do lado do PAN, Inês Sousa Real defendeu que a abstenção do partido é “responsável”, mas são necessários avanços, designadamente em áreas ambientais, retirar da rua 600 pessoas ou na contratação de mais 100 inspetores da PJ.

O PS procurou sempre atacar o BE nas várias intervenções, com o registo de desilusão, críticas ao PSD também, e o primeiro-ministro jurou, por diversas vezes, que não quer um bloco central.

Já o CDS, pela voz de Telmo Correia, considerou que “agora que já não há muito para distribuir, agora que é mais difícil, lá se vai a sua maioria”. Ou seja, cheira a fim de ciclo.

Também André Ventura, do Chega, vaticinou que daqui a seis meses o Governo não estará em funções.

João Cotrim de Figueiredo, do Iniciativa Liberal, atacou a falta de apoio às empresas e os “1.700 milhões de euros que, para já, vão ser enterrados na TAP”. Hoje, o Orçamento será viabilizado com 108 votos a favor do PS e 105 votos contra (incluindo o BE). Segue-se o debate na especialidade, e a votação final global será a 26 de novembro.